Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional
Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional
Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional
E-book682 páginas12 horas

Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nutricionismo é um trabalho fundamental na crítica à lógica que se tornou predominante na alimentação humana. A fusão das palavras "nutrição" e "reducionismo" resume o olhar que Scrinis lança para o aconselhamento nutricional e o senso comum em torno do tema. Para ele, a tentativa de explicar todos os problemas alimentares em termos de nutrientes só fez agravar o problema, e retirou das pessoas o poder de decidir de maneira simples sobre algo que fizemos desde sempre. "Desde as tentativas dos cientistas do século XIX de calcular a quantidade precisa de macronutrientes e calorias necessárias para o crescimento normal e para a prevenção de deficiências, essa arrogância nutricional foi estendida à distribuição de conselhos dietéticos definitivos para reduzir o risco de enfermidades crônicas, como doenças cardíacas, câncer e diabetes", escreve.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de mai. de 2021
ISBN9786587235455
Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional

Autores relacionados

Relacionado a Nutricionismo

Ebooks relacionados

Dieta e Nutrição para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Nutricionismo

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Nutricionismo - Gyorgy Scrinis

    tituloLogo Editora

    conselho editorial

    Bianca Oliveira

    João Peres

    Tadeu Breda

    edição

    Tadeu Breda

    assistência de edição

    Luiza Brandino

    preparação

    João Peres

    revisão

    Carmen T. S. Costa

    Laura Massunari

    Direção de arte

    Bianca Oliveira

    capa

    Túlio Cerquize

    diagramação

    Denise Matsumoto

    PRODUÇÃO DIGITAL

    Cristiane Saavedra

    [Saavedra Edições]

    folha de rosto

    Apresentação

    Inês Rugani Ribeiro de Castro¹

    A realidade é complexa e dinâmica. As lentes que escolhemos para buscar compreendê-la têm implicações no modo como a interpretamos e, por consequência, na maneira como lidamos com ela, seja para preservá-la ou para transformá-la. É fundamental, portanto, não somente reconhecer valores, referenciais teóricos e concepções de mundo que inspiram as lentes existentes, para identificar suas limitações e potencialidades, mas também elaborar novas perspectivas cognitivas, capazes de apreender essa complexidade e esse dinamismo e orientar nossa ação.

    Neste livro, Gyorgy Scrinis nos brinda com lentes que oferecem elementos interpretativos muito potentes para modificarmos profundamente a maneira como temos lidado com a temática da alimentação e nutrição. Abordados de forma criativa e inovadora, esses elementos nos ajudam a responder perguntas fundamentais sobre a questão alimentar no contexto contemporâneo, entre elas: quais interesses públicos são comprometidos e quais interesses privados são beneficiados com esse paradigma? Em que medida ele contribui para a manutenção de assimetrias de poder que impedem a garantia do direito humano à alimentação adequada para todos e todas, dificultando os processos emancipatórios da sociedade? Que aspectos da alimentação ficam desconsiderados, invisibilizados ou reduzidos nessa abordagem e quais as implicações disso na perspectiva das políticas públicas? Quais as consequências das abordagens presentes nesse paradigma para a relação das pessoas com a comida e com o corpo?

    Responder a essas e outras perguntas semelhantes é fundamental para orientar a construção de outras narrativas e outros caminhos a serem trilhados no desenvolvimento de três eixos de ação que, a meu ver, abarcam os desafios centrais da agenda atual de alimentação e nutrição: (i) a mudança estrutural dos sistemas agroalimentares de forma a produzirem saúde e bem-estar para a sociedade e o planeta, além de equidade social e prosperidade econômica; (ii) a ressignificação da comida, do cozinhar, do comer e da comensalidade, resgatando seu sentido existencial profundo e ampliando a consciência de sua dimensão política; e (iii) a preservação e expansão das políticas de garantias de direitos.

    Nesse sentido, a tradução desta obra é muito bem-vinda, pois democratizará o debate sobre o tema no Brasil. Sua leitura é imprescindível para todas as pessoas que se interessam por alimentação e nutrição, e que desejam ampliar seus horizontes; para profissionais de saúde e de educação interessados em repensar suas práticas de aconselhamento e de ensino; para gestores comprometidos em avançar as políticas públicas; para pesquisadores que desejem refletir sobre o conhecimento que produzem e para ativistas da sociedade civil engajados na defesa do interesse público.

    Desejo que a leitura deste livro proporcione bons aprendizados e reflexões.

    1 Professora associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    SUMÁRIO

    Capa

    Créditos

    Apresentação

    Inês Rugani Ribeiro de Castro

    Prefácio à edição brasileira

    Paula Johns

    Prefácio

    Gyorgy Scrinis

    1. Um conflito de ideologias nutricionais

    2. O paradigma do nutricionismo

    3. A era do nutricionismo quantificador

    4. A era do nutricionismo bom versus ruim

    5. As guerras da dieta de macronutrientes

    6. Margarina, manteiga e o fiasco das gorduras trans

    7. A era do nutricionismo funcional

    8. Alimentos Funcionais

    9. O paradigma da qualidade dos alimentos

    10. Depois do nutricionismo

    Agradecimentos

    Referências

    Apêndice

    Sobre o autor

    Ficha Catalográfica

    Prefácio à edição brasileira

    Paula Johns

    ²

    Não consigo me lembrar em que momento comecei a mergulhar de cabeça no tema alimentação. Embora também tenha sido, em algum grau, vítima das dietas da moda e dos superalimentos milagrosos do momento, estimulada pela minha mãe, que até hoje é adepta das panaceias que circulam pela internet e que se fortaleceram muito com as mídias sociais, sempre tive algum pé atrás. O sentimento era de que alguma coisa estranha estava acontecendo. Como pode o ovo ser vilão num dia e mocinho no outro? Como deixar de comer abacate ou caqui por serem muito calóricos? Já comi muito abacaxi em jejum, tomei a escala de limão diário matinal até chegar a uma dezena e depois voltar para o um. Já tomei muito daquele iogurte que prometia ser a solução do intestino preso (ou poderia receber meu dinheiro de volta). Já comprei muita tranqueira com promessas de propriedades milagrosas, que resolveriam todos os problemas que tinha — e também os que eu ainda não tinha. Enfim, a alimentação é um tema comum a todos nós, e haja filtro para navegar nesse universo. E é também uma trama cheia emaranhados. Neste livro, tentamos puxar alguns desses fios e tecer histórias.

    Minha iniciação profissional em saúde pública foi através do tabagismo. Mil vezes mais simples: cigarro faz mal e ponto final. Não existe nível seguro para consumo, e ambientes fechados devem ser 100% livres de fumo. Também é menos complicado pensar em possibilidades de isolamento do produto e na caracterização da indústria que o produz como a vilã encarnada dos séculos xx e xxi. Isso tudo olhando retrospectivamente, pois, quando a história do controle do tabagismo começou, a ideia de ambientes 100% livres de fumo era um sonho distante e considerado impossível. Hoje nos perguntamos como era possível ser permitido fumar dentro de um avião.

    Mudando do fumo para os alimentos: sempre gostei muito de comer e de cozinhar. Minha iniciação foi em casa, com a minha mãe, que chegou a dar aulas para mim e duas amigas — esses encontros eram para lá de divertidos e saborosos. Também pegava as muitas receitas boas da minha avó e testava em jantares românticos ou entre amigos. A campeã é uma receita de frango com páprica que, além de deliciosa, é perfeita para a analogia com temas deste livro. A receita original, com manteiga, foi substituída pela margarina, na era do nutricionismo do bom versus ruim, e posteriormente pelo azeite, na era do nutricionismo funcional. Sei que a margarina está definitivamente banida do meu cardápio, mas confesso que meu imaginário é, até hoje, habitado tanto pelas máximas da velha dicotomia entre o bom e o ruim como pelas alegações de saúde do nutricionismo funcional.

    Também tive muito contato com a produção dos alimentos. Cresci indo para a fazenda do meu avô, que passou a ser do meu pai e hoje é minha. Sempre tivemos uma horta e alimento fresco em abundância em casa. Tudo sempre foi orgânico por lá, mesmo quando esse conceito ainda não existia.

    Com relação ao meu papel institucional, sempre muito embaralhado com minha vida pessoal, pois as minhas caixinhas sempre foram fluidas e interconectadas, comecei a devorar livros sobre alimentação e nutrição. Queria saber tudo. Li muita coisa, de artigos científicos a livros sobre as dietas da moda.

    Antes de contar como cheguei a Nutricionismo, me apresento rapidamente. Sou uma das cofundadoras da act Promoção da Saúde, uma organização não governamental que atua na promoção e na defesa de políticas de saúde pública, especialmente nas áreas de controle do tabagismo, alimentação saudável, controle do álcool e atividade física. Esse trabalho é feito por meio de ações de advocacy, que incluem incidência política, comunicação, mobilização, formação de redes e pesquisa, entre outras. Criada em 2006 com foco na área de controle do tabagismo, a conquista de medidas fundamentais, como a lei antifumo, o aumento de impostos sobre o tabaco e a ampliação da proibição da publicidade de cigarro foram fatores-chave para que acabássemos, naturalmente, chegando à defesa da alimentação adequada e saudável, da atividade física e do controle do álcool. Juntas, essas quatro pautas representam os principais fatores de risco evitáveis para as doenças crônicas não transmissíveis (dcnts), que incluem doenças cardiovasculares e pulmonares, diabetes e câncer, e são a maior causa de mortes no mundo. Atualmente, o trabalho da act também inclui os direitos humanos e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Afinal, isso tudo caminha junto e é impossível pensar em caixinhas também aqui. É o planeta que está em jogo e a viabilidade da vida com saúde.

    Na minha busca por aprender sobre o tema, fundamental no meu trabalho e, por que não, na minha vida, deparei com Nutricionismo. Foi amor à primeira vista. Gostei do título, comprei na hora e devorei. Quanto mais eu lia, mais feliz eu ficava. O sentimento era de que a ciência se aproximava de uma verdade que era muito mais profunda e verdadeira do que a própria ciência. Paradoxal, provavelmente, mas me permito uma licença sentimental sem juízo de valor. Confesso que não é a primeira vez que contemplo como a produção científica muitas vezes tem a função de provar o óbvio, ou aquilo que já sabemos no mais íntimo de nosso ser. Foi uma sensação de entendi tudo!.

    É isso: simples, verdadeiro e junta as peças que, separadas, não fazem sentido — assim como aqueles nutrientes que só manifestam suas propriedades e talentos quando fazem parte de um fruto, uma raiz, uma leguminosa ou uma flor. Chega a ser poético e também espiritualizado: tudo está interconectado, e as provas disso são cada vez mais evidentes. Foi o que senti ao ler este livro, cuja edição brasileira tenho um prazer inenarrável em prefaciar. Até 2018, era apenas um livro, escrito por um pesquisador que mora muito longe do Brasil, lá na Austrália.

    Agora passo, então, à história de como conheci o autor. Corria o ano de 2017, e eu estava fazendo uma apresentação no Congresso Mundial de Nutrição, em Buenos Aires. Alguém se aproximou dizendo que gostou muito do que falei e me deu o seu cartão. Enquanto agradecia e pegava o meu cartão para retribuir, li o nome dele: Gyorgy Scrinis. Entre extasiada e estupefata, constatei: é o autor de Nutritionism! Oh my god, sou muito fã do seu livro!

    Ao reviver esse momento, me sinto muito honrada de contribuir para viabilizar ao público brasileiro o acesso ao livro que me introduziu, com clareza, ao campo de conhecimento da alimentação e da nutrição. Só me resta agradecer e desejar que todas e todos tenham uma leitura tão prazerosa e esclarecedora como a minha.

    Não importa se você é estudante de nutrição, se gosta de cozinhar ou se prefere só comer, se é leigo ou profissional: este livro é para todos que se interessam em saber mais sobre a trajetória dessa ciência e querem viajar pela era do nutricionismo bom versus ruim, passando pela noção de nutricionismo funcional, até chegar à constatação de que comer é, de fato, um ato político, e que os alimentos são muito mais completos do que a soma dos seus nutrientes individuais. É por isso que precisamos entender que o que nos une é a comida de verdade e a comensalidade.

    Este livro nos dá elementos para uma reflexão profunda: queremos reforçar ou desafiar paradigmas? O paradigma do nutricionismo está intrinsicamente ligado com as desigualdades e assimetrias de poder que dão a tônica do sistema alimentar hegemônico, concentrado na mão de poucos atores, que se reinventam e se aproveitam das crises para criar nichos de mercado que reforçam as bases de um experimento que falhou.

    Poucas coisas me emocionam tanto como a beleza de ser capaz de reconhecer erros de percurso. O paradigma do nutricionismo que viabilizou negócios trilionários de suplementos, publicidade, superalimentos e dietas da moda ainda está entre nós. A boa notícia é que já avançamos muito nas evidências baseadas em padrões alimentares, graus de processamento, comensalidade e cultura, e arrisco afirmar que as recomendações do Guia alimentar para a população brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, materializam muitos dos conceitos e sugestões trazidas neste livro.

    Precisamos substituir o modelo segmentado e reducionista por uma visão mais holística, construindo sistemas alimentares mais saudáveis, sustentáveis e regenerativos para quem planta, para quem come e para o nosso lindo e finito planeta Terra.

    Boa leitura e bom proveito.

    2 Diretora geral da

    act

    Promoção da Saúde.

    Prefácio

    Gyorgy Scrinis

    A edição brasileira de Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional traz uma oportunidade de reflexão sobre os avanços da nutrição desde que o livro foi publicado pela primeira vez, em 2013. Isso inclui dois importantes marcos para o Brasil, que ressoam significativamente nos argumentos deste livro: o sistema de classificação Nova e a criação do Guia alimentar para a população brasileira.

    Este livro defende que o que eu chamo de nutricionismo — ou reducionismo nutricional — foi um paradigma dominante na ciência da nutrição ao longo do último século. O nutricionismo é caracterizado por uma ênfase redutora nos nutrientes dos alimentos e dos padrões alimentares. O conceito também pode ser entendido como uma descontextualização dos nutrientes dos alimentos que desenconsidera a dieta e os contextos sociais e ambientais. Esse paradigma moldou a pesquisa científica, as diretrizes alimentares, o marketing da indústria alimentícia, e foi absorvido pela sociedade. Busquei, então, rastrear as mudanças históricas na forma como os nutrientes e os alimentos foram compreendidos, até a atual era do nutricionismo funcional.

    O livro examina as limitações científicas e políticas do nutricionismo, incluindo a forma como esse paradigma científico serviu a interesses econômicos particulares e políticos. O paradigma do nutricionismo foi, em muitos aspectos, cooptado pela indústria alimentícia, que aprendeu a comercializar seus produtos com base em alegações de benefícios nutricionais. E essa mesma indústria também financiou pesquisas científicas que tentam dar respaldo a essas alegações. Os fabricantes de comida ultraprocessada, por exemplo, usaram de seu poder técnico-científico para produzir e comercializar seus produtos e, ao mesmo tempo, usam de poder político para garantir uma regulamentação governamental favorável à indústria.

    Na última década, alguns elementos do paradigma do nutricionismo foram questionados por especialistas e por comunidades de saúde pública. Os capítulos a seguir apontam as muitas pesquisas científicas sobre alimentos e padrões alimentares que vieram à luz desde o começo dos anos 2000, incluindo estudos específicos sobre leite e bebidas açucaradas, entre outros. O importante papel do processamento de alimentos e as preocupações sobre ultraprocessados também foram amplamente reconhecidos e estudados. Esses desenvolvimentos na comunidade científica refletiram em recentes atualizações de diretrizes alimentares nacionais, que passaram a enfatizar a comida, e não o nutriente, e a trazer informações mais claras sobre o processamento dos alimentos. Isso é evidente em países como França, Canadá, Israel, Uruguai, Peru e também Brasil.

    Em muitas nações, houve também alguns avanços importantes na esfera da política de nutrição, na regulamentação de produtos alimentícios processados e em ambientes alimentares. Entramos em uma nova era: muitos governos ao redor do mundo estão reconsiderando as limitações da autorregulação da indústria e começam a introduzir políticas para regular diretamente as práticas e os produtos de corporações conhecidas como Big Food. Governantes de países da América Latina, como Chile e México, por exemplo, estão à frente de muitas dessas iniciativas, que preveem a inovação de políticas de rotulagem frontal e restrições de venda e marketing.

    Um argumento central que percorre este livro é que a ciência da nutrição, especialmente a visão nutricêntrica, falhou em acompanhar a maneira como a indústria de ultraprocessados degradou a qualidade dos alimentos e, de formas não adequadas, continua a traçar o perfil nutricional da comida. Como uma alternativa a essa abordagem que dá destaque aos nutrientes, apresento, no capítulo 9, um sistema de classificação de alimentos baseado em seu nível de processamento, no qual identifico três categorias: minimamente processado, alimentos refinados e processados e alimentos processados reconstituídos — este último é entendido como comida composta principalmente por ingredientes transformados a partir de componentes de comida in natura.

    Paralelamente ao desenvolvimento deste sistema de classificação, o professor Carlos Monteiro e sua equipe na Universidade de São Paulo introduziram o sistema de classificação Nova, que inclui a importante categoria de alimentos ultraprocessados. Na última década, a equipe de Monteiro — além de muitas outras equipes de pesquisa — aplicou esse sistema para analisar padrões alimentares e seus impactos na saúde em muitos países. Esses estudos têm demonstrado uma associação consistente entre o consumo de alimentos ultraprocessados e resultados negativos para a saúde. Essa nova linha de pensamento explora de que formas uma gama de técnicas industriais de processamento podem ser responsáveis pela transformação e degradação da qualidade dos alimentos, o que pode explicar alguns dos impactos prejudiciais à saúde causados por esses produtos. Esse método é também importante porque aponta conexões diretas entre os produtos, os impactos na saúde e as corporações que os projetam, fabricam em massa e, de forma agressiva, os distribuem e comercializam.

    A classificação Nova é hoje amplamente reconhecida e endossada por especialistas em nutrição e saúde pública ao redor do mundo. Tenho colaborado com o professor Monteiro e sua equipe desde 2016 nos estudos sobre a Nova, incluindo uma análise do consumo de alimentos ultraprocessados na Austrália. Embora, neste livro, eu não me refira à classificação Nova, o termo alimentos ultraprocessados tem uma definição muito semelhante à de alimentos processados reconstituídos, e eles podem ser considerados mais ou menos intercambiáveis.

    O Guia alimentar para a população brasileira, lançado em 2014 e agora celebrado internacionalmente, é uma outra iniciativa importante do Brasil com relevância direta para os argumentos deste livro. Essas diretrizes nutricionais foram provavelmente as primeiras que não colocaram nutrientes no centro de suas recomendações e se concentraram em alimentos e dietas tradicionais. O guia brasileiro incorpora o sistema de classificação Nova, com orientações claras para evitar alimentos ultraprocessados e, em vez disso, seguir padrões alimentares minimamente processados e ecologicamente sustentáveis. Essas diretrizes também introduzem os alimentos em mais amplos contextos sociais, culturais e ecológicos. O guia alimentar brasileiro tem muito em comum com a abordagem sobre alimentação e nutrição defendida neste livro — e a coloca em prática. Suas orientações até fazem referência a este livro, observando que ele desenvolve vários dos argumentos que justificam o olhar abrangente da relação entre alimentação e saúde adotado por este guia, em particular quanto a não reduzir os alimentos aos nutrientes individuais neles contidos.³

    Apesar desses vários desenvolvimentos positivos e do bom trabalho de muitos cientistas da nutrição, de especialistas em saúde pública e de políticas públicas em todo o mundo, o nutricionismo continua a balizar muitas pesquisas sobre nutrição, diretrizes alimentares, desenvolvimento de políticas públicas e, principalmente, marketing da indústria de alimentos sobre seus produtos. Basta observar a promulgação frequente de aconselhamento dietético concentrado em nutrientes, fora de qualquer contexto sobre padrões alimentares. É perceptível também nos discursos científicos e populares e no uso contínuo do Sistema de Perfil Nutricional para avaliação da qualidade de alimentos processados com finalidade regulatória, e é ainda mais evidente nas reivindicações de precisão científica em novas áreas de pesquisa em ascensão, como microbioma, nutrição personalizada e alimentos funcionais.

    Nos capítulos finais, discuto algumas das maneiras pelas quais podemos ir além do nutricionismo, em direção a uma relação diferente com os alimentos, os nutrientes e o corpo. O objetivo não é apenas elaborar um paradigma científico alternativo mas também capacitar pessoas e comunidades para desenvolver e recuperar outras abordagens para alimentação e saúde.

    Termino agradecendo a João Peres, act Promoção da Saúde, O Joio e O Trigo e Editora Elefante por viabilizar a tradução e publicação deste livro no Brasil; a Juliana Leite Arantes pela tradução do texto; e a Inês Rugani Ribeiro de Castro e Paula Johns pela generosa Apresentação e pelo Prefácio à edição brasileira.

    3

    brasil. ministério da saúde.

    Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014, p. 131.

    1

    Um conflito de ideologias nutricionais

    Em aparência, cor, brilho e plasticidade, a margarina é superior à manteiga; no sabor, avanços recentes demonstram excelentes resultados. […] As qualidades nutricionais da margarina também podem ser modificadas com relativa facilidade, tanto agindo sobre os componentes da fase da gordura quanto pela inclusão de aditivos eficazes.

    — Robert Feron (1969)

    A margarina tem sido o camaleão dos alimentos manufaturados, capaz de transformar a própria aparência, de se adaptar a modismos nutricionais e de encantar até mesmo consumidores conscientes e especialistas desprevenidos. Pesquisas sobre a margarina publicadas por cientistas no início dos anos 1990 revelaram a nocividade das gorduras trans e a característica altamente processada e degradada do produto; desde então, a margarina continua sendo reinventada como um alimento funcional, livre de gorduras trans e diminuidor das taxas de colesterol.

    A história da margarina reflete algumas das mudanças mais amplas dos paradigmas nutricionais em três distintas eras da ciência da nutrição e do aconselhamento nutricional nos últimos 150 anos. Desde a sua invenção por um químico francês, no final do século xix, até os anos 1960, o público considerou a margarina, de maneira geral, uma imitação mais barata da manteiga, largamente consumida por pessoas que não podiam comprar o produto original. A manufatura desse creme altamente processado envolve a solidificação do óleo vegetal por meio da reconstituição química de suas gorduras poli-insaturadas, um processo que produz tanto gordura saturada quanto novas formas de ácidos graxos trans. Muitos outros ingredientes foram adicionados para ajudar a simular a aparência, o sabor, a textura e o perfil nutricional da manteiga, incluindo corantes amarelos e vitaminas A e D.

    No início dos anos 1960, o cientista nutricional estadunidense Ancel Keys e seus colegas encontraram evidências de uma relação indireta entre o consumo de gorduras saturadas e o aumento de risco de doenças cardíacas. As gorduras saturadas aumentavam os níveis de colesterol no sangue, o que por sua vez estava associado ao aumento do risco de doenças cardíacas, enquanto as gorduras poli-insaturadas diminuíam esses níveis de colesterol. Assim começou a ideia da distinção entre nutrientes bons e ruins e, em particular, entre gorduras boas e gorduras ruins, marcando o surgimento de uma nova era nutricional. Apesar da natureza preliminar dessa nova teoria, tal era a convicção de Keys e de outros conselheiros da American Heart Association [Associação estadunidense do coração] que o discurso das gorduras boas e ruins acabou por dominar não somente as orientações dietéticas sobre doenças do coração mas também o chamado nutriscape, o cenário nutricional como um todo.

    Foi inteiramente com base na emergente hipótese das gorduras boas e ruins que muitos cientistas nutricionais promoveram como mais saudáveis as margarinas feitas de óleos vegetais ricos em gorduras poli-insaturadas, em detrimento da manteiga, rica em gordura saturada. Esses especialistas não deram grande importância aos tipos de processamento e aos aditivos usados para produzir a margarina.

    A promoção da margarina exemplifica algumas das características e limitações do que eu chamo de ideologia do nutricionismo.⁵ Essa ideologia tem condicionado a pesquisa em ciência da nutrição desde o fim do século xix e tem instruído o aconselhamento nutricional, as regulamentações de rotulagem de alimentos, de engenharia alimentar e de práticas de marketing, assim como o entendimento do consumidor sobre os alimentos. O nutricionismo — ou o reducionismo nutricional — é caracterizado por uma ênfase redutiva na composição nutricional dos alimentos como forma de identificar o quanto eles são saudáveis, e por uma interpretação redutora do papel de tais nutrientes na saúde corporal. Uma das principais características é que, em alguns casos — e especialmente no caso da margarina —, se omitem ou se desconsideram as preocupações com a qualidade de produção e do processamento do alimento e de seus ingredientes.

    No início dos anos 1960, o próprio Keys levantou algumas preocupações quanto aos benefícios para a saúde das gorduras trans e de óleos quimicamente solidificados. Seus estudos demonstraram que, assim como as gorduras saturadas, as gorduras trans pareciam elevar o índice de colesterol no sangue. Contudo, nem Keys nem outros cientistas deram continuidade a essas pesquisas. Em vez disso, priorizaram a estigmatização das gorduras saturadas naturalmente presentes em muitos alimentos, sobretudo nos de origem animal.

    As atenções só se voltaram para a margarina nos anos 1990, quando dois cientistas holandeses publicaram um estudo afirmando que as gorduras trans eram, na verdade, mais nocivas que as gorduras saturadas, já que elevavam o chamado colesterol ruim no sangue (lipoproteína de baixa densidade, ou ldl), enquanto também diminuíam o colesterol bom (lipoproteína de alta densidade, ou hdl).⁶ Nos anos seguintes, mais estudos foram publicados por outros pesquisadores, incluindo Walter Willett, da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, demonstrando a associação entre o consumo de gorduras trans e o aumento da incidência de doenças cardíacas, assim como o papel das gorduras trans como promotoras de inflamações e de outros efeitos negativos,⁷ contradizendo diretamente os aconselhamentos nutricionais prévios feitos pela maioria dos especialistas, que diziam que a margarina era uma alternativa mais saudável que a manteiga. Em nome da melhoria da saúde cardíaca dos cidadãos, os especialistas em nutrição — por suas próprias conclusões — estavam provavelmente mandando esses cidadãos mais rápido para o túmulo.⁸ Um consenso científico finalmente se deu em torno da ideia de que gorduras trans são gorduras ruins — as piores gorduras entre todas, mais nocivas e perigosas do que as temidas gorduras saturadas entupidoras de artérias.

    A história da margarina descrita até agora — assim como as propriedades supostamente nocivas das gorduras trans — devem ser bastante familiares para a maioria dos leitores. E o que aconteceu depois demonstra quão pouco se aprendeu com o fiasco. Em vez de despertar para o questionamento da interpretação reducionista dos alimentos em termos de sua composição de gorduras e nutrientes, a controvérsia se converteu numa oportunidade para reforçar o paradigma. A referência das gorduras trans como gorduras ruins, por exemplo, tem sido usada para repisar e ampliar a linguagem e as conclusões sobre gorduras boas e ruins, assim como sobre bom e mau colesterol. A American Heart Association também aborda a questão da gordura trans para fortalecer uma longa campanha contra as gorduras saturadas, caracterizadas como as mais perigosas justamente por de serem as mais consumidas.

    O foco nos tipos de gordura tem capturado a atenção de especialistas e consumidores a respeito da presença ou da ausência de gorduras trans na margarina, em vez de se observar as técnicas de processamento e os ingredientes usados em sua produção. Desde a metade dos anos 1990, fabricantes de margarina e de outros produtos alimentícios reformularam as mercadorias, e redes de fast-food mudaram os óleos usados na fritura por imersão para reduzir ou remover a gordura trans de seus processos. Mesmo assim, especialistas questionaram e alertaram consumidores para as novas técnicas que solidificam óleos vegetais na fabricação da margarina, examinando quais seriam as implicações de saúde desses ingredientes e quais técnicas alternativas poderiam ser usadas. Nessa era virtualmente livre de gordura trans, fabricantes de alimentos usam agora uma combinação de técnicas, incluindo interesterificação, fracionamento e hidrogenação total para reconstituir e solidificar as gorduras presentes em óleos vegetais. O processo de hidrogenação que produz as gorduras trans industriais ainda é usado em muitos casos, mas de maneira que evite ou minimize a criação de gorduras trans. Contudo, mesmo que o produto final possa ter menos gorduras trans, isso não significa que seja menos processado ou quimicamente modificado: as gorduras foram simplesmente reconstituídas em outra forma. As gorduras interesterificadas vieram para substituir algumas gorduras trans em margarinas e outros produtos.

    Enquanto a controvérsia das gorduras trans se desdobrava, ao longo da década de 1990 alguns produtores de margarinas, como a Unilever, começaram discretamente a reduzir as gorduras trans nos produtos. Em simultâneo, desenvolveram uma linha premium de margarinas que reduzem o colesterol, fortificadas com fitoesterois. A produção envolve a adição de componentes vegetais altamente processados — às vezes derivados de celulose — a produtos alimentícios também altamente processados. Tanto as margarinas quanto os produtos alimentícios derivados estão agora autorizados a anunciar o atributo saudável de que podem reduzir o risco de doenças cardíacas, com aprovação da United States Food and Drug Administration (fda), a agência federal dos Estados Unidos que regula alimentos e medicamentos.⁹ Essas alegações de saúde se baseiam na hipótese da correlação entre os níveis de colesterol no sangue e o risco de doenças cardíacas (a mesma hipótese que tem moldado as diretrizes nutricionais desde os anos 1960), e não no fato de que não há nenhuma evidência direta de que o consumo dessas variedades de margarinas levaria a uma redução na incidência de doenças cardíacas.

    A ideia de que é possível reduzir ativamente os riscos de doenças cardíacas ao consumir esses produtos fortificados é típica da era corrente de nutricionismo funcional. Em vez de apenas evitar os nutrientes ruins, o discurso nutricional dominante tem como objetivo otimizar o consumo de nutrientes benéficos. Não basta apenas ser saudável: alguns dos imperativos do nutricionismo funcional sugerem que você melhore sua saúde ao dar atenção a funções e processos corporais específicos. Para alcançar tal saúde e funções físicas aprimoradas e otimizadas, temos de nos manter a par das mais recentes pesquisas nutricionais e de conselhos de especialistas, identificando os alimentos integrais ou os alimentos processados funcionais que proporcionam os benefícios desejados. A indústria alimentar está na posição ideal para cultivar esse comportamento e corresponder à procura dos consumidores por alimentos funcionais que aprimoram a saúde.

    Ciência e aconselhamento nutricional nutricionalmente reducionistas

    O fiasco da gordura trans é um dos vários casos de revisões e retrocessos nos conhecimentos científicos e no aconselhamento nutricional que contribuíram para a percepção do público de que as recomendações alimentares mudam constantemente. Essas revisões incluem conselhos sobre colesterol nas dietas, ovos, dietas com baixo teor de gordura (low-fat) e suplementos de betacaroteno.¹⁰ No entanto, minha crítica ao nutricionismo não se baseia na preocupação de que cientistas de nutrição às vezes o compreendam de maneira errada — de fato, a alegação de que há uma única resposta certa ou uma única verdade científica sobre os efeitos dos nutrientes à saúde é uma das características do próprio nutricionismo. A questão não é invalidar as informações valiosas que a ciência produziu sobre as relações entre os nutrientes, os alimentos e o corpo, mas perceber que essas informações foram frequentemente interpretadas de forma reducionista e traduzidas em diretrizes dietéticas igualmente reducionistas, em um processo de descontextualização, simplificação e exagero do papel dos nutrientes como determinantes da saúde corporal.

    Também é importante deixar claro que o nutricionismo e o reducionismo nutricional não se referem simplesmente ao estudo ou à compreensão dos alimentos com base em seus nutrientes isolados. Se fosse esse o caso, toda investigação científica sobre nutrientes e todos os conselhos nutricionais com base específica em nutrientes seriam necessariamente reducionistas. Não se trata disso, mas sim das formas como os nutrientes têm sido frequentemente estudados, interpretados e depois aplicados ao desenvolvimento de orientações alimentares, rotulagem nutricional, engenharia e marketing de alimentos, que os descrevem de maneira redutora. Isso sugere que existem outras formas (menos limitantes) de se desenvolver e aplicar o conhecimento nutricional.

    Os últimos 150 anos de pesquisas científicas evidenciam a imensa complexidade das relações entre os alimentos e a saúde corporal. Os alimentos são combinações de muitos nutrientes e componentes em várias quantidades e associações, interagindo entre si dentro do corpo, de maneira que os efeitos de um alimento para a saúde podem também depender de outros alimentos com os quais ele se combine numa refeição. Ao mesmo tempo, várias técnicas de processamento de alimentos e aditivos podem transformar significativamente — e, em alguns casos, reduzir ou degradar — a qualidade nutricional de alimentos integrais. Compreender os efeitos que essa gama de alimentos, aditivos e técnicas de processamento exercem sobre a saúde é também um desafio, porque a maioria das funções corporais, doenças e condições de saúde podem ser afetadas por múltiplos fatores — dietéticos e não dietéticos. As doenças por deficiência de um único nutriente, como o escorbuto, por exemplo, causado pela falta de vitamina C, hoje são a exceção, e não a regra em países altamente industrializados.

    Apesar dessas complexidades, especialistas em nutrição têm frequentemente elevado sua compreensão limitada (e muitas vezes bastante preliminar) dos nutrientes ao status de certezas ou verdades nutricionais. Desde as tentativas dos cientistas do século xix de calcular a quantidade precisa de macronutrientes e calorias necessárias para o crescimento normal e para a prevenção de deficiências, essa arrogância nutricional foi estendida à distribuição de conselhos dietéticos definitivos para reduzir o risco de enfermidades crônicas, como doenças cardíacas, câncer e diabetes. Mais recentemente, especialistas em nutrição afirmam ser possível identificar os nutrientes e os alimentos capazes não só de manter uma boa saúde como também de otimizá-la, melhorando funções corporais específicas. Esse mito da precisão nutricional envolve uma representação exagerada da compreensão dos cientistas sobre a relação entre os nutrientes, os alimentos e o corpo. Ao mesmo tempo, as discordâncias e as incertezas que existem na comunidade científica tendem a ser ocultadas ou não totalmente apresentadas ao público leigo.

    Uma característica-chave do reducionismo nutricional é a sistemática descontextualização da compreensão sobre os nutrientes, cujo papel tem sido interpretado fora do contexto dos alimentos, dos padrões alimentares e dos contextos sociais mais amplos em que estão inseridos. Especialistas em nutrição fizeram, por exemplo, declarações definitivas sobre o papel de nutrientes isolados, tais como a gordura ou a fibra, descolados do contexto dos alimentos em que podem ser encontrados. Esse reducionismo ao nutriente único muitas vezes ignora ou simplifica as interações entre a variedade de nutrientes dentro de um mesmo alimento, assim como dentro do corpo. Isso envolve também a associação prematura entre nutrientes únicos e doenças, como uma relação determinista ou causal segundo a qual nutrientes isolados são alegadamente a causa direta ou pelo menos o fator de aumento de risco de doenças específicas. O mesmo vale para a via contrária, exagerando o papel benéfico de nutrientes isolados. Por exemplo, os efeitos prejudiciais das gorduras totais, da gordura saturada e do colesterol dietético, e os benefícios das gorduras poli-insaturadas, das gorduras ômega-3 e da vitamina D: todos foram, sem dúvida, exagerados, quando não seriamente deturpados ao longo dos anos.

    Durante boa parte de sua história, a ciência da nutrição preocupou-se em estudar os nutrientes naturalmente presentes nos alimentos integrais, e não os alimentos altamente processados ou os novos alimentos e componentes alimentares que proliferaram ao longo do século xx. Ao mesmo tempo, pesquisadores promoveram ou condenaram determinados alimentos integrais com base em seu perfil nutricional subjacente e de acordo com as quantidades de bons e maus nutrientes que eles contêm. Ovos e manteiga, por exemplo, são constantemente estigmatizados pelo colesterol ou pelo teor de gordura saturada.

    No entanto, as principais mudanças nos padrões de alimentação desde o início do século xx estão orientadas a um aumento no consumo de alimentos altamente processados, contendo ingredientes altamente refinados, extraídos, quimicamente transformados e reconstituídos. Foi apenas durante a última década que alguns desses ingredientes e alimentos processados começaram a ser estudados de forma mais sistemática. No início dos anos 1990, por exemplo, pesquisadores começaram a prestar mais atenção às gorduras trans reconstituídas quimicamente. Até bem pouco tempo, o estudo das consequências metabólicas precisas do alto consumo de açúcar — para além de seu valor calórico — também foi negligenciado. Há poucos estudos que examinem determinados produtos alimentares. Em vez disso, cientistas da nutrição avaliaram os alimentos altamente processados principalmente com base nas quantidades relativas dos chamados nutrientes bons ou ruins que eles contêm, assim como no conteúdo de vitaminas ou na ausência de fibras. E isso ignora a forma como as técnicas de processamento também podem transformar e danificar substancialmente a matriz alimentar original — isto é, a combinação única dos componentes dos alimentos e a forma como todos são conjugados em um alimento integral.¹¹

    Desde a década de 1970, cada vez mais especialistas em nutrição e saúde pública traduzem ao público leigo, em diretrizes dietéticas nutricêntricas, um conhecimento científico nutricionalmente redutor. Eles têm enquadrado as orientações dietéticas e o aconselhamento nutricional dominante em termos da necessidade de consumir mais ou menos nutrientes e componentes alimentares específicos, dizendo, por exemplo, para comermos mais dos bons nutrientes (gorduras insaturadas, fibras, vitaminas, cálcio e antioxidantes) e menos dos nutrientes ruins (gorduras saturadas, gorduras trans, colesterol, carboidratos refinados e calorias). Esse conselho dietético envolve, inevitavelmente, uma deliberada e pragmática simplificação de todo o conhecimento científico mais complexo, detalhado, heterogêneo ou multinutrientes.

    A recomendação de baixo teor de gordura que dominou as orientações dietéticas nos anos 1980 e 1990 representa o auge dessa interpretação excessivamente simplificada, descontextualizada e exagerada. A maioria dos especialistas em nutrição e instituições como a fda foram inequívocos ao dizer ao público que comer muita gordura era uma causa de obesidade e de uma série de doenças crônicas, independentemente dos outros nutrientes, alimentos ou padrões dietéticos em que a gordura vinha embalada. Muitos especialistas e também o público assumiram que alimentos de qualquer tipo com baixo teor de gordura eram uma opção mais saudável do que seus equivalentes de gordura integral, como por exemplo substituir o leite integral por leite desnatado. A qualidade dos alimentos que continham essas gorduras, se elas estavam naturalmente presentes em alimentos integrais ou se teriam sido adicionadas, transformadas ou degradadas durante o processamento — tudo isso estava subordinado a preocupações sobre a quantidade ou a porcentagem de gordura. O discurso do baixo teor de gordura, há muitos anos, tem sido também desafiado por seu concorrente direto, sua imagem no espelho: a dieta de baixo teor de carboidratos (low-carb). No entanto, muitos proponentes do baixo teor de carboidratos também descontextualizaram, simplificaram e exageraram de maneira similar os efeitos desses macronutrientes sobre a saúde.

    Os conselhos dietéticos e a linguagem cotidiana que usamos para falar sobre alimentação e saúde alimentar também são colonizados por uma proliferação de categorias e conceitos nutricionais. Esse discurso nutricional substituiu sistematicamente as referências a alimentos reais ou à qualidade dos alimentos. Especialistas em nutrição usam termos típicos de nível nutricional como calorias vazias, carboidratos refinados, denso em energia e alto índice glicêmico para se referirem ao caráter nutricional de alimentos refinados e altamente processados de baixa qualidade nutricional, enquanto os termos denso em nutrientes e baixo índice glicêmico são frequentemente usados como eufemismos nutricionais para alimentos de boa qualidade, integrais.

    A comoditização e a corporativização do nutricionismo

    O nutricionismo forneceu um poderoso quadro conceitual para a transformação de nutrientes e de conhecimentos nutricionais em produtos alimentares comercializáveis, bem como para a comoditização das práticas de produção e consumo de alimentos. Os fabricantes constroem uma fachada nutricional em torno de um produto alimentar e promovem, assim, alguns dos nutrientes desse produto.¹² Essa fachada distrai a atenção dos consumidores quanto a ingredientes, aditivos e técnicas de processamento utilizados na produção. Por exemplo, cereais matinais altamente refinados, com 38% de açúcar, como o Choco Krispies, são anunciados como uma boa fonte de vitamina D. A promoção de benefícios nutricionais, aliás, é comum entre os fabricantes de cereais.¹³ Desde meados da década de 1990, nos Estados Unidos e em outros países, órgãos governamentais reguladores têm permitido que vários tipos de afirmações diretas de benefícios à saúde apareçam nos rótulos e nos anúncios dos alimentos — incluindo alegações de funcionalidade, como o cálcio ajuda a construir ossos fortes, e alegações de prevenção de doenças, como a de que a fibra solúvel da aveia reduz o risco de doenças cardíacas.

    Durante as décadas de 1970 e 1980, a introdução de produtos alimentícios com baixo teor de gordura, baixo teor calórico e enriquecidos com vitaminas se diversificou na produção de uma gama mais ampla de alimentos desenvolvidos por meio de engenharia nutricional, com adição de componentes alimentares capazes de abordar um leque maior de condições de saúde, tais como a margarina enriquecida com fitoesterois, que reduz o colesterol, e o iogurte probiótico, que melhora a saúde intestinal. Os especialistas em nutrição e a indústria alimentícia muitas vezes se referem a esses alimentos nutricionalmente artificiais como alimentos funcionais, já que supostamente melhoram determinadas funções corporais ou condições de saúde.

    Há uma profunda cumplicidade entre o nutricionismo e os interesses comerciais dos fabricantes de alimentos — e os especialistas em nutrição têm sido relativamente lentos em detectá-la. A indústria alimentícia certamente explora a ciência da nutrição de várias maneiras, como por exemplo se apropriando seletivamente da pesquisa nutricional, financiando estudos próprios de nutrição e usando afirmações de saúde endossadas pelo governo para comercializar seus produtos. No entanto, atualmente a indústria também se apropria e assume o controle do próprio paradigma do nutricionismo. As corporações de alimentos colonizaram o nutriscape, inundando o mercado com produtos de engenharia nutricional e com afirmações de marketing que acentuam as ansiedades e as necessidades nutricionais dos consumidores — necessidades que essas corporações estão prontas para comoditizar e explorar. Ainda assim, muitos especialistas parecem ignorar ou estar alheios a essa captura corporativa do nutricionismo, ou nutricionismo corporativo.

    Um conflito de ideologias

    Na década de 1980, uma parte dos especialistas em nutrição promovia a margarina como substituta da manteiga, o que me levou a questionar essa interpretação redutora dos nutrientes. Na época, eu era adepto de uma dieta majoritariamente vegetariana, motivado por preocupações com o bem-estar dos animais e com os impactos ambientais da produção de carne. E eu também havia aceitado sem questionar os argumentos-padrão de especialistas em nutrição — e do movimento contracultural de alimentos integrais — de que ingerir muita carne é essencialmente ruim para a saúde devido às suas gorduras totais e à gordura saturada; desse modo, quanto menos carne, melhor.¹⁴ Minha dieta naquele momento (e ainda hoje) consistia em grande parte de alimentos vegetais minimamente processados, incluindo lentilhas, meu pão de fermento natural assado em casa e ovos de nossas próprias galinhas criadas livres.

    Entretanto, o ovo frito na manteiga e a torrada de farinha branca que eu comia

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1