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"caetés" Por Graciliano Ramos
"caetés" Por Graciliano Ramos
"caetés" Por Graciliano Ramos
E-book260 páginas2 horas

"caetés" Por Graciliano Ramos

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Sobre este e-book

Caetés é o primeiro romance escrito por Graciliano Ramos, publicado em 1933. A história se passa na fictícia cidade de Viçosa, em Alagoas, e apresenta um retrato profundo e crítico da sociedade local. O protagonista, Padre Luís, é um líder religioso que, ao retornar à sua cidade natal, tenta promover mudanças e melhorias na comunidade. No entanto, ele se depara com uma série de obstáculos, incluindo a resistência dos moradores locais e as limitações sociais e econômicas da região. Ao longo da narrativa, Graciliano Ramos explora temas como poder, corrupção, religião e as desigualdades sociais, proporcionando uma análise complexa da realidade nordestina. O título Caetés refere-se a um grupo indígena que habitava a região e serve como símbolo das origens e raízes culturais que são exploradas e, em alguns casos, desafiadas ao longo do romance.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jan. de 2024
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    "caetés" Por Graciliano Ramos - Graciliano Ramos

    CAETÉS

    mafraeditions.com

    Apresentação

        Caetés é o primeiro romance de Graciliano Ramos, publicado em 1933. A história se passa na fictícia cidade de Viçosa, em Alagoas, e apresenta um retrato profundo e crítico da sociedade local.

          O protagonista, Padre Luís, é um líder religioso que, ao retornar à sua cidade natal, tenta promover mudanças e melhorias na comunidade. No entanto, ele se depara com uma série de obstáculos, incluindo a resistência dos moradores locais e as limitações sociais e econômicas da região.

       Ao longo da narrativa, Graciliano Ramos explora temas como poder, corrupção, religião e as desigualdades sociais, proporcionando uma análise complexa da realidade nordestina. O título Caetés refere-se a um grupo indígena que habitava a região e serve como símbolo das origens e raízes culturais que são exploradas e, em alguns casos, desafiadas ao longo do romance.

    I

    Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de uma forte dor de cabeça. Fui colocar a xícara na bandeja. E dispunha-me a sair,porque sentia acanhamento e não encontrava assunto para conversar.

    Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não mecontive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada:

    —   O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu...

    Nãopôdecontinuar.Dosolhos,quedeitavamfaíscas,saltaramlágrimas.

    Desesperadamenteperturbado,gaguejeitremendo:

    —   Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice.

    —   É bom que se vá embora, gemeu Luísa com o lenço no rosto.

    —    Foi uma tentação, balbuciei sufocado, agarrando o chapéu. Se a senhorasoubesse... Três anos nisto! O que tenho sofrido por sua causa... Não volto aqui. Adeus.

    Retirei-me aniquilado. Na rua considerei com assombro a grandeza do meuatrevimento. Como fiz aquilo? Deus do céu! Lançar em tamanha perturbaçãouma criaturinha delicada e sensível! Tive raiva de mim. Animal estúpido elúbrico.

    E que escândalo! Naturalmente ela avisaria o marido. Adrião Teixeira comcerteza ia dizer-me: Você, meu filho, não presta. E mandaria balancear a casa Teixeira & Irmão, onde eu era guarda-livros e interessado, para afastar-me dasociedade. O inventário é rápido num estabelecimento que só vende aguardente, álcool e açúcar. Vitorino Teixeira, acavalando os óculos de ouro no grosso nariz

    vermelho, abriria o cofre, contaria o meu saldo com lentidão e, pondo o dinheiro sobre a carteira, deixaria cair, naquela voz morosa e nasal, que dá arrepios, este epílogo arrasador: Tome lá, João Valério, veja se confere. Nós julgávamos que oValériofossehomemdireito.Enganamo-nos:éumtraste.Eeusairiaescorraçado, morto de vergonha.

    Segredo que quatro pessoas sabem transpira: alguma coisa havia de propalar- se na cidade. D. Engrácia teceria mexericos; o Neves forjaria uma calúnia;NicolauVarejãonarrariamentirasespantosas.Assimpensando,euexperimentava grande mal-estar, menos pelos dissabores que as chocalhices me trariam que por antever misturado a elas o nome de Luísa.

    Eu amava aquela mulher. Nunca lhe havia dito nada, porque sou tímido, mas à noite fazia-lhe sozinho confidências apaixonadas e passava uma hora, antes deadormecer, a acariciá-la mentalmente. Até certo ponto isto bastava à minhanatureza preguiçosa.

    Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo estiradocavaqueando—eeraparamimverdadeiroprazertomarparteemduasconversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa falava decontos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com enormesbocejos, lá se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe permitissesaborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de comércio; o resto erafilosofia.

    Quando vinha o advogado Barroca, sério, cortês, bem-aprumado, a sala seanimava. Também aparecia com frequência o tabelião Miranda, Miranda Nazaré,jogador de xadrez, com a filha, a Clementina. E o vigário, o dr. Liberato, Isidoro Pinheiro, jornalista, pequeno proprietário, coletor federal, tipo excelente. Luísa, ao piano, divagava por trechos de operetas; Evaristo Barroca, com os olhos nolivro de músicas, tocava flauta.

    Uma estranha doçura me invadia, dissipava os aborrecimentos que fervilham nestavidapacata,vagarosamentearrastadaentreoescritórioeafolhahebdomadária de padre Atanásio. Os velhos móveis, as paredes altas e escuras, quadros que não se distinguiam na claridade vaga das lâmpadas de abat-jourespesso, que uma rendilha pardacenta reveste, tudo me dava sossego. Fugiam-meospensamentoseosdesejos.A religiosidadedequeaminhaalmaécapazali se concentrava, diante de Luísa, enquanto, entranhados nas combinações departidas rancorosas, Adrião grunhia impertinente e Nazaré piscava os olhinhosde pálpebras engelhadas, coçava os quatro pelos brancos que lhe ornam o queixo agudo. Vitorino dormia. E Clementina, de cabeça à banda, procurava os cantos e esfregava-se nas ombreiras das portas.

    Coitada. Nunca achou quem a quisesse. Tenho pena dela. Não a tornaria a ver

    encolhida à sombra do piano, fascinada pelos bigodes de Evaristo, negros edensos. Nem veria as cortinas pesadas, os montes de revistas, a mesa do xadrez. Tudo perdido.

    Percorriàtoaasruasdesertas,envoltasnumluarbaço,tentandoachar tranquilidade no pó e no calor de janeiro. Mais tarde, na hospedaria de d. Maria José, curti uma insônia atroz, rolei horas no colchão duro, ouvindo os roncos dos companheiros de casa e conjecturando o que me iriam dizer no dia seguinte osirmãos Teixeira.

    II

    Não disseram nada que se referisse ao desastroso sucesso. Logo que abri odiário, com mão trêmula, tão perturbado que receei baralhar as partidas, Adrião chegou-seàminhacarteira,folheouocontas-correntes,mexeuosdedos,calculando, e ordenou:

    —   Escreva a d. Engrácia, João Valério. Saiu-me um peso do coração.

    —   Escreva que o que tem cá em depósito está às ordens, pode mandar receber.

    —   E que se quiser deixar por mais um ano... atalhou Vitorino.

    —   Não senhor, fez Adrião. Apenas isto: principal e juros à disposição dela. E dê a entender na carta que não nos interessa a renovação do negócio.

    —    Mas interessa muito, exclamou Vitorino mostrando o caixa. O mano sabe que interessa. Olhe estas entradas.

    —   De acordo, concluiu o outro. Se ela mandar retirar, que não manda, ofereça quinze por cento em vez dos doze que pagamos. Não retira, não tem em queempregar capital. Levou muito calote ultimamente, os gêneros estão caros, afebre aftosa deu no gado. Não retira.

    Por um instante esqueci as minhas inquietações e admirei o tino de Adrião.Não serei um comerciante nunca. Eu teria, inconsideradamente, mandado propor os quinze por cento a d. Engrácia.

    Fiz a carta com inveja. Ora ali estava aquela viúva antipática, podre de rica,morando numa casa grande como um convento, só se ocupando em ouvir missa, comungarerezaroterço,aumentandoafortunacomavarezaparaafilhade

    Nicolau Varejão. E eu, em mangas de camisa, a estragar-me no escritório dosTeixeira, eu, moço, que sabia metrificação, vantajosa prenda, colaborava naSemana de padre Atanásio e tinha um romance começado na gaveta. É verdade que o romance não andava, encrencado miseravelmente no segundo capítulo. Em todo o caso sempre era uma tentativa.

    Quinhentos contos, seiscentos contos, nem sei, dinheiro como o diabo nasmãos de uma velha inútil. E a afilhada, a Marta Varejão, beata e sonsa, é que ia apanhar o cobre. Mundo muito mal-arranjado.

    Arrumei as contas no diário, escriturei o razão, passei os lançamentos doborradorparaoslivrosauxiliares.Poucoapoucovieramafligir-measpreocupações da véspera. Luísa guardara segredo. Provavelmente confessariatudo depois. Senti uma espécie de frenesi. Quase desejei que ela falasse e osTeixeira me mandassem logo embora.

    Afinal eu não tinha culpa. Tão linda, branca e forte, com as mãos de longosdedos bons para beijos, os olhos grandes e azuis... De Adrião Teixeira, umvelhote calvo, amarelo, reumático, encharcado de tisanas. Outra injustiça dasorte.Paraqueserviahomemtãocombalido,apernatrôpega,cifrasecombinações de xadrez na cabeça? Eu, sim, estava a calhar para marido dela,que sou desempenado, gozo saúde e arranho literatura. Nova e bonita, casadacom aquilo, que desgraça!

    III

    Passeiumasemanainquieto,enaquinta-feiranãotiveummomentode sossego. Ao fechar o armazém, Adrião despediu-se de mim:

    —   Até mais tarde, João Valério.

    Atémaistarde!Comoseeupudesselávoltar.Precisavainventaruma desculpa.

    Encontrei os companheiros de pensão a jantar, sob o sorriso de d. Maria José, gordinha e miúda.

    — ​Umanovidade!gritouPascoalquandodesdobreioguardanapo.AClementina vai casar.

    Era a eterna pilhéria: não se cansavam de forjar casamentos para a pobre daClementina.

    —    Quem é o noivo? inquiriu o dr. Liberato erguendo os grossos vidros dassuas lunetas de míope.

    —     Não se sabe, respondeu Pascoal. Foi um espírito que deu a notícia naúltima sessão. Clementina ficou atuada...

    —    Então isso continua? interveio Isidoro Pinheiro. Essas sessões têm dadoágua pela barba a padre Atanásio. Ainda ontem estava arengando com o Neves por causa das materializações.

    Falaram de espiritismo, de pessoas conhecidas que se desgarravam da Igreja. Aqui e ali apareciam timidamente alguns adeptos. Na opinião do dr. Liberato,eram eles os verdadeiros crentes: tinham uma convicção que faltava aos outros.

    —   Crentes? exclamou Pascoal. Então o Neves é crente?

    —   Com certeza. Não é o chefe dessa mixórdia?

    —   Um safado é o que ele é.

    —   E que tem isso? fez o doutor.

    Interrompeu-se, engolindo o pigarro. Isidoro Pinheiro endireitou-se, ia decerto defender o Neves, quando Nicolau Varejão entrou na sala:

    —   Espiritismo? É a única verdade que há neste mundo.

    —   Como é que o senhor sabe? perguntaram.

    —     Pelos sonhos. Coisa que eu sonho é um evangelho. Não falha, nuncafalhou. Assim que enviuvei... Nem gosto de pensar, é um caso triste. E aqui para nós: eu me lembro da minha última encarnação.

    —   O senhor se lembra... atalhou Pascoal.

    —   Positivamente. Sou reservado porque há muito incrédulo, mas juro, meto a mão no fogo.

    —   Extraordinário!bradouIsidoroPinheiro,sério,oferecendo-lheumacadeira.

    O senhor era homem ou mulher?

    Nicolau Varejão olhou-o por cima dos óculos de vidros rachados, sentou-se,franziu as narinas, disse em tom confidencial:

    —   Homem.

    —   Brasileiro?

    —    Brasileiro, carioca. Como os amigos não ignoram, lembrar-se a gente doque foi noutra vida é comum. E eu apelo aqui para o doutor.

    —   Certamente,confirmouodr.Liberato.Vácontando.

    —    Pois lá vai. Eu era tipógrafo no Rio de Janeiro, um bom tipógrafo, masnaquele tempo a minha vocação era para militar. Na guerra do Paraguai fuivoluntário, entrei na dança e andei pelo Sul quase até o fim da campanha. Como tinha vocação...

    —   Chegou a general?

    — ​Nãosenhor,chegueiasargento,nabatalhadeS.Bartolomeu.S.Bartolomeu ou S. Bonifácio. Não me recordo, uma batalha importante. Enfimcheguei a sargento. Ora, por arte do diabo, um oficial puxou questão comigo etirou a espada para me bater no lombo. E cá no meu lombo ninguém bate. Matei o oficial com uma estocada, porque eu era feroz, e fugi para a RepúblicaArgentina. Depois larguei-me para a Europa, para a sua terra, seu Pascoal. Não é na Europa a sua terra?

    —   É isso mesmo. Continue.

    —   Pois eu estive lá, numa cidade grande. Onde foi que o senhor nasceu?

    —   Em Turim.

    —     Turim, exatamente. Morei trinta anos em Turim e ganhei o pão comotipógrafo.NãoháumatipografiaemTurim?Aprendioitaliano.Aindasei

    algumas palavras:Marconi,macarroni,massoni... Tudoemitalianoacaba com oni. Terra boa, Turim. Cada pedaço de mulher!

    —   Morreulá?perguntouodr.Liberato.

    —   Não,tivesaudadesdapátria.Volteiquandoocrimeprescreveu. Em roda louvaram aquela memória admirável.

    —   O senhor devia publicar isso, aconselhou Isidoro Pinheiro. Um furo.

    —    Publicar? Não seria mau. A dificuldade é escrever. Ideias não me faltam,mas de gerúndio não entendo. De mais onde queria você que se fosse publicaruma história assim? No jornal de um padre?

    Todos lamentaram que a Semana, folha católica, não pudesse propagar aquela revelação tremenda.

    —      Que informações preciosas sobre a história do Brasil! opinou o dr.

    Liberato.

    —     Que triunfo para o espiritismo! E que baque para as outras religiões!ajuntou Pascoal.

    —     Sem contar que a reputação do autor garantiria a veracidade do fato,acrescentouIsidoro.A suavida...Digaaíumadjetivo,doutor.

    —   Impoluta.

    —   Impoluta... vá lá, vida impoluta. Que idade tem o senhor, seu Varejão?

    —   Sessenta,meufilho.Sessentaanosnacorcunda.Tenhomuitojaneiro.

    —   Como! bradou o dr. Liberato. Sessenta anos? Não é possível. Setenta com trinta... Caso o senhor tenha morrido e nascido logo que voltou da Itália, nãopode ter mais de vinte e seis. E se ainda viveu algum tempo e andou vagando no espaço... Não é por lá que vocês andam quando morrem? Se se calcular issodireito, o senhor está morto, seu Varejão.

    Uma gargalhada estalou na sala. Nicolau Varejão, que ia pegar uma xícara de café, deixou pender a mão suja e embatucou. Depois, ressentido:

    —   Então, pelo que vejo, não acreditam.

    —     Acreditar? Acreditamos, afirmou o doutor. Mas sessenta anos é que osenhor não tem.

    Nicolau baixou o carão trigueiro, coberto de marcas de varíola, ajeitou osóculos, tomou o café e declarou com lealdade:

    —    Parece que me enganei. Não foi na guerra do Paraguai, foi noutra maisvelha. Não houve outra antes? Pois foi nessa. Tinha graça eu esquecer o que me aconteceu no exército! Eu até me chamava Cunha, o sargento Cunha. Está aíuma prova.

    Levantou-se e saiu.

    —   Magnífico!exclamouIsidoroPinheiro.

    —    Eafilhaéaherdeiramaisricadacidadesead.Engrácialhedeixara

    fortuna,observouodr.Liberato.

    —    Deixa,asseverouIsidoro.OMirandamedisse.OMirandasabe.Herdeira rica, sim senhor. Por que não se engata com

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