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Os mortos não estão mais sós
Os mortos não estão mais sós
Os mortos não estão mais sós
E-book186 páginas2 horas

Os mortos não estão mais sós

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Sobre este e-book

Não é fácil inovar em literatura. Tudo parece já ter sido dito. Todas as formas parecem já ter sido experimentadas. A melhor fórmula, contudo, parece a mais simples: ter uma boa história para contar. O resto é consequência. Existem, claro, aqueles que pretendem reinventar a forma, revolucionar a linguagem, quebrar paradigmas, mudar tudo. Cada autor com suas ambições. Cada leitor com seus gostos. Há quem se interesse por todo tipo de experimentação. Bom é aquilo que funciona.
Vincent Petitet é mais uma revelação da literatura francesa, que, desde a revolução Michel Houellebecq, não para de se renovar. Os mortos não estão mais sós é um romance original, livre das amarras do realismo superficial e da imobilidade do velho Novo Romance. Nietzschiano, imprevisível, vitalista, mergulhado na relação com o extraordinário, o sobrenatural, mostra a metamorfose de um executivo, que leva da sua empresa um pé na bunda sem maiores considerações, em um ser humano em busca de uma nova existência. Existe vida depois do trabalho? Existe sentido quando não pode mais correr atrás de metas?
Este é um livro para ser degustado, compreendido e sentido. Fluente, legível, poético, constrói uma atmosfera que exala o seu perfume e embriaga – ou hipnotiza? – o leitor na sua caminhada
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2021
ISBN9786557590119
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    Os mortos não estão mais sós - Vincent Petitet

    Pã!

    Vinte anos depois

    1

    Visitado toda noite por seres mortos, dialogando noite após noite com seus fantasmas e espíritos perturbados, Antoine permanecia vítima de amnésia ao acordar. Nunca se lembrava deles, não tinha nunca consciência da beleza ou do eco de suas palavras. Porém, era a última vez que ele ignoraria seu magistério noturno.

    Eram seis horas da manhã. Antoine abriu os olhos, um pouco sonolento, e olhou Pauline, que ainda dormia a seu lado. Pauline era sua mulher, estilo intelectual, com corpo e rosto bem-feitos. Uma professora, apaixonada por história. Salário de dois mil e quinhentos euros por mês. As ciências humanas não rendiam muito. Sobretudo em comparação ao que Antoine ganhava. Professores eram necessários, mesmo que sua preocupação hoje não fosse mais ensinar, e sim vigiar pirralhos insuportáveis. Pauline era unanimidade entre seus colegas. Era apreciada pelos alunos. Mesmo os mais agitados. Sua aparência escandinava, loira, de olhos claros, talvez contribuísse. A bela como a tinham apelidado alguns de seus alunos. Nesse ponto, não podia discordar deles. Antoine e Pauline formavam um bonito casal.

    Animado, Antoine se dirigiu para o banheiro. Ligou o rádio. Barbeou-se cuidadosamente. Não deixar o orgânico assumir o comando e, portanto, prevenir todo risco de transpiração. A transpiração, Antoine a perseguia. Bem jovem, ele chorava quando o forçavam a sentar-se ao lado de um de seus colegas de odor corporal muito forte. Sua professora se inquietara com o que considerava uma afetação precoce e se abrira com seus pais. O pequeno Antoine deveria ser forte, não ter prevenções consideradas muito femininas. Assim, inscreveram-no, sem consulta prévia, num clube de rugby, para que pudesse cultivar uma fraternidade masculina. O rugby, Jean-Noël, seu irmão mais velho, também praticara. Em alto nível. E ele morrera disso, derrubado no campo por uma parada cardíaca. Mesmo depois da morte violenta de seu irmão, seus pais conservaram religiosamente as fotografias do clube de rugby. Antoine continuava. Seus pais o mantinham lá, mesmo que detestasse os ambientes esportivos e o peso abafado dos vestiários. Nojo de seus corpos ativos suando e ofegando, nojo das secreções corporais e da nudez obscena das duchas. Assim que pôde enfrentar seus pais, parou de exercitar-se. Conservava, porém, um porte atlético que impunha respeito e, ao mesmo tempo, superioridade. Superioridade dos atletas-super-homens, superioridade de Antoine, no momento atleta e super-homem dos negócios, superioridade com semblante de aço, superioridade da atitude firme do happy few que, ao mesmo tempo que o distingue com satisfação, despreza o olhar invejoso dos pequenos.

    O barbeador deslizava agradavelmente. Sem interrupção. Suave. Antoine adorava aquela sensação rara em seu rosto ainda juvenil. Não era um rosto de virilidade brutal. Mais um gato. Pauline tinha caído por ele como outras. Ele a sabia, apesar de suas pretensões intelectuais, muito atraída por seu físico, seduzida pelo desenho de seus bíceps quando ele se exercitava na barra fixa. Quando se conheceram, Antoine ainda era estudante numa Grande Escola.¹ Eles se encontraram por intermédio de um amigo comum, Romain Picot, ex de Pauline que virou amigo e hoje trabalhava com Antoine. Seu encontro tinha sido, no começo, anódino para se transformar no que Pauline chamava afetadamente de nossa história de amor, o que tinha o dom de irritar Antoine, que achava isso piegas. A expressão, tanto quanto a ideia. Eles se casaram havia dois anos, apoiados pelos pais de Antoine, orgulhosos de seu filho ter casado com uma professora que conhecera na prestigiosa Grande Escola. Os pais de Pauline não estavam descontentes de casar a filha única, embora o pai, médico, lamentasse que Antoine também não o fosse. O nome da Grande Escola, porém, bastara para seduzi-lo. Seu casamento fora empanado apenas pelo choro dos pais de Antoine, que casavam seu filho vivo, o eterno segundo, que, mesmo que houvesse vencido na vida, não conseguiria nunca apagar a imagem do primeiro, o cardíaco, o morto, o enterrado, aquele que apodrecia na obscuridade de sua tumba, enquanto Antoine celebrava com muitos luminosos trajes brancos o que sua esposa chamava de o dia mais belo de nossa vida. Aliás, nesta noite, para seus dois anos de casamento, lhe daria um magnífico solitário. Nada de bugiganga. Comprado na Place Vendôme, no joalheiro do momento. Ela ia adorar.

    Entrou no chuveiro. Um pouco de água fria para animar-se. A água morna e o perfume do sabonete de Marseille, uma real suavidade. Para um despertar suave porém intenso, é o que dizia a publicidade. O suficiente para estar fresco e disposto. Pronto para atacar. O dia e a vida. A vida estava lá, aqui, agora, fora. Ele se lembrou destes versos de Rimbaud: Eu abracei a aurora de verão. Nada ainda se mexia na fachada dos palácios. Apreciava Rimbaud. Mestre de seus versos, iniciador de um fausto novo para o soneto. E que não se deixava enganar. Tinha feito dele um de seus autores favoritos. Citava-o com frequência em reuniões importantes ou de conselhos de administração em cúpula. Isso sempre causava efeito. É preciso dizer que Rimbaud era também a leveza, longe dos pesos-pesados do Parnaso imbecil. A finesse do haicai. Uma referência no mundo dos negócios, no qual se praticava alegremente o asiatismo. Sempre muito favorável. Nada a ver com as palavras grosseiras de seus colegas engenheiros ou com os arquejos dos programadores, esses cretinos com auréolas debaixo dos braços e trajes muito largos e mal-acabados. Estes últimos não entendiam nada de gestão e menos ainda de poesia. No entanto, as duas estavam ligadas. A poesia de Rimbaud, o que era senão uma luta contra a insatisfação? A gestão não era nada mais que a luta contra a insatisfação dos trabalhadores, a busca pelo crescimento, a maximização da satisfação humana ao menor custo e a exacerbação controlada do desejo dos assalariados. Era isso que havia explicado no último conselho de administração de sua empresa. Rimbaud era um visionário da gestão moderna. Seguro de si, falara nisso um dia a um colega de Pauline. O vagabundo rira. Debochara. Antoine anuviara-se. Ele não suportava humilhação. A humilhação, ele a deixava para seus pais, sempre constrangidos em sociedade, tendo muito cedo aprendido a se submeter, a colocar-se em seu lugar. Seu filho não era dessa têmpera, mesmo que tivesse conservado em si uma suscetibilidade, uma sensibilidade irracional perante a contradição. Como se cada uma de suas palavras pusesse em risco sua condição social, sua existência inteira e sobretudo seu sucesso. Durante seus estudos, essa sensibilidade o desservira com frequência. Bastava às vezes um comentário ácido de um de seus professores ou um desacordo com outro estudante para fazê-lo sair de si.

    Secou-se. Olhando-se no espelho, pensava em Pauline. Como ela podia ainda dormir? Ele não a compreendia. Não que ela fosse simplesmente trivial. Mas ela conservava uma indolência que lhe tirava toda a energia. A energia da ação. O desafio do ataque: "to be a leader, not a follower", esse era um de seus slogans profissionais favoritos. Quando o enunciava diante de Pauline, ela o censurava por não considerar a aspereza do cotidiano, por promover a desigualdade entre as pessoas. Igualdade? Era um discurso de derrotista. Empunhar esse estandarte supérfluo para melhor justificar seu imobilismo. Queixar-se, todo o tempo queixar-se. Era pão bento para os fracassados: maltrapilhos, desempregados, sem seguro-desemprego, sem documentos, sem domicílio fixo e, em certa medida, pobres, como seus pais. Sempre os mesmos. Sem esquecer os funcionários. Sempre a mesma ladainha. A crer que alguns faziam disso profissão. Naturalmente, Pauline se irritava com sua forma de pensar, com seu hedonismo liberal, com sua falta de empatia, e repetidas vezes eles discutiam sobre esses temas. Pauline se aborrecia com o pragmatismo de Antoine, pois sabia que era o que tinha guiado seu sucesso e que, de fato, o cotidiano dava razão a ele. Mas Pauline não era dessas mulheres amuadas e limitadas. A reconciliação chegava rápido em torno de um jantar. Sua perfeita relação sexual também ajudava a esquecer suas divergências. Ao menos cinco ou seis vezes por semana. Desejos, pulsões que Antoine não podia não satisfazer. Uma energia sexual digna do deus Pã.

    Saído do chuveiro, Antoine se debruçou sobre Pauline para o beijo da manhã. Era importante. Ela gostava desse beijo, sempre fresco e mentolado.

    – Pronto? – murmurou ela.

    – Sim! – disse ele, com entusiasmo.

    Endireitou-se, pegou seu terno escuro e vestiu-se prontamente. Uma vez na cozinha, escutou distraído o rádio. Entrevistavam a estrela do momento. O filho de um cantor conhecido e de uma cantora conhecida, ele mesmo tornando-se um cantor conhecido. Era um pouco como um cargo no Antigo Regime. Informavam o título cantor conhecido ao mesmo tempo que a celebridade que o acompanha. Quanto ao talento, ele resistia a esse feudalismo social. Ainda feliz, pensou Antoine. Depois mudou de estação. Tocavam uma bossa nova, no mais puro estilo Jobim. Ele adorava, mas nunca falava nisso, temendo escutar as tradicionais queixas sobre as músicas do sul, sua acessibilidade, sua popularidade e todas as palavras grotescas que se escutam sobre a dança, a alegria de viver do sul, enquanto precisamente pensava que a bossa nova era um ritmo luxuoso, uma música perfeitamente elitista e sobretudo nascida de uma melancolia otimista, e não de uma espontaneidade excessiva. A bossa, para Antoine? Ela tinha o aspecto de uma limusine que deslizava ao longo de um bulevar. Um langor. Uma descontração que a vida fácil e o dinheiro suscitam. Era preciso continuamente lembrar-se disso: lembrar que o dinheiro faz tudo, confere todos os direitos. O dinheiro faz fluir as coisas, é um perfeito lubrificante que sabe eliminar as asperezas da existência. O duro torna-se mole, o difícil fácil. O dinheiro faz fluir, a bossa nova de Jobim também. Um pouco da doçura dos lençóis de cetim; um pouco da suavidade licorosa de um vinho Sauternes. Cetim e Sauternes. Antoine sorriu. Depois coçou o nariz.

    Saiu com cuidado, silenciosamente, para não acordar Pauline, que, na certa, voltara a dormir. Na rua, um ar de primavera. Porém, não era hora de desfrutá-lo. Apressar-se. Antoine detestava chegar por último ao trabalho, então se dirigiu à parada de ônibus num passo decidido. O ônibus era novo para ele. Costumava usar o carro. Mas este havia morrido. Ele encomendara um novo. Não um veículo de luxo. Mais o gênero sugestivo, discreto mas invariavelmente glamouroso. Ninguém se enganaria sobre a qualidade do motorista, estilo aristocrata inglês, Aston Martin, obviamente. Tudo com delicadeza, a dosagem dos equipamentos eletrônicos, o odor do couro e da madeira preciosa. Como uma xícara de chá de aroma penetrante. Isso valia bem um mês a suportar os tormentos do ônibus. Propuseram-lhe um motorista. Mas o que lhe tinha sido destinado era pouco habilidoso e ligeiramente obeso. Seus dedos eram malcuidados. Uma doença de pele dava-lhe um ar de ursinho carinhoso em plena crise de acne.

    Ele passou em frente à imensa estação ferroviária. Num dos lados, notou o número impressionante de corpos estendidos. Mortos? Não. Pessoas dormiam ali. Do lado de fora. Abrigadas por uma marquise gigantesca. Cerca de vinte ou trinta, uma ao lado da outra, alinhadas. Algumas estavam enroladas em edredons sujos. Outras, acordadas, mas deitadas, observavam os passantes apoiadas num cotovelo, o rosto abismado, comido por imundos gorros de lã infestados de piolhos, que as faziam lembrar assustadoras marionetes sem pernas. Esse alinhamento de corpos lembrava a Antoine as fotos em preto e branco da Segunda Guerra Mundial, visíveis nos manuais de história, tomadas nos países bálticos durante a invasão alemã e onde, depois de um pogrom, as populações locais tinham um maligno prazer de enfileirar os corpos dos judeus massacrados. Como troféus de caça. Corpos alinhados um ao lado do outro. Muitas vezes com um executor feliz na foto. Essa legião de esfarrapados lhe inspirava essas imagens sinistras. Mesmo sua dignidade desaparecera. Era um estranho processo que surgia: um processo de descivilização, uma dinâmica às avessas que tornava a vida líquida. Nada de apoio sólido para esses vermes imundos. Nada de assistência de uma família, de vizinhos benfeitores. Sua existência? Uma liquefação de tudo aquilo que permite viver: liquefação dos vínculos com os outros, liquefação da solidez de um domicílio, liquefação dos corpos também. Corpos fundidos na doença, corpos dissolvidos no álcool. O infinito de baixo, escrevia Hugo. Pensativo mas pouco tocado, Antoine voltou ao dinheiro. Nesse clima líquido, era exatamente o único elemento tangível. Esses semicadáveres deitados, na verdade, soavam como uma advertência: Eis a infâmia que te espreita. Vê essas bocas podres, esses organismos que transpiram banhados numa sujeira úmida. E sobretudo sente como eles fedem. Odor de latrina, de partes mal lavadas, odor conforme a retenção, odor da descivilização e da descarga pulsional. Talvez, um dia, fedas como eles. Esse pensamento o fez arrepiar. Desfrutava disso, tanto mais que a exigência de poder resplandecia diante desse areópago sujo. E a fosforescência dessa podridão tornava ainda mais brilhante a força de sua presunção.

    Ele os observava, podia mesmo enumerá-los. Decidir ordená-los, uns à direita (eles viveriam), outros à esquerda (seriam eliminados). Decidir o limite que separava o humano do não humano. Um entre eles se distinguia por gestos que o aparentavam a um não humano, um semidiabo, uma criatura do outro mundo. Por uma razão conhecida só por ele mesmo, ria. Como essas figuras imundas dos trípticos de Hieronymus Bosch, como esses rostos distorcidos que, no calvário de Cristo, indicam sua maldade por espasmos, faces simiescas e contorções da boca. Não um riso franco, rabelaisiano, mas um ricto mau, escancarando uma boca com língua infecta e dentes arrancados. Diante de Antoine, surgidas do nada, três meninas idênticas atraíram sua atenção: pequenas, morenas, pele mate, gritando sem parar, interpelavam-se num sabir incompreensível, formavam uma coreografia singular, um sabá diurno do qual não se suspeitava nem o começo, nem o fim. Agitadas, suscitando

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