Andança: Contos
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Sobre este e-book
Perdemos a certeza. Questionamos o que era garantido. Ser criança deixa saudade, deixa saudade saber quem se é… Complica-se o mundo.
A verdade veste máscara e a gente aprende a andar de disfarce também. Nos perdemos e achar-se sempre demora. A vida acelera e, sem ter rota em mente, dá medo segurar o volante. Nos enchemos de manias, de dúvidas, de paixões… De amores complicados, de sonhos simples… Somos curiosos. Frustrados. Insistentes.
Perdidos (esplendidamente).
A gente cai bastante e os golpes deixam histórias esquisitas. A gente cresce e crescer dói. E doendo a gente vira interessante.
Esse livro nasceu da vontade de traçar esses caminhos confusos e caóticos que trilhamos ao envelhecer. Com leveza e lirismo, os contos mergulham no cotidiano e dele procuram fazer sentido, retratando as dificuldades que enfrentamos e as dúvidas que nos perseguem. Explorando desde o passar do tempo à primeira paixão que não passa, da raiva borbulhante à sensação de vazio, da falsidade à crise de identidade, da infância à velhice, da falta de amor à dor de amar, os contos manifestam, acima de tudo, uma vontade de entender. De entender os outros por trás de suas fachadas. De entender-nos por trás das fachadas que criamos para nós mesmos. De entender o passado para poder viver a intensidade do presente.
Andança abraça a aflição e agonia de mudar.
Afinal, tudo cria poesia…
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Andança - Flavia Velásquez Cotini
São cinco da tarde e eu soube quem era por um curto instante e agora me esqueci. Não sei contar-te a minha história.
O que posso dizer? Sei somente que ontem disseram-me na escola que não posso usar tantas pulseiras e agora quero ir embora. Vou embora. Já estou indo. Sempre estou indo. Nasci eterno peregrino…
Sou uma andarilha. Acho que minha alma fugiu pela estrada afora nas pontas dos pés, e agora resta o corpo aqui, preso, ouvindo que as suas inquietas pulseiras são um exagero, e querendo ir embora, e já tendo começado a ir, como sempre está indo.
Mas antes de ir, gostaria de contar-te a minha história, se queiras escutá-la.
Se eu souber contá-la.
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Infância é lembrar do que se quer e não do que se deve.
Molda-nos a infância, ensina-nos aos poucos a ser gente – quão gente possamos ser quando não nos entendemos por gente ainda. Entender-se como ser humano – na sua imensidade e também na restrição que isso significa – é a porta de saída da infância.
Intentamos encaixar-nos nas vagas lembranças daquele tempo para poder recordar memórias perdidas ao olvido. Mas só encaixa na infância o que tem alma de criança, o que se vê como tigre, crocodilo, avestruz, e flor selvagem, o que entende que pode ser o que quiser, sem pensar no que deveria ser.
Infância é vitral colorido. Infância, transfigurada em memórias, é estilhaço de vitral. É fragmento do todo, pedaço mal cortado de lembrança, um caco arbitrário do mural do passado.
Molda-nos a infância, ensina-nos o inusitado artifício de fazer o coração bater. Bater forte. Mas o que conta não é o porquê – enquanto bata, enquanto sinta, enquanto doa e palpite vivacidade ao resto do corpinho incansável, o coração pode bater pela morte e pelos desenhos animados igualmente.
Então o coração bate pelo que quer, e não pelo que deve.
O sorvete palpita entre os batimentos cardíacos dos meus começos. Sorvete de morango, sabor de glória, oásis de frescura na quentura do Sol. O rítmico cair das gotas de corante sobre a calçada invariavelmente escaldante do auge do verão. Viscosidade de morango entre os dedos. A curtíssima duração do sorvete, que eu ingeria somente em um terço e nas duas partes restantes colava-se no pavimento. Lembro-me do gélido sabor, do arrepio que escalava as costas pra estourar na frente mais do que me lembro do nascer da minha irmã.
É que o coração de criança bate por bater, não por dever.
O balanço acelerava meu coração, aquele ciclo de fantasia, de cabeça nas nuvens que termina sempre com o pé no chão… Tira-te os tênis da terra, joga-te ao alto, arrebata a estabilidade, e quando achas que não voltarás mais, empurra-te de volta à realidade, à segurança da terra. Tremendo objeto é o balanço. Ensina-nos desde pequenos a amar a falta de chão, amar a liberdade de não estar seguro.
Então a criança para de entender-se por pássaro, começa a entender-se por gente incapaz de voo, e ama o chão e teme a falta dele, e esquece os ensinamentos do sábio balanço.
Tardes inteiras passava na minha infância em cima daquele balanço, naquele ir e vir e nunca sair do lugar. Consigo ainda sentir a ferrugem do metal nas palmas das minhas mãos; se me esforço, aqui está o balanço, rugindo sobre o meu peso, como se o assento azul fosse partir-se ao meio.
Caí um dia do balanço, quebrou-se meu dente, sangrei cachoeiras. Mas não me lembro desse dia, e o pouco que penso recordar são apenas aquelas lembranças contagiantes dos outros, vestindo-se de nossas. Na minha própria memória, conserva-se somente o desconforto agradável e familiar daquele duro balanço azul. O balanço incômodo e carcomido pelo tempo é o emblema de muita infância alegre por aí…
Entre as pulsações infantes no peito, porém, reinava indubitavelmente a praia. Gostava de perceber como a enormidade daquele encanto incompreensível podia encapsular-se dentro de tão pouco – mas tão belo este pouco! O vento salgado, as ondas transparentes que engoliam a areia para depois cuspi-la de volta, e ao lado da praia, a piscina – de água, de restos de sorvete, de resíduo de infante urina, de suor e de calor humano – e as gaivotas, as conchas cortantes que sangravam suaves pezinhos (não tinham suficiente quilometragem como para haver conquistado os calos que via eu nos pés, por exemplo, do meu pai), queimaduras de água-viva que senti através dos gritos próximos das pobres vítimas, aroma de protetor solar em pele queimada, os passos sonoros das havaianas molhadas…
Isso tudo resumia-se ao peixe frito.
Era grotesco. Ofendia-me o fato de que ele parecia insistir em conservar-se peixe mesmo após a morte. Parecia-me que era certo dos peixes fritos render-se à sua pós-vida de filé. Mas esse não. Continuava sendo peixe mesmo ali deitado no prato. Sinistro como os olhos vidrados e vazios do corpo empalhado do cachorro de estimação. Os olhos escurecidos do animal ainda pareciam poder possuir vida dentro deles, e continham em si a praia inteira.
Nunca comi o peixe frito, pois era somente a minha irmã que pedia por ele, vorazmente transformando o animal numa pilha de espinhas e barbatanas fritas e dentes. Espinhas, barbatanas, dentes, e dois olhos escurecidos que continham toda a praia, mas que agora como sou gente, foram esvaziados dos seus colossais conteúdos.
Mas isso de que eu nunca comi o perturbador peixe, quase mítico – nadando sonâmbulo, o peixe-zumbi, entre as minhas lembranças – detalhe é, apenas detalhe. Pois como eu o lembro – quase consigo sentir o gosto salgado das barbatanas! O gosto do mar vira o gosto das suas entranhas e quando sua fritura quebradiça se parte ao meio, é o som das palmeiras rugindo na maresia que eu escuto. E assim funciona a cabeça de criança – filtra e desenha a memória, escolhendo as imagens vívidas como se recolhendo pedrinhas reluzentes da costa, ignorando tudo aquilo que é opaco e carece de mistério ou de surpresa. Assim foi com o meio-dia de derreter em que o peixe engasgou minha irmã com suas finas espinhas. Ouço falar desse incidente preocupante entre a família, mas apenas vejo o peixe. A criança que eu fui decidiu focar no peixe. Tenho eu autoridade para dizer que ela está errada?
A infância, os meus inícios, como eu os lembro, resumem-se aos sorvetes pingando no asfalto, aos balanços em decadência, ao aroma de peixe frito pairando na maresia.
Ah, ser criança, o sábado à noite da vida, a intoxicante festa onde atuamos por ordem de algo puro, concentrado, todo-poderoso – embriagante elixir da essência do viver. Por isso dançamos e rimos e falamos,