OS CAMINHOS DA PROCISSÃO
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OS CAMINHOS DA PROCISSÃO - Silvio Kanner Pereira Farias
A maniçoba já estava pronta. Este ano demorou menos, dona Mariquita havia comprado maniva pré-cozida. Quem dava os últimos retoques era Aparecida, este ano não foi acompanhar a mãe na procissão. Faltava pouco para iniciar o tradicional almoço do Círio na casa do Zé Maria. O Filho com a família, a Nazaré com a família e a mulher do Pedro Paulo, com seus filhos, já estavam lá, ele estava de serviço ainda, mas já iria sair, era seu turno. Bené ainda estava dormindo devido à manguaça do dia anterior, mas logo acordaria para reiniciar as bebedeiras.
As mulheres estavam na cozinha, que era estreita como a casa. Uma mesa encostada na parede que dava pro quarto do casal, fogão, geladeira e armário na parede lateral, e uma pia simples de inox, que destoava da madeira velha, entre as duas portas, na parede de fundo, uma que dava para o banheiro, o único com que contava a humilde morada, e outra que levava ao quintal. Quanto à mansarda, o que lhe faltava em largura tinha em comprimento, eram vinte e cinco metros, só de quintal eram dez. Nazaré falava com a irmã e com a cunhada que suspeitava que seu marido a estava traindo. Depois de dezessete anos de casamento, habituada que estava a cuidar da casa, do marido e dos filhos, não conjecturava uma mudança, isso era apenas uma constatação a mais em sua vida, qualquer conselho que não significasse resignar-se e submeter-se seria inócuo. Os conselhos começaram a surgir enquanto ela terminava a farofa. A farofa da Nazaré, famosa na família, como sempre, ficou muito boa, quanto aos conselhos ela nem sequer deu-se ao trabalho de ouvi-los direito.
Mariquita ainda não voltara do Círio, mas já devia estar a caminho, foi o que pensou Aparecida, ao saber pelos moleques que brincavam no quintal ao lado que uma vizinha já estava em casa. Fora com as amigas, companheiras de novenas, terços e missas, como todos os anos faz desde que veio morar em Belém, ao longo desse tempo tornou-se muito devota de Nossa Senhora de Nazaré e orgulhava-se de dizer que nunca havia perdido uma procissão da santinha, mesmo no ano em que a fraqueza, produto de uma doença no útero, parecia não lhe permitir. Mas sentia-se sempre triste ao recordar que Zé Maria nunca havia ido com ela, a parte as missas de domingo, dia em que ele tinha folga do trabalho, seu marido não se sentia obrigado com nada mais perante a tradição cristã.
Isso é muito típico da religiosidade Parauara, as mulheres sempre presentes em todas as atividades da igreja, o fazem por assim dizer, tornam-no socialmente relevante e substantivo, relacionam tudo nas suas vidas a preceitos de fé, formam o público cativo para todas as atividades eclesiásticas, mas tudo isso, na maioria das vezes, sozinhas. Sem demérito das exceções, os homens, quando vão, vão às missas aos domingos e aos batizados dos filhos de amigos próximos ou gente da família que os escolheu para padrinhos, quando não, nos domingos pela manhã, jogam futebol ou preparam almoços, carne ou peixe assados, na verdade todos esses são apenas rituais para uma boa cervejada de domingo. O povo de Belém é festeiro, aos domingos as ruas e os quintais estão cheios de amigos, parentes e vizinhos todos felizes bebendo, comendo e dançando ao som de uma música de volume sempre muito alto e que produz um agito quente nos corações.
Zé Maria não bebia mais há quase vinte anos, desde a tuberculose, quando passou pertinho da morte, aprendera a lição, depois disso seu tempo era o trabalho. Para desanuviar acompanhava os jogos do Paysandu no seu radinho de pilha, sentado na porta da sua casa. Divertia-se fazendo cálculos de pontos necessários, de quantas vitórias e empates seriam suficientes para a classificação do seu time, esse era quase sempre o objeto das suas conversas e pilherias com os conhecidos da rua e com o Domingos do boteco. O boteco também era local da mesa de dominó, que nas sextas e nos sábados à noite reunia a macharada da rua para uma boa algazarra com jogatina. Era bom de fazer contas de cabeça, apesar do pouco estudo, no dominó era quase imbatível.
Chegou Mariquita, era quase uma da tarde, o almoço estava na mesa e os netos ficaram todos felizes. Ela era uma luz na vida deles, fazia tudo que eles gostavam, cuidava de todos e de cada um com o mesmo zelo e com muito amor. As filhas abraçaram-na quando foram recebê-la na entrada e diligentemente informaram-na do andamento das coisas. Aparecida, a quem ela encarregara de preparar a comida, foi a primeira, depois Nazaré informou-lhe sobre quem havia ou não havia chegado, em seguida a nora, mulher de Pedro Paulo, deu-lhe notícias do filho, que ainda não estava lá, mas que já havia terminado o turno e estava a caminho, vinha de moto. O Bené ela já sabia onde estava.
Como de costume, sobre coisas sérias, questionava Aparecida, a mais nova, porém a mais madura e responsável. Era a confidente da mãe, morava ainda com eles e sua dedicação ao estudo, bem como seu diploma de pedagoga, fizeram-na granjear o respeito geral, mais ainda o da genitora.
- Minha Filha, seu pai já chegou? - disse-lhe Mariquita logo depois de receber as demais informações.
- Ainda não mãe!
Depois disso sentou-se e assim permaneceu por alguns instantes, a caminhada havia sido longa, mas sentara apenas por hábito, não estava cansada. Acompanhar a procissão era mais revigorante que cansativo. Sua sabedoria, adquirida depois de muitos anos dizia-lhe que o marido ainda não havia chegado, não porque o trabalho atrasara-o, mas porque ele próprio havia atrasado o trabalho deliberadamente, com o fito de não chegar mesmo. Ele devia estar apreensivo com essa confraternização, tinha medo de não conseguir esconder, de deixar transparecer algo que queria manter em segredo dos filhos. Mas ela sabia que ele viria, o almoço do Círio era importante demais, além disso, nada começaria sem ele.
Do tempo que transcorreu entre a chegada de Mariquita e a de Zé Maria, com tudo preparado, mas sem poder seguir e iniciar a comilança, naquele estado de suspensão inquietante, de espera por algo ou alguém que não se sabe onde está exatamente, mas que se espera ainda assim, as filhas, mais perspicazes, perceberam logo que alguma coisa não ia bem. Aprenderam, no entanto, desde muito novas, que não deviam perscrutar a mãe, que nunca o admitiu, ainda mais sobre o pai. A vida do casal nunca fora objeto de qualquer tipo de comentário pelos filhos, nunca lhes fora permitido sugerir ou aconselhar ou perguntar nada que fosse. Em face de sua educação, ficaram caladas. Mas algo logo ocorreu que permitiu a todos pensar que estava tudo bem, que o atraso do pai era devido a complicações de última hora e que logo chegaria com vários litros de açaí para o almoço.
Pedro Paulo chegou, como Maria José havia informado, para