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Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA
Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA
Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA
E-book383 páginas5 horas

Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA

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Sobre este e-book

O texto de Elionice Conceição Sacramento é uma narrativa poético-histórica, que nos brinda com uma bibliografia bem articulada, que é utilizada de forma não submissa. Quem nos fala é uma quilombola, mulher negra interseccional por ancestralidade, mulher das águas e da lama, pescadora por tradição, profissão e decisão política. Por sua abordagem inovadora, tanto em seus aspectos metodológicos quanto em relação a suas escolhas epistêmicas, a pesquisa consiste em uma narrativa original, pertinente e muito relevante.
Para além das epistemes, as ameaças cruas que temos vivido colocam em risco a educação democrática, em meio a uma crise epidemiológica mundial que se associa a um retrocesso político autoritário no país e reforça todas as desigualdades sociais já existentes. Tal conjuntura nos coloca em trincheiras de lutas interseccionais, que não podem ser desconsideradas. Elionice e sua comunidade nos lembram que seguiremos lutando epistemicamente, mas também acionando estratégias diversas, como nos ensinam outras grandes mulheres, como: Tuíra Kayapó, que levou seu facão ao rosto do engenheiro da Eletronorte contra as construções de Belo Monte ainda na década de 1980, para que sua voz fosse ouvida; como Sônia Guajajara, que em 518 anos de Brasil foi a primeira indígena a concorrer numa chapa à presidência da república. Também como as quebradeiras de coco que se guiam pelos babaçuais. E como as pescadoras que se orientam pelas marés e que se constituem, não somente nas águas, mas nos mangues e na lama. Com a mestra Elionice Sacramento, aprendi que há lutas em tempos de maré cheia e lutas em tempos de maré baixa. Nesse momento de marés baixas, um exercício importante parece ser o de retornarmos a nossas próprias comunidades e coletividades, reconhecendo formas ancestrais de pensar o coletivo antes do indivíduo, de fazer frente às políticas coloniais de inimizade, de retomar as bases comunitárias, não somente como campo de formação política, mas como nossas próprias raízes.
É hora de unir a mobilização jurídica com ações políticas que valorizem essas iniciativas insurgentes já existentes. Lutemos como essas mulheres, trazidas na escrita de Elionice, por novas narrativas e outras formas de escrever e ler o mundo!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de fev. de 2022
ISBN9786525017297
Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: Ancestralidade e Protagonismo de Mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA

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    Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas - Elionice Conceição Sacramento

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    APRESENTAÇÃO

    por Itamar Vieira Júnior

    Em 2018, estive pela primeira vez na comunidade quilombola de Conceição de Salinas, às margens da Baía de Todos os Santos. Como servidor público, segui com a tarefa de ouvir a comunidade sobre os conflitos territoriais que se acirraram sobremaneira nos últimos anos. A intenção era reverter a oitiva em documento com informações breves e sistematizadas sobre o tema. Em paralelo às intenções oficiais, não pude deixar de me encantar com as imagens bucólicas que vi ao chegar ao povoado, contrastando com a seriedade do tema que tinha me levado até lá: uma vila de casas e ruas, como muitas outras que existem e resistem no litoral brasileiro; o mar da baía, com suas águas tranquilas, emoldurando o horizonte com uma profusão de pequenos barcos que anunciava a vocação pesqueira da comunidade. Os filhos da terra se movimentando de um lado para outro, imprimindo a vida no tempo e no espaço desse lugar de história tão especial.

    A história de Conceição de Salinas é uma das milhares de histórias sobre outros lugares com origem semelhante no Brasil. Uma comunidade pesqueira e agrícola com trajetória que remonta a mais de três séculos e com um profundo vínculo com as heranças da diáspora africana. O Recôncavo Baiano, onde se situa, foi um importante polo de monocultura da cana-de-açúcar (commodities entre os séculos XVII ao XIX) e recebeu grande contingente de africanos escravizados. Hoje, vivem e resistem os seus descendentes, incluindo um contingente sazonal de filhos da terra que regressam em determinados períodos do ano. Na paisagem do lugar, além dos barcos que singram o mar da baía em busca da pesca que alimenta muitas famílias, e dos frutos advindos da maré e que abundam nos mangues, cortam o ar as enxadas que descem sobre a terra em pequenas áreas de roças, muitas delas nas antigas fazendas Conceição e Santa Luzia, onde no passado viveram seus ascendentes escravizados que trabalharam da mesma maneira. Hoje, é nessa área que ocorrem os crescentes conflitos entre quilombolas e incorporadores imobiliários.

    Essa é uma comunidade onde as mulheres exercem e exerceram ao longo da história um forte protagonismo, como atesta este belo livro de Elionice Sacramento. A exemplo das dinastias de mulheres sacerdotisas do candomblé que encantaram a antropóloga americana Ruth Landes na década de 1930, em Salvador, e culminaram na publicação do clássico A cidade das mulheres, as mulheres de Conceição, como as da raça de Filomena da qual a autora afirma descender, protagonizaram a longa peregrinação de seu povo resistindo a toda sanha de destruição que lhes foi destinada ao longo do tempo. E ainda neste tempo presente, assim como no passado, continuam a sofrer investidas que atentam contra suas vidas: cercas derrubadas, demolições, proibições de coletar frutas, folhas e cascas de plantas utilizadas para consumo e seus rituais de vida. Mas nada disso parece silenciá-las ou fazê-las desistir de seu destino. A autora, "com os pés na lama e o corpo imerso nas águas", faz da sua vivência a matéria-prima destes escritos, inaugurando um tempo em que talvez não seja preciso que um outro conte sua história. Uma história que, os leitores saberão, se insere em ciclos relacionados metaforicamente aos ciclos das marés que fazem parte de seu dia a dia; e das águas da ancestralidade irá emergir a força das heroínas de Conceição.

    É importante ressaltar que os conflitos territoriais que atingem os povos tradicionais no Brasil devem-se sobretudo à Lei de Terras elaborada pelas oligarquias que detêm o poder econômico e político desde tempos imemoriais, e que organizou a propriedade privada no País. Essa foi a política de acesso adotada desde a promulgação da lei nº 601 de 1850, quando ficou estabelecido que a compra seria a única forma do cidadão regularizar sua situação sobre o solo, substituindo o sistema ainda mais desigual das sesmarias. Ao longo do século XX e início do XXI as sucessivas constituições e dispositivos legais tentaram derrogá-la: a Constituição de 1934 (Estado Novo) e todas as que se seguiram reconheceram o direito dos povos indígenas sobre as terras que habitam; o Estatuto da Terra (1964) instituiu a função social da propriedade e teve como objetivo diminuir os conflitos no campo com uma política de colonização e reforma agrária; a Constituição de 1988 reconheceu o direito dos remanescentes de quilombos aos seus territórios, regulamentada como política pública pelo Decreto Presidencial nº 4.887 de 2003.

    O Brasil é um dos países com maior índice de concentração de terra do mundo. Propriedades com mais de mil hectares – e que podem ser consideradas como latifúndios – correspondem a mais 45% de todo o território brasileiro. A reforma agrária, apesar de todos os dispositivos legais e normativos para sua execução, não conseguiu reduzir a concentração fundiária. Países como a França, o México, a Coréia do Sul e o Egito fizeram amplas reformas no campo, ainda na primeira metade do século XX. Em Moçambique, por exemplo, a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida, ou, por qualquer outra forma, alienada, hipotecada ou penhorada. A nossa abolição tardia foi desidratada dos propósitos de muitos ativistas da causa, que queriam a liberdade e a reforma agrária para dar autonomia e governança às vítimas desse sistema perverso de exploração do trabalho. Mas isso não ocorreu e a terra se tornou bem econômico, ainda que dotado de uma função social. Essa opção, nunca corrigida, deixou o País com altos índices de violência no campo. E abandonou à própria sorte os povos originários e os herdeiros da diáspora africana, como constatamos com os violentos conflitos que sempre existiram e continuam a eclodir com regularidade nos últimos anos.

    Vale ressaltar que os quilombolas de Conceição de Salinas não estão sozinhos nesta seara: a eles se unem mais de três mil comunidades que se autoidentificam como quilombolas no Brasil. Se olharmos para além das nossas fronteiras, encontraremos grupos étnicos afrodescendentes em muitos países da América Latina: marrons e saramakas, no Suriname, cimarrones e palenqueros na Colômbia, Equador e Peru, creoles, na Nicarágua, boni, na Guiana e garífunas em Honduras e Belize. Todos gozam, em seus respectivos países, de legislações que garantem o direito aos seus territórios, assim como os povos indígenas originários do continente americano, que vivem da Argentina ao Canadá.

    É importante recordar que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, que versa sobre o trabalho dos povos indígenas e tribais. A convenção traduz, com muita ênfase, o anseio e os direitos territoriais desses povos: Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual. Ainda ressalta a importância que deve ser conferida à regularização de suas terras; terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Da mesma forma, o documento sugere que Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.

    A narrativa da autora é um grito entranhado de sentimentos humanos universais – vida e morte – e talvez por isso se torne tão urgente. É nela e através dela que a autora apresenta sua vida, a de seus ancestrais e, por consequência, de seu povo. São narrativas como esta que dão ossatura à história de um coletivo, emanando força; porque foi escrita pela voz singular da autora para falar daquilo que se faz mais relevante e mais íntimo em sua história, que é um fio de vida de uma trama muito maior.

    A luta pela terra envolve a dignidade humana, e não é uma luta apenas dos camponeses, indígenas, ribeirinhos e quilombolas, ou dos que estão em áreas de conflitos. Envolve a todos nós, que consumimos e desejamos alimentos sem veneno. A luta pela terra é pela preservação do ambiente, por nossa biodiversidade, por nossa diversidade étnica e cultural, por justiça climática num mundo que caminha para um colapso irreversível e por uma vida digna para todo e qualquer ser humano.

    Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador (BA), em 1979. É geógrafo, doutor em Estudos Étnicos e Africanos (Universidade Federal da Bahia) e escritor. Seu romance Torto arado, publicado em 2019, venceu os prêmios LeYa, Oceanos e Jabuti.

    APRESENTAÇÃO

    em memória de Alberto Roberto da Costa

    Navegar é tão preciso quanto necessário. Preciso, do verbo precisar, e necessário são palavras de significados semelhantes, entretanto, de escrita e pronúncias diferentes. Não falo do preciso de precisão/objetividade, mas do preciso que tange a necessidade. Navegar em águas, quer sejam calmas ou revoltas, no amor ou na dor e pela necessidade de continuar existindo em re-existência, é inerente aos Povos e Comunidades Tradicionais e à População das Águas. Uns classificam como coragem, outros chamam de impedimento ao desenvolvimento, há até os que atribuem a nossa defesa do modo de ser e viver a comodismo, vadiagem e/ou loucura, visto que nos distanciamos dos modelos do capital e de várias formas nossos opositores nos atacam, inclusive ameaçam nossas vidas.

    Diante de tantos inimigos e navegando em águas complexas — por amor e necessidade, visto que a opção pela luta não é uma escolha —, é notório que tanto no mundo físico, como no espiritual, não navegamos sós. Minha Mãe Preta e toda espiritualidade que me protege têm colocado ao meu lado, de minha família e de minha comunidade, pessoas e grupos para nos apoiar e contribuir na navegação para continuidade de nossa luta frente aos ataques sistemáticos que temos sofridos, que vão desde tentativas de agressão física, até difamação e calúnia. Em uma das muitas ações do capital empresarial, empreitada para fazer naufragar nossa embarcação, criminalizando a mim, minha irmã e outros pescadores e pescadoras que compartilham a área do Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), acusando-nos de um falso crime ambiental, a fim de tomarem para si um direito que é nosso. Alberto, que foi acometido pelo Covid-19 e hoje é um ancestral, posicionou-se com firmeza, confirmando que não largaria as nossas mãos e seguiria navegando conosco (continuará navegando em outras águas e dimensões). De forma muito profunda, ele interpretou meu trabalho e de meu povo. Tal como Alberto sempre estará conosco, suas palavras quero eternizar neste livro e dividir com vocês em homenagem e reconhecimento à sua luta também ancestral.

    Olá, meu nome é Alberto Roberto Costa, eu estou doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB), onde participo do Grupo de Pesquisa Educação, Saberes e Decolonialidades (GPDES/FE) coordenado pela minha orientadora Ana Tereza Reis da Silva. Nas atividades do Grupo de Pesquisa eu conheci Elionice Conceição Sacramento, uma mulher quilombola da Comunidade Conceição de Salinas, na região do Recôncavo Baiano.

    Quero neste vídeo registrar, expressar, todo meu apoio e solidariedade às lutas quilombolas, às lutas indígenas desse país, às lutas das mulheres quilombolas de Conceição de Salinas, principalmente na pessoa de Elionice e de Vânia Sacramento que estão sendo veementemente atacadas nos últimos anos, por estarem dando continuidade à luta ancestral em defesa de seu território contra a especulação econômica da região.

    Elionice escreveu uma importante dissertação, em seu mestrado pela Universidade de Brasília, o Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT/UnB), onde ela implode a ideia de que o Brasil Colônia acabou em 1822, conforme a narrativa que aprendemos na escola. Elionice traz com seus relatos a história de sua comunidade, como a colônia persiste e se remodela em novas formas de opressão nos dias de hoje e como ainda está presente nesse modelo econômico que só destrói o planeta em que vivemos.

    O trabalho de Elionice é também muito mais do que isso. É uma alternativa a esse modelo econômico porque ele traz vários trechos da sabedoria ancestral do seu povo, da sabedoria que é forjada nas lutas e nas resistências, como este trecho que eu quero ler a vocês:

    O território pesqueiro e quilombola é um território de terra-água, com espaços de usos comuns e coletivos utilizados por pescadoras/es e quilombolas, a fim de estabelecerem seus modos de vida, realizando extrativismo de pescados, frutos, folhas, raízes e cultos. O Movimento de Pescadores e Pescadoras da Bahia tem proposto um desenvolvimento pautado no respeito ao território, por meio de um diálogo constante com nossos modos de vida tradicionais e retirando da natureza apenas o suficiente para nossa sobrevivência (Elionice Conceição Sacramento).

    Brasília-DF, 18 de outubro de 2020.

    Alberto Roberto Costa (1977-2021), homem negro, pertencente às religiões

    de matriz africana, professor e arte-educador comprometido com a educação

    antirracista. É autor do livro A Escolarização do Corpus Negro. Integra o

    Grupo de Pesquisa Educação, Saberes e Decolonialidades (GPDES/UnB).

    Prefácio

    por Zane do Nascimento

    Foi com ternura que aceitei o convite de partilhar o prefácio do livro de Elionice Conceição Sacramento na companhia das professoras Ana Tereza Reis da Silva e Geri Augusto. À medida que tentava expressar em palavras a importância desta publicação, diante de tempos tão desesperançosos, fui tomada por recordações afetuosas que tive com a autora, mas respondo aqui ao chamamento de suas críticas contundentes que nos desloca dos ritos iniciáticos do fazer científico prenhe ao atracadouro da colonialidade para, logo depois, lançar-nos ao seu método intitulado pés na lama e corpo imerso nas águas, guiado por marés, luas e ventos do Território Pesqueiro e Quilombola.

    Apresentar Elionice Conceição Sacramento e seu livro ao público brasileiro é saber que em nossas mãos está uma das mais consistentes insubmissões epistêmicas dos últimos tempos, devo salientar que não é lisonjeira empolgação da minha parte. A feitura do livro, ocorrida há dois anos como sua dissertação no âmbito do Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT/UnB), compreende cerca de três décadas de vivências dela, que por pertencimento, identidade e decisão política, mantém-se fincada ao território tradicional.

    Este livro deriva da longa trajetória de militância de Elionice Conceição Sacramento na Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras, Movimento de Mulheres Negras, Escola das Águas e outros espaços de luta e produção de conhecimento. Igualmente, ela parte das re-existências de três séculos apreendidos em oito gerações de mulheres afrodiaspóricas como Conceição, Filomena, Eliza, Mãe Rosa, Tia Esperança, Mãe Zezé, Elisa Hellen, Alice Sacramento, linhagens matrilineares protagonistas dos processos de territorialização, dos aspectos culturais, religiosos e modos de vida da Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas, no Recôncavo Baiano.

    O Movimento Quilombola brasileiro, respeitada a sua pluridimensionalidade e multiescalaridade, consolidou-se como principal ator político desde a promulgação da Carta Magna de 1988, emergindo como sujeito de direitos. Se por um lado o marco constitucional respondeu, parcialmente, às lutas históricas e políticas, de outra parte, impôs nas décadas seguintes o que tem sido chamado de judicialização da vida quilombola, fruto do racismo estrutural e institucional recorrentes em normativas legislativas reacionárias e decisões judiciais desfavoráveis aos direitos territoriais e socioculturais concernentes à identidade coletiva, à autonomia e à autodeterminação dos territórios tradicionalmente ocupados.

    Entre tantos obstáculos da jornada pelas garantias históricas e constitucionais, a morosidade dos processos administrativos da titulação definitiva é a mais preocupante, em razão de incidir sobre o aumento da violência, criminalização de entidades, movimentos e lideranças quilombolas, sobremaneira às mulheres e juventude, do qual o estado da Bahia surge como principal violador de direitos, demonstrado no importante mapeamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Terra de Direitos (2018)¹.

    Infelizmente, o quadro apresentado é a realidade do Território Pesqueiro e Quilombola, podendo ser explicitado a partir da: i) implantação da carcinicultura em larga escala; ii) grilagem e expropriação territorial sob domínio dos empreendimentos imobiliários e turistificação; iii) supressão, queimada e poluição de áreas de matas, roças, pesca e mariscagem; iv) privatização ou obstrução de áreas de uso comum que incidem fortemente na sociabilidade, espaços formativos e pedagógicos inerentes às trocas históricas e culturais dos/as pescadores/as e marisqueiras; v) violência e criminalização dirigida às associações, movimentos, mulheres, juventude e lideranças, sistematizadas e analisadas com profundidade neste livro, por Elionice Conceição Sacramento e seu povo.

    Desse modo, cara leitora e caro leitor, considero que o mote político intrínseco às resistências sociais torna esta leitura incontornável, em nível nacional, para a agenda dos direitos territoriais, culturais e socioambientais. Para a América Latina, sob outra perspectiva, as experiências locais e territoriais do Quilombo Conceição em defesa do modo de vida pesqueiro tradicional podem ser desfrutadas como importante matriz político-ideológica do giro ecoterritorial, leitura adaptada às proposições da socióloga argentina Maristella Svampa (2019)².

    Elionice Conceição Sacramento deve ser festejada por nós como dádiva dos ancestrais, pois foram eles que possibilitaram verter as re-existências históricas em cerca de 4 mil comunidades quilombolas pelo país. Sendo assim, esta leitura surge como possibilidade de restituição do horizonte civilizatório afrodiaspórico diante da sanha extrativista, genocida e epistemicida acirrada diante da maior hecatombe sanitária que vimos se abater sobre a população negra, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Ante a tudo, Dona Maria do Paraguaçu deve estar muito orgulhosa pelas marés de esperança que a grande intelectual Elionice Conceição Sacramento e seu povo representam nos tempos atuais. Boa leitura!

    São Sebastião, Distrito Federal, solstício de inverno de 2021.

    Zane do Nascimento é geógrafa, cientista social e mestranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB).

    Apresenta o programa de podcast Opará.

    Prefácio

    por Ana Tereza Reis da Silva

    O sol brilhava alto naquele 23 de setembro de 2018, quando a barca atracou em Bom Despacho, na Ilha de Itaparica. Dali, pegaria uma condução até Conceição de Salinas, onde colaboraria, juntamente a outras pesquisadoras, lideranças e coletivos, nas atividades do Setembro da Resistência. O evento, além de ser um ato de enfrentamento às violações de direitos sistematicamente perpetradas por forças econômicas e políticas locais, visava ao fortalecimento das lutas da comunidade em defesa de sua identidade e território.

    Aquela viagem a Conceição era a continuidade de meu encontro com Elionice Conceição Sacramento, iniciado há coisa de um ano antes, durante o processo seletivo da 4a turma do Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UnB). Foi a primeira vez que a ouvi falar das ameaças que incidiam sobre seus corpos-territórios, do orgulho de ser uma mulher preta e pescadora, das lutas do passado e do presente, do fortalecimento da memória coletiva e afirmação da identidade quilombola, da fartura e da soberania alimentar que colocava Conceição de Salinas entre os costeiros mais produtivos da Bahia e do Brasil.

    Impressionava-nos a firmeza daquela jovem mulher negra de fala mansa, postura altiva, destemida, quase impenetrável. Para mim, foi um encontro epifânico: à medida que a oralitura de Elionice me familiarizava com Conceição, minha memória me transportava para o território ribeirinho onde nasci e cresci, na confluência dos rios Amazonas e Tapajós. A partir daí, nossos caminhos se enlaçaram, de modo definitivo, em uma parceria/irmandade duradoura que se iniciou com a orientação de mestrado e se estende até hoje, em diferentes campos, mas, sobretudo, nas diversas frentes de luta mobilizadas pelo povo de Conceição.

    Nos dias em que estive convivendo com a comunidade, naquele setembro de 2018, pude compreender a força que emana das falas, dos corpos e dos gestos das mulheres de Conceição. Nesse território protagonizado essencialmente por Elas, Ancestralidade é substantivo próprio e feminino: Conceição! Nome herdado da ancestral mais antiga, mulher negra, de posses, que deu origem à comunidade por volta de 1700, quando mandou construir uma igreja em homenagem à Nossa Senhora da Conceição. Conceição é a ancestralidade que confere sentido à experiência histórica e coletiva da comunidade, é a memória encarnada nos corpos-territórios que cuidam, curam e produzem a vida nestas paragens.

    Como tempo-espaço governado pelas águas, pelos ventos e pelas marés, tudo em Conceição comunica e ensina um outro modo de sentipensar, de ser/estar no mundo: a casa de Mãe Zezé e seu quintal produtivo; as travessias pela praia e pelo mangue para encurtar caminho até a roça; as paradas na orla para contemplar o mar; os múltiplos sentidos das redes que acalantam, buscam o alimento, entretecem alianças; o fogo de chão que convida ao engajamento e mantém acesa a chama da r-existência.

    Foi nesse território-maretório comum — onde se marisca a vida e os saberes que a sustentam, Com os pés na lama e o corpo imerso nas águas — que Elionice Sacramento desenvolveu sua pesquisa engajada e ancestralmente orientada. Uma pesquisa que não se descola da vida porque nela está a sua motivação e o seu sentido último, em que a produção do conhecimento é sempre colaborativa e a comunidade inescapavelmente um sujeito epistêmico. Nisso reside a originalidade teórica e metodológica do estudo que informa a presente obra.

    Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: ancestralidade e protagonismo de mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-BA é um mergulho nas águas de Conceição e na trajetória de suas filhas, mulheres negras que no passado e no presente tecem a história e cultivam os laços que sustentam o comum. Trata-se, por isso mesmo, de uma obra vigorosa, urgente e necessária, que desafia a historiografia oficial e seus apagamentos para (re)contar a história da comunidade em voz própria, cuja referência fundamental é a memória coletiva evocada pelas narrativas das mais velhas e pelo legado das ancestrais.

    Nessa escrita narrativa, o eu enunciativo, ela, as outras e eu da raça de Filomena, corporifica e localiza o conhecimento, evocando e visibilizando as subjetividades que o produzem. Com efeito, mesmo sendo essencialmente coletiva e feita a muitas vozes, a obra também nos permite enxergar Elionice: a pesquisadora-militante e intelectual de fronteira, que soube se apropriar da educação e da escrita — duas instituições profundamente coloniais, brancas, norte-eurocentradas e historicamente propagadoras de epistemicídios —, transgredindo-as em favor da luta e dos direitos de seu povo.

    Estamos diante do que outra Conceição, também mulher e intelectual negra, chamou de escrevivência. A obra dialoga com aquilo que Conceição Evaristo nos apresenta como uma questão central na experiência de mulheres negras escritoras: O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semi-alfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Tento responder, diz Conceição (2007):

    Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere as normas cultas da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ninar os da casa grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (Conceição EVARISTO, 2007, p. 20)³.

    Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas encarna os sentidos de insubordinação que as mulheres de Conceição de Salinas têm mobilizado ao longo de sua história, dentre os quais a escrita é apenas uma das dimensões. Não é, contudo, uma escrevivência para ser lida como história para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos, conforme nos ensina Conceição Evaristo. A obra não se presta à legitimação das interpretações historiográficas hegemônicas e

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