Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Histórias de um tempo sem tempo
Histórias de um tempo sem tempo
Histórias de um tempo sem tempo
E-book96 páginas1 hora

Histórias de um tempo sem tempo

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O que faz a vida valer a pena?
Todo mundo já se fez essa pergunta ao menos uma vez. Há quem diga que é o sucesso profissional, há quem diga que são as viagens, há quem diga que é o legado que deixamos.
Terezinha Fontana tem outra resposta: o que faz a vida valer a pena são as relações que construímos – nossos pais, avós, filhos, netos... e até aqueles amigos e conhecidos que nunca mais vimos, mas que deixaram sua marca em nós.
E é isso que ela traz nesta delicada autobiografia, que nos emociona, nos faz rir e chorar, e não nos deixa esquecer que, se olharmos bem, encontraremos amor por toda parte.

Terezinha Fontana nasceu em 1935 em Bom Retiro do Cruzeiro, hoje Luzerna, Santa Catarina. É psicóloga formada pela Universidade de São Paulo, curso no qual ingressou com mais de 40 anos de idade. Também é pintora, escultora e foi voluntária como copista de livros em braile para a Fundação para o Livro do Cego, atual Fundação Dorina Nowill. A exemplo do pai, Attílio Fontana, fez exercícios a vida inteira, mas só aprendeu a nadar aos 83 anos, quando também decidiu publicar este livro de memórias. Tem três filhos e oito netos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de fev. de 2019
ISBN9788587740571
Histórias de um tempo sem tempo

Relacionado a Histórias de um tempo sem tempo

Ebooks relacionados

Biografia e memórias para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Histórias de um tempo sem tempo

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Histórias de um tempo sem tempo - Terezinha Fontana

    CAPÍTULO 1

    Quando resolvi escrever, foi com a intenção de registrar para meus descendentes as grandes mudanças que aconteceram no curto espaço de tempo que cabe em minha memória. Mas não consegui fazê-lo sem misturar com as vidas das pessoas com quem tinha mais proximidade, e também com a minha própria vida.

    Nasci pouco antes da Segunda Guerra Mundial, em 1935. A guerra começou em 1939, quando eu tinha 4 anos, e acabou em 1945. Quando cheguei aos 7 ou 8 anos, o Brasil estava sob a ditadura de Getúlio Vargas. Este, inicialmente, foi simpatizante do fascismo e do nazismo. Mas, depois, frente à pressão dos EUA, nosso país ficou ao lado dos Aliados, que eram, principalmente, Inglaterra, França e EUA. Daí por diante, os alemães, imigrantes, passaram a ser perseguidos pela polícia brasileira, principalmente em Santa Catarina, onde havia um grande número deles.

    É bastante típica a rejeição aos imigrantes quando eles chegam em grande número. Essa rejeição se agrava quando tais imigrantes são mais bem-sucedidos em seus empreendimentos do que os nativos. Foi assim com os judeus na Europa, e foi assim com os alemães em Santa Catarina: tornaram-se objeto de ódio. Não podiam mais falar alemão, nem mesmo em casa. Não podiam ter rádio. Muitos imigrantes ainda não tinham aprendido a falar português, e isso bastava para serem presos. Dizia-se que, uma vez na cadeia, eram obrigados a tomar grandes doses de óleo de rícino, um produto da mamona, que é um purgativo violento. Esse óleo tem um gosto horrível e, em grandes quantidades, destrói a flora intestinal. Muitos infelizes colonos alemães nunca se recuperaram totalmente.

    Claro que tudo isso, eu, com 7 ou 8 anos, não sabia. Mas já conhecia o gosto do terrível purgativo que nos faziam tomar, em pequenas doses, para qualquer dor de barriga ou de cabeça, ou até mesmo calo no dedo do pé… Então, quando minha avó, em voz alta, me chamava de alemana, eu ficava com muito medo de que alguém ouvisse e eu fosse para a cadeia. Acho que esse risco não existia. Não com minha idade. Mas, para mim, criança, aquilo causava verdadeiro pavor.

    O que sei sobre meus avós maternos é que vieram da Alemanha já com vários filhos. No Brasil só nasceram minha mãe e sua irmã mais nova, minha tia Gisela (leia-se Quísela, na pronúncia alemã). Eles deixaram sua terra natal pouco antes da guerra de 1914, a Primeira Guerra Mundial. Minha avó tinha duas irmãs muito religiosas que já haviam migrado pouco antes para cá. Praticavam a religião católica, que era predominante no Sul da Alemanha, próximo à Floresta Negra, no estado de Baden-Württemberg. Elas afirmavam ter visões. Essas visões diziam que a Alemanha teria tempos terríveis. Daqui, escreviam cartas em que tentavam convencer minha avó a vir também para o Brasil. Meu avô, que não era muito religioso, duvidava de tais profecias; aparentemente, ele era um homem que tinha alguma cultura. Segundo meu pai me falou, ele era um tipo bastante bem-humorado; quando minha avó o convidava para ir à missa, por exemplo, ele brincava: Veja, mulher, alguns preferem ir à missa, outros preferem comer queijo. Você prefere ir à missa… Eu prefiro o queijo. Mas aos poucos foi vencido pelo cansaço, e vieram para o Brasil. Foram para Porto Alegre, e foi lá que minha mãe nasceu.

    Não sei quantos filhos homens eles tiveram, mas sei que um deles naturalizou-se brasileiro e, em consequência, foi para o Exército. Quando de lá retornou, havia contraído o mal de Hansen, ou hanseníase, popularmente conhecido como lepra. O Brasil estava passando por uma epidemia da doença, e, na época, não se sabia como acontecia o contágio. Hoje sabe-se que a doença é contraída no ambiente, no próprio domicílio onde vive um doente. Mas, naquele tempo, a lepra era vista mais ou menos como foi vista a Aids nos anos 1980. Era uma doença bíblica, tida como uma consequência do pecado. Os portadores eram evitados.

    Sobre minha irmã e sobre mim recaíram suspeitas. Minha mãe também havia sido diagnosticada com essa doença e, por isso, fora transferida para um hospital em São Paulo; devido à proximidade de nosso convívio com ela, muitos achavam que poderíamos ter sido contaminadas. Uma vez, minha irmã chegou à casa de uma prima nossa, onde várias mulheres reunidas tomavam mate doce. Mate doce é a versão feminina do chimarrão – no lugar de água pura, usa-se água com açúcar (ou, melhor ainda, leite fervido com açúcar e canela); é muito apreciado pelas mulheres e também pelas crianças. Minha irmã perguntou se podia tomar um. Responderam-lhe que não, pois ela poderia passar para os outros uma terrível doença. Foi-lhe dito em italiano: Una brutta malattia (uma doença feia). Minha irmã foi para casa chorando. Tinha 7 ou 8 anos.

    Pela mesma razão, éramos examinadas anualmente por pessoas que, acredito eu, eram agentes da saúde pública. Vinham de Florianópolis. O exame era doloroso, pois raspavam a mucosa do nariz com um pequeno instrumento de metal. Quando essas pessoas chegavam, lembro-me que tentávamos nos esconder, ou subir em árvores. Mas eles sempre nos pegavam. Nunca encontraram vestígios da doença, graças a Deus. Além disso, todos os anos nosso pai nos levava a São Paulo, onde tínhamos dois deveres primordiais: visitar minha mãe e passar por uma consulta com professor Aguiar Pupo, doutor de dermatologia.

    As visitas à minha mãe eram penosas para todos. Não havia abraços nem beijos. Não podíamos nos tocar. As cadeiras estavam marcadas: as que tinham fita vermelha eram para os doentes; as outras eram para nós, visitantes.

    Minha mãe foi internada aos 22 anos e faleceu aos 29. Não imagino como ela pôde aguentar esses sete longos anos. Ficar longe do marido, da filha pequena, de toda sua família. Seus anos de juventude perdidos.

    Minha avó alemã ficou indignada com o fato de meu pai tê-la internado. Mas o que mais ele poderia fazer? A internação era obrigatória. Meus avós maternos preferiam ocultar a vergonha. O filho que tinha sido contaminado no Exército foi mantido em casa, escondido, até poder ser mandado para a Alemanha, para se tratar em um hospital especializado. Contaram-me até que o deixavam isolado no porão. Minha mãe, com pena, ia ter com ele, para ajudá-lo, levar-lhe alimentos e pegar sua roupa suja para lavar. E ela mesma lavava a roupa. Naquele tempo, lavavam a roupa no rio. Contaram-me que as outras irmãs, quando lhes tocava lavar alguma peça do doente, soltavam-na para ser levada rio abaixo. Por essa razão, era minha mãe quem sempre lavava a roupa do infeliz irmão. Nessa convivência mais próxima, ela foi contaminada.

    Ao se casar, meu pai não ficara sabendo da doença de seu cunhado, e minha mãe engravidou logo em seguida. Uma gestação sempre fragiliza o corpo da mulher, pois suas defesas ficam comprometidas, e foi nesse período que a doença começou a se manifestar nela. Imagino que, com medo de ser tratada como tinham tratado seu irmão, ela tentou negar para si mesma e esconder das outras pessoas a tragédia que estava vivendo.

    O irmão doente foi mandado para a Alemanha, onde foi internado em um hospital de doenças ditas tropicais. Não era uma doença originária do trópico. Existia em Israel no

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1