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Epidural
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E-book150 páginas1 hora

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Sobre este e-book

Viagem sobre as várias facetas da natureza humana, naquilo que ela tem de mais improvável, doentio e gratificante. Contos que nos levam a sítios onde nunca pensámos ir. Os intervenientes são várias pessoas com quem me cruzei e as suas histórias, embora ficcionadas, relatam vivências que nos deixam muitas vezes incrédulos. Em Desgaste, há uma idosa deixada num lar por abandono familiar. Em Ruminante, a baixa autoestima e o analfabetismo originam o desprezo pela protagonista. Em Destro, há total desrespeito por quem tem algum tipo de deficiência física. Em Judite Aprendiz, há uma linha ténue entre o normal e a loucura.
As vinte e seis histórias, apesar de relatarem situações extremas, não perdem credibilidade e ganham impacto à medida que nos debruçamos sobre elas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de fev. de 2023
ISBN9791222078236
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    Pré-visualização do livro

    Epidural - Filipa Valdez Wilson

    Agradecimentos

    A todos os contadores de histórias que me incentivaram a imaginação, e a meus pais, que me deram o privilégio de existir...

    Prefácio

    A autora assumiu a tarefa quase ciclópica de preencher um espaço tão exigente como a natureza humana nos seus acordes mais fortes, misturando alguns vibratos.

    Com a mestria de uma compositora de histórias, vai criando esta perfeita harmonia, recheada de emoções. Triste porque chegou ao fim, mas enriquecido pelo privilégio de ver desabrochar uma escritora.

    Alexandre Sousa

    mentor que privilegiou a minha existência

    A CAMPA

    Foi um grilo que me acordou a lembrar da primavera. O que me incomodava não era o seu cantar ou uma das pernas meia torta, era o nascimento selvagem de papoilas, trevos, algumas ervas daninhas à volta da campa a celebrarem o acontecimento em vez de o silenciarem. O silêncio era idêntico às batidas do meu coração, cronometrado, leve, quase inaudível, soturno. No entanto, a primavera em todo o seu esplendor colidia com o meu ar sombrio, tornando o acontecimento mais suportável.

    A nossa casa parecia um casebre, miserável, rústica segundo meu pai, tornava-se mais cómoda e acessível à medida que as cores luminosas dos finais de abril incidiam sobre ela, ganhando confortos inusitados impossíveis noutras estações do ano. As condolências perdiam significado perante a importância do dia, fazendo-me lembrar das manifestações reivindicativas e das inevitáveis paragens nas bancas dos coiratos. Meu pai ria de satisfação, deixando ver restos de gordura nas reentrâncias dos dentes e vinho a escorrer pelos cantos da boca. Esse cenário aparentemente repulsivo era o único que me deixava felizes recordações porque depois segurava-me pela mão e fazia brincadeiras que ainda hoje me inebriam o coração. A maior parte do trajeto era feita às suas cavalitas, mesmo sabendo que o meu peso o deixaria alquebrado prematuramente, depois era um deixar-me ir, repetindo o povo unido jamais será vencido e 25 de abril sempre.

    Por que tinhas de morrer num dia tão importante para os dois?

    A campa foi cuidada por mim nos primeiros anos, arrancava tudo o que fosse nocivo à sua volta e pintava, com regularidade, a cruz enterrada na terra, às vezes, revolvida por toupeiras e outros seres subterrâneos. Ela ocupava, orgulhosa, um lugar no nosso terreno a um quilómetro da casa, mal medido, perto duma figueira frondosa que deixara de dar figos após ter a companhia de meu pai. Foi fácil perceber que a árvore só rejuvenesceria se a campa mudasse de lugar, o facto de ser uma das minhas fontes de sustento abonava a seu favor e deixava-me entre a espada e a parede.

    Meu pai morreu de isolamento, a bem da verdade, morreu de cegueira por não conseguir ver quem lhe estava perto. Foi doença contraída ao longo dos anos porque se deitava nos louros que ia conseguindo e recusava a ajuda dos que lhe eram próximos. Era exímio a desafiar convenções e organizava jornadas de luta contra o que julgava ser injusto. Lutou pela igualdade de género e foi fervoroso defensor da homossexualidade, criou com isso o rumor de que pudesse ser um deles. O seu maior requisito assentava na vontade indomável de renegar o instituído, faltando-lhe, sem isso, propósito para continuar. Julgou conseguir tudo à revelia de mim e dos outros porque se fizera à vida, sozinho, com dez anos, criando o paradoxo de não precisar de ninguém quando sem nós carecia de identidade. Foi dele a frase, agora minha, Mal de mim se não for eu!

    Foi macabro mudar o corpo de lugar para que a figueira vingasse, gesto imprudente que me fez sentir culpado para o resto da vida. A árvore continuou morta, a rir-se de mim, a ofuscar a paisagem e a confirmar a irracionalidade do meu ato. Com isso tinha agredido o solo e desrespeitado meu pai. Foi então que mandei cremar o seu corpo, coloquei as cinzas num pote e jurei não mais desprezá-lo neste mundo ou noutro.

    Justina vem muitas vezes visitar-me, observo-a a contemplar o pote com adoração, muda, quieta como se quisesse parar o tempo, gravar o momento, depois choramos os dois, cansados da integridade que dele transpira antes de transbordar para o ambiente. Quando a atmosfera se torna irrespirável, ambos saímos para o alpendre, magoados com a sua morte prematura, apesar de sermos filhos de mães diferentes. Curiosamente ambos nascemos no mesmo dia, na maioria das vezes abdicávamos da sua presença nessa data por estar a comemorar o Dia da Liberdade nas ruas de Lisboa e não conseguir estar nos três sítios ao mesmo tempo.

    Enquanto me agacho para atiçar o lume da lareira, observo-a e vejo nela os traços do nosso pai, um pouco mais pesados pelo sofrimento e pela recusa em amar-se a si própria. Justina tem uma fase negra idêntica à minha por termos herdado o desapego familiar e o desamor dos outros. Depois, observamos a arma com que meu pai se suicidou, guardada na gaveta da minha mesa-de-cabeceira, à espera que lhe dê uso quando achar a vida longa demais. Hoje, por ser um dia excecional, é impróprio para atos dessa natureza, até Gabiru está feliz por comer os figos mirrados e secos que caíram da árvore, chafurdar junto ao tronco e correr atrás de Justina. Convidei-a para pernoitar na minha casa, curiosamente não recusou, o que a tornou menos desvalida a meus olhos e mais relevante na minha vida!

    Ontem, sem razão aparente, pediu-me que acabasse com a sua vida e que pusesse as cinzas numa urna junto à do nosso pai! Apesar de surpreendido com essa exigência, achei abusivo que me pedisse algo reservado só para mim. Foi como se me lesse o pensamento e o transferisse para ela. Neguei-lhe o pedido e só sossegou quando lhe garanti que o faria se o seu caso fosse mais premente que o meu. Falou-me então do abandono por parte da mãe, das raras visitas do nosso pai, dos abusos físicos e verbais a que foi sujeita na escola, das sovas que levava do companheiro e, por consequência, da morte prematura do filho que carregava no ventre. Salientava a inadaptação e sofrimento como caraterísticas intrínsecas e singulares impossíveis de contrariar, para depois se rir por desabafar pela primeira vez com alguém enquanto saíamos para a rua.

    Há um ano que a figueira voltou a dar frutos, os narcisos a florir à sua volta, ambos reacendem a esperança na natureza, não em mim, cuja curva descendente já ultrapassa o subsolo sem me deixar alternativas! Talvez, por isso, olhe o acordar da manhã, onde se desenvolve uma névoa cerrada a um metro do chão, fazendo da figueira um esboço, com desânimo e melancolia. Só a terra revolta, onde estava sepultado o nosso pai, permanece visível a desafiar o denso véu de neblina e a lógica do tempo. Não sei por que a minha irmã decidiu morrer neste cenário, enquanto eu apanhava os figos caídos no chão e Gabiru ladrava de contentamento!

    Talvez fosse a sua forma de me dar o exemplo.

    RUMINANTE

    O teu nome?

    – Rafaela Ruminante.»

    – Põe-te de frente, e de perfil. Roda o dedo no carimbo e pressiona-o no papel. A impressão digital tem de ficar bem visível. Não te armes em esperta, aqui não tens amigos!

    Poderia voltar atrás, há uma semana, quando tudo aconteceu, mas a realidade vinha de mais fundo, vinha do meu mundo de criança a apanhar lenha para eu e meus irmãos resistirmos aos rigorosos invernos daquele sítio ermo, sem nome, só com uma casinhota, a nossa, que se erguia orgulhosa no meio da vegetação. O orgulho ficava-se por esse casebre paupérrimo onde sobrevivíamos a custo, alimentados de humilhação. Foram anos de tragédia. Meu irmão mais novo, vítima de meningite, acabou por falecer muito antes de dar os primeiros passos. Minha mãe tinha partido, cansada de tanta renúncia, com a promessa de um dia mais tarde voltar para nos dar vida melhor. Do meu pai pouco sabia, nunca o conheci, só que fora recluso e, se fosse vivo, padrasto de meus irmãos. Era eu quem alimentava a prol com os coelhos que caçava e o peixe que João Abelhudo me oferecia como esmola quando por ali passava semanalmente na carripana da venda.

    Minha mãe era conhecida por Francine, parecia-me mais nome de estrelato que de batismo, no entanto, ela obrigava-nos a articulá-lo de uma forma ridícula dando-lhe a ênfase que ele não merecia. Fora isso, comportava-se como alguém

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