Etnoecologias quilombolas e ribeirinhas: práxis na paisagem e saberes ambientais na Mata Atlântica e Amazônia
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Etnoecologias quilombolas e ribeirinhas - Helbert Medeiros Prado
INTRODUÇÃO GERAL E ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
Helbert Medeiros Prado
Este livro decorre de estudos sobre a ecologia humana e os saberes ambientais na Mata Atlântica e Amazônia Central, a partir da experiência dos autores e autoras entre comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) e ribeirinhas do Lago Amanã (AM). Ele sintetiza os principais resultados obtidos a partir do projeto de pesquisa intitulado A práxis na paisagem e a experiência do conhecimento ecológico entre quilombolas e caboclos (Mata Atlântica e Amazônia)
, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo 2016/04680-4).
O eixo central dos trabalhos são as formas de captação de recursos no ambiente, por parte das populações estudadas, e os muitos modos de interação, com a fauna, a flora e a paisagem em sentido lato, que emergem dessas práticas. Os registros em campo foram feitos a partir de uma abordagem etnográfica baseada em entrevistas e na participação dos pesquisadores em práticas cotidianas locais, como caça, pesca, extrativismo e roça.
Um conjunto de tópicos é desenvolvido ao longo dos capítulos, entre eles: estratégias adaptativas diante de determinantes ambientais, sociais e econômicos; etnoconhecimentos; dimensões epistemológicas e ontológicas do conhecimento; tomadas de decisão sobre uso de recursos naturais; memória; gênero e interfaces entre saber tradicional, conhecimento científico e ensino formal. O livro está organizado nas três seções descritas a seguir.
A seção 1, intitulada Contextualização socioambiental e referenciais teórico-metodológicos
, é composta pelos capítulos 1 e 2. O capítulo 1, Aspectos sociais e ambientais em Amanã (AM) e Vale do Ribeira (SP)
, apresenta as áreas estudadas em sua dimensão social, assim como os ecossistemas nos quais elas se inserem. Sobre o contexto do Amanã, na Amazônia Central, especial atenção é dada à dinâmica sazonal das águas, importante fator responsável pela diversidade das fisionomias vegetacionais presentes na região, do componente faunístico e das atividades humanas ali desempenhadas. No caso do Vale do Ribeira, são os mares de morros
que se destacam, formando pequenos vales que pontuam o relevo recortado. Foram nesses locais que se formaram pequenos povoados de uma população outrora escravizada, originando as dezenas de comunidades quilombolas que hoje ali vivem. Nesse mesmo capítulo, elementos históricos, culturais e transformações econômicas das populações estudadas também são abordados, bem como aspectos da práxis cotidiana dos indivíduos e do que poderíamos chamar de um ethos na forma de capturar recursos do ambiente, como no cultivo, no extrativismo, na pesca e na caça.
No capítulo 2, Etnoecologia, dimensão ontológica e abordagem etnográfica
, o referencial teórico-metodológico que orientou e unificou os estudos aqui reunidos é introduzido. Partindo do campo teórico da ecologia humana e da antropologia ambiental, a etnoecologia é contextualizada em sua interface com teorias que envolvem práxis e ecologia. A etnoecologia também é tomada em sua relação com questões e conceitos associados ao chamado giro ontológico
na antropologia. O modo como mobilizamos o método etnográfico, sob forte orientação fenomenológica, e conceitos como história de vida e memória, também são expostos à luz das questões por nós aqui desenvolvidas.
A seção 2, intitulada Práxis, cotidiano e dimensão ontológica
, é composta pelos capítulos 3, 4 e 5. O Capítulo 3, Etnografia e história natural: narrativas sobre caça e ecologia entre quilombolas no Vale do Ribeira
, traz elementos do trabalho etnográfico sobre a experiência da caça no Vale do Ribeira (SP). Convergências entre conhecimento tradicional e repertório científico são discutidas. Os registros de uma práxis quilombola na paisagem também mostram um modo especial de interação com a fauna local. Pormenores de um cotidiano de caça, perpassado por contingências do dia a dia, preferências pessoais, gostos, odores e sabores, são trazidos à lume e discutidos a partir de corpus teórico oriundo tanto da ecologia como das ciências sociais.
No Capítulo 4, Ciência simpática: analogismo e etnoconhecimentos quilombolas e ribeirinhos (Vale do Ribeira e Amanã)
, uma análise ontológica é mobilizada de maneira mais verticalizada. Nela, à luz da chamada virada ontológica
na antropologia, em particular de sua expressão na obra de Philippe Descola, um estudo comparativo entre os contextos quilombola e ribeirinho é apresentado. Aqui, o registro do uso de plantas e animais nos dois contextos etnográficos, para fins medicinais, mágico-religiosos, entre outros, nos revela um mesmo modo de operação da pensée, tanto quilombola como ribeirinha, estruturando essas práticas. Com base nesses resultados, o capítulo também apresenta uma hipótese acerca de uma assinatura colonial portuguesa presente nos conhecimentos tradicionais no contexto de populações rurais (não indígenas) no Brasil em âmbito geral.
De forma complementar, o capítulo 5, intitulado Saber local e ensino formal: percepções quilombolas e tensões ontológicas em perspectiva (Vale do Ribeira)
, explora a temática envolvendo práticas tradicionais e dimensão ontológica na esfera das interações entre saberes ancestrais e ensino formal de crianças e jovens quilombolas. Esse é um tópico que preocupa sobremaneira as lideranças quilombolas da região, que veem muitos de seus jovens distantes das tradições locais. Perda, resiliência e ressignificação dos saberes tradicionais são discutidas nesse capítulo, tomando os desafios do ensino diferenciado quilombola como elemento chave para o futuro desses repertórios. Uma discussão que extrapola a escala local e nos faz refletir sobre os desafios da educação diferenciada no contexto multiétnico que caracteriza o território brasileiro.
A seção 3, Gênero, ecologia humana e memória
, apresenta os capítulos 6, 7 e 8. O capítulo 6, Tabus e ecologia simbólica entre mulheres quilombolas e ribeirinhas (Vale do Ribeira e Amanã)
, abre essa seção com um estudo comparativo entre os dois contextos etnográficos, focando a temática sobre sistemas de tabus que incidem especialmente sobre as mulheres e sua interface com a ecologia humana. Usos da fauna e flora mediados por crenças em tabus são especialmente discutidos, bem como paralelismos e particularidades desse conjunto de crenças nesses dois contextos. Com o intuito de aproximar a etnobiologia de referências antropológicos clássicos e atuais, os conceitos de pureza e perigo de Mary Douglas e o analogismo de Philippe Descola são especialmente mobilizados para a compreensão desse tipo de repertório. A exemplo do capítulo 4, os achados aqui reunidos, por abrangerem comunidades no norte e sudeste do Brasil, convidam a uma reflexão sobre as regularidades presentes nas crenças em tabus no Brasil rural em seu vasto território, sobre suas origens, bem como acerca do papel relativo do componente indígena, africano e europeu na sua constituição.
O Capítulo 7, A mulher e a roça: memórias e conhecimentos quilombolas no Vale do Ribeira
, foca o relato das mulheres sobre seu envolvimento nas práticas de cultivo. Suas atividades e saberes agrícolas também são apresentados. Suas falas revelam crenças e práticas mágicas que, na esfera das representações simbólicas, adicionam um importante elemento para a compreensão da mulher quilombola e sua relação com a roça na região. No Vale do Ribeira quilombola, recaem sobre a mulher tanto tarefas de reprodução social, na criação dos filhos, como de produção na roça. Nelas também convivem, como pudemos registrar em suas falas, tradição e modernidade, assim como angústias e oportunidades frente aos desafios atuais de suas comunidades.
Com a adoção de abordagem semelhante, o capítulo 8 intitulado ‘Amazonas’ do grande lago: saberes e fazeres na voz de três mulheres em Amanã
, fecha a seção com o foco em relatos sobre captação de recursos entre mulheres do Lago Amanã. As falas de Augustinha, Dita e Dica revelam a centralidade delas nas tomadas de decisão acerca das práticas produtivas, na captação de recursos na paisagem, bem como no domínio de técnicas e saberes específicos. Mata, rio, espingarda e anzol. Esses são (também) seus domínios espaciais e tecnológicos de atuação naquela paisagem, seja auxiliando seus companheiros, os liderando, ou mesmo em atividades solo. Aqui o lugar da mulher parece espraiar-se para muito além do espaço da casa e seu entorno imediato — os jardins-quintais — como geralmente descrito para o campesinato amazônico de forma geral.
Por fim, as conclusões trazem uma síntese sobre as principais contribuições de cada capítulo para os tópicos pertinentes a cada seção em particular. Contribuições mais gerais à luz da ecologia humana e das etnociências desenvolvidas no Brasil e sua interface com a produção acadêmica internacional também são discutidas. No âmbito acadêmico mais abrangente, o presente livro visa a impulsionar no Brasil um diálogo mais produtivo entre ecologia humana, etnociências e antropologia. Espera-se que a obra seja utilizada por alunos de graduação e pós-graduação, professores, acadêmicos, gestores públicos e integrantes do terceiro setor; além de todos interessados em populações tradicionais, conservação ambiental, Mata Atlântica, Amazônia, políticas socioambientais e temas afins.
SEÇÃO 1
CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIOAMBIENTAL E REFERENCIAIS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Capítulo 1
Aspectos sociais e ambientais em Amanã (AM) e Vale do Ribeira (SP)
Helbert Medeiros Prado
Neste capítulo, apresentarei o ambiente natural e social das populações abordadas nos estudos aqui compilados. Em caráter descritivo, tomarei a escala macrorregional como ponto de partida, passando pelo ambiente das comunidades até chegar às pessoas com as quais trabalhamos e que deram vida aos estudos aqui presentes.
Em outro eixo, farei uma breve discussão sobre categorias identitárias associadas às populações aqui abordadas. Nesse caminho, alguns conceitos, como quilombo, quilombola, caboclos, arigós e ribeirinhos, serão contextualizados. A complexidade inerente a essas terminologias, com suas camadas históricas, políticas, étnicas, entre outras, certamente escapará a esse esforço introdutório. Ainda assim, uma rápida visita à origem dessas noções identitárias e a alguns autores centrais que vêm discutindo suas muitas implicações, além de organizar nosso pensamento sobre essas coletividades per se, poderá ajudar o leitor a identificar o modo como essa plêiade de signos está sendo utilizada ao longo dos demais capítulos aqui presentes.
Vale do Ribeira, as comunidades estudadas e as pessoas
Situado em uma porção geográfica entre o sudeste de São Paulo e o nordeste do Paraná, a região do Vale do Ribeira é parte de um complexo de unidades de conservação que forma a maior área contínua de Mata Atlântica ainda existente no Brasil (RIBEIRO et al., 2009). A região é particularmente marcada pela presença do rio Ribeira de Iguapé, se estendendo por cerca de 470 km, desde o Parque Nacional dos Campos Gerais, cerca de 100 km de Curitiba, até o município paulista de Iguape. Nesse percurso, corta serras, abastece cidades, abriga grandes bananais, em suas margens, e figura como importante referência mnemônica e cultural para sua população.
Quente no verão, entre outubro e março, e ameno no inverno, o clima na região é, sobretudo, influenciado pelo Atlântico, que traz altos índices de umidade para suas florestas ombrófilas ricas em biodiversidade e espécies endêmicas. Em particular, no contexto do que chamamos de Médio Ribeira, em que nossos estudos estão localizados, o relevo é bastante acidentado, formando o que Aziz Ab’Saber (1924-2012) nomeou de mares de morros
. Esses que se espraiam na paisagem como sucessivos montes florestados de beleza ímpar.
A região também é marcada por uma rica história associada às primeiras frentes de entrada dos bandeirantes para o interior do então novo território português de além mar. Ouro, arroz e chá sintetizam os principais ciclos de produção de riquezas, em larga escala, já experimentados na região (PAIVA, 1993; QUEIROZ, 1967; VALENTIN, 2006). Com forte presença no Vale, desde pelo menos os anos de 1950 (ARRUDA; PEREZ; BESSA JUNIOR, 1993; PAIVA, 1993), atualmente é a bananicultura que destaca a região como a maior produtora dessa cultura no Brasil (IBGE, 2017). Considerando apenas o plantio de várzea, uma rápida consulta à plataforma Google Earth dá a dimensão dessa produção, que praticamente cobre toda a extensão das duas margens do rio Ribeira entre as cidades de Eldorado e Registro. Nos últimos 20 anos, o palmito amazônico (Bactris gasipaes) vem ganhando espaço na região, em uma trajetória que ainda parece ascendente (ANEFALOS; MODOLO; TUCCI, 2007; IANOVALI, 2015).
Talvez por seu relevo muito acidentado, somado ao complexo de unidades de conservação criadas no rastro do movimento ambientalista brasileiro, a partir dos anos de 1980, grandes projetos de infraestrutura jamais foram levados a cabo na região. Ali ainda encontramos os menores índices de desenvolvimento humano do estado de São Paulo (GALVANESE; FAVARETO, 2014). Em contraste, suas populações caiçaras e indígenas, e suas colônias japonesas e comunidades quilombolas, fazem da região um grande mosaico de povos tradicionais de inestimável valor histórico, cultural e acadêmico.
Nos estudos aqui apresentados, me concentrarei no componente quilombola da região, que hoje soma 66 comunidades identificadas; 21 são oficialmente certificadas como remanescentes de quilombos pelo Estado, mas apenas seis obtiveram a titulação de suas terras, integral ou parcialmente, até o momento da escrita deste texto. Dentre essas, temos Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, nas quais realizei a pesquisa de campo. Essa ocorreu, entre 2017 e início de 2020, quando a chegada do covid-19 me fez suspender os trabalhos in situ.
Poderia dizer que, em Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, assim como nas demais comunidades quilombolas da região, a atividade de roça ocupa posição central na formação de sua identidade enquanto lavradores, de sua práxis cotidiana, suas crenças e seus conhecimentos sobre os fenômenos e os seres da natureza (ANDRADE; TATTO, 2013; MUNARI, 2009; NOVAES et al., 2008; PRADO; MURRIETA, 2018). Não por acaso, o cultivo de corte e queima (coivara) praticado pelos quilombolas da região foi recentemente reconhecido como patrimônio cultural do Brasil (BRASIL, 2018).
São cerca de 40 domicílios, em Pedro Cubas, e 35 em Pedro Cubas de Cima (ISA, 2017). Desse universo, destaco aqui algumas pessoas com quem há muito venho compartilhando experiências no local, como Antônio Jorge, Leide, Diva, Agenor, Zé Brás, Zé Furquim e Marco Furquim. Seja por terem sempre me recebido de portas abertas em suas comunidades e lares, por terem me apresentado a outras famílias com quem passei a conviver, seja pelo longo tempo de amizade, respeito e cumplicidade, a eles serei sempre grato.
Minha experiência na região enquanto pesquisador já somava cerca de seis anos antes da vigência do projeto que encerra a feitura deste livro. Expedições pelas matas, visitas às roças e muita conversa ao pé do fogo, regada ao típico café com banana frita e farinha, resultaram em experiências pessoais que certamente moldaram as pesquisas que viriam em sequência. Naqueles tempos, trabalhei intensamente na comunidade de São Pedro. As memórias afetivas da convivência com Edu, Aristides, Antônio Morato, Elvira e, especialmente, Eliseu certamente estarão aqui também impressas.
Lago Amanã, as comunidades estudadas e as pessoas
O Lago Amanã, com seus 2-3 km de largura ao longo de seus 45 km de comprimento, faz parte de um contexto ambiental formado por uma das maiores áreas protegidas de floresta tropical na América Latina, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDS Amanã). Na região de interflúvio entre o rio Negro e Japurá, a RDS Amanã ocupa uma área de 2.350.000 hectares. Abrigando rica biodiversidade de plantas e animais, suas matas e feições na paisagem são variadas, incluindo matas de terra firme, florestas de igapó, campinaranas e várzeas (QUEIROZ, 2005). A RDS Amanã também é Patrimônio Mundial da Unesco e forma, com outras unidades de conservação, o chamado Complexo de Conservação da Amazônia Central, tido como um dos contextos mais biodiversos do planeta (NASCIMENTO, 2019a).
O regime climático na região é marcado por altas temperaturas e elevados índices pluviométricos o ano todo (ALVARES et al., 2013). Como em grande parte do bioma amazônico, os pulsos hídricos sazonais na região são marcantes, fazendo oscilar o nível do Lago Amanã em até 10 metros entre os períodos de cheia e vazante. Essa dinâmica ambiental reverbera, de modo expressivo, na vida do ribeirinho, no modo como obtêm seu alimento e sua renda ao longo do ano. Nesse contexto, a pesca, a caça, a roça e o extrativismo se complementam numa rede de estratégias mobilizadoras de complexas leituras do ambiente e sua dinâmica espaço-temporal (NASCIMENTO, 2019a).
A região do Lago Amanã também esteve inserida, de forma direta ou indireta, nos dois grandes ciclos comerciais ligados à exploração de recursos florestais amazônicos dos últimos 150 anos, o látex e a caça (ANTUNES; SHEPARD; VENTICINQUE, 2014; WEINSTEIN, 1993). O povoamento ribeirinho da região teria se dado, ao longo das primeiras três décadas do século XX, em boa medida, por famílias oriundas de antigos seringais distantes dali, como no alto rio Juruá (ALENCAR, 2009, 2010). Já o comércio de peles e couros da fauna, que na Amazônia foi ganhando o espaço da borracha nas primeiras décadas do século XX (ANTUNES; SHEPARD; VENTICINQUE, 2014), também esteve muito presente na memória e nas narrativas de nossos interlocutores mais velhos da região.
Tefé, cidade com aproximadamente 60 mil habitantes, é o principal referencial urbano e comercial para as comunidades do Lago Amanã com que tive contato. É para lá que muitas famílias se dirigem, em viagens mensais, para levar suas mercadorias, principalmente a farinha, receber suas aposentarias, realizar compras, passar por consultas médicas, visitar parentes, entre outros fazeres e compromissos. É também em Tefé que se encontra a sede do Instituto Mamirauá, importante autarquia ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Desde 1999, o Instituto vem produzindo conhecimentos e construindo experiências sobre a sociobiodiversidade amazônica, seu manejo e sua gestão. É o Instituto que administra a RDS Amanã e mantém uma interlocução constante com sua população.
No Lago Amanã, conheci as comunidades de Bom Jesus do Baré, Santa Luzia do Baré, Boa Vista do Calafate, Ubim e Boa Esperança, porém concentrei os trabalhos nessas três últimas. Em Boa Esperança, a maior comunidade do Lago Amanã, com cerca de 70 domicílios, encontrei abrigo na residência de Joca e Maria, os quais há muito recebem pesquisadores trabalhando na região. Em Boa Vista do Calafate, comunidade com cerca de 15 domicílios, tive contato com homens e mulheres muito experientes que contaram suas histórias e compartilharam seus conhecimentos. Durante os trabalhos em Calafate, permaneci instalado na base flutuante do Instituto Mamirauá, sob os cuidados de Israel, a quem sou muito