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Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo
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Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo
E-book835 páginas10 horas

Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo

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Sobre este e-book

Esta obra supre uma importante lacuna ao reunir relevantes estudos que ajudam a compreender os efeitos, no estado de São Paulo, de políticas públicas federais e estaduais voltadas à agricultura familiar. Nesse sentido, este livro atende a diferentes objetivos, como o de promover pesquisas e pesquisadores da agricultura familiar no estado, salientar a presença e a importância dessa categoria de agricultores e sua necessidade de maior atenção por parte do Estado e, ainda, demonstrar os efeitos das políticas públicas na agricultura familiar paulista.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento1 de ago. de 2022
ISBN9786586768589
Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo

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    Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo - Regina Aparecida Leite de Camargo

    ENTREVISTA COM SONIA MARIA PESSOA PEREIRA BERGAMASCO

    Uma história de vida dedicada à agricultura familiar paulista

    Entrevista concedida à Regina Aparecida Leite de Camargo, Ricardo Serra Borsatto e Vanilde Ferreira de Souza-Esquerdo

    A professora e pesquisadora Dra. Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco pode ser apresentada de várias maneiras: por sua notável carreira acadêmica de mais de 50 anos; por seu comprometimento e militância em favor da agricultura familiar, da reforma agrária e de uma extensão rural pública, gratuita e ancorada nos princípios da agroecologia e da educação dialógica; pela sua marcante influência na vida de tantos alunos e orientandos ou ainda por sua simpatia, alegria, energia e grande generosidade.

    A professora é também conhecida pelos muitos projetos de pesquisa, de extensão e de educação que coordenou, tanto no âmbito das universidades como junto a órgãos públicos e instituições internacionais. Seu papel de educadora não se restringiu à educação formal. Atuou e atua também em cursos de formação de movimentos sociais e cursos de especialização para extensionistas. Dificilmente o aluno que trabalhou em proximidade com a professora Sonia concluiu a experiência sem ter modificada sua visão sobre a realidade rural.

    Formada em agronomia pela Universidade de São Paulo (Esalq/USP), mestre em extensão rural pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutora em Ciências pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), com pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na École de Hautés Études en Sciences Sociales de Paris e especialização em Extensão Rural para o Desenvolvimento Socioeconômico na Wageningen University da Holanda, Sonia Bergamasco atuou como professora e orientadora de cursos de graduação e pós graduação na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Hoje aposentada, continua orientando alunos de pós-graduação na Unicamp e participando ativamente das entidades e dos movimentos em prol dos temas que sempre lhe foram caros: agricultura familiar, reforma agrária e extensão rural.

    Entrevistamos a professora Sonia Bergamasco de forma virtual em agosto de 2020, em meio a pandemia de COVID-19. Ela havia recém se tornado avó de duas gêmeas. Mas este contexto pessoal disruptivo não a impediu de estar atenta aos processos políticos de desmonte do aparato público de apoio à agricultura familiar, tanto em âmbito federal quanto estadual, e envolvida em diferentes frentes de resistência a estes processos. Como não poderia deixar de ser, a entrevista ocorreu em um clima descontraído, acompanhado por taças de vinho, refletindo o perfil da professora Sonia, que sempre conciliou compromisso acadêmico com alegria, amabilidade e atenção.

    Nós três convivemos há décadas com a professora Sonia. Participamos de diferentes projetos de pesquisa sob a sua coordenação, fomos alunos de suas aulas, nos tornamos professores seguindo seus exemplos. Envoltos por um sentimento de gratidão, é que nos orgulhamos de realizar esta entrevista.

    Entrevista

    Questão: Professora, seu trabalho de docente na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp em Botucatu-SP (FCA) e, posteriormente, na Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp em Campinas-SP (FEAGRI) sempre esteve voltado para questões relacionadas com a agricultura familiar, os assentamentos rurais e a extensão rural. Como e quando começou seu interesse por esses temas?

    SMPPB: Bom, primeiro eu quero agradecer por terem me convidado para esta entrevista, e espero corresponder à expectativa de vocês. Eu começaria dizendo que vocês têm razão: realmente, a minha trajetória foi sempre voltada, tanto no ensino quanto na pesquisa e na extensão universitária, para esse segmento da população.

    Eu sempre conto uma historinha, para ilustrar que a primeira sementinha, com relação a isso, foi ainda quando eu estava na pré-adolescência, quando eu tinha uns 9 ou 10 anos de idade. Meu pai era um extensionista rural de campo, ele ia muito para o campo e, em tempos de férias escolares, ele organizava um escalonamento, cada dia um dos filhos o acompanhava neste trabalho, e eu fui muito para campo com ele. A gente ia para ajudar a abrir a porteira, e o que é que ele mostrava para a gente? Exatamente essa agricultura familiar, uma agricultura onde a família estava lá. Ele se dava muito bem com os agricultores familiares e tinha um monte de afilhados nesses grupos de agricultura familiar.

    Depois teve a questão de Pedrinhas (Paulista). Pedrinhas hoje é um município, mas, na época, era uma cooperativa de colonização italiana. Papai trabalhou muito lá, eram pequenas áreas das famílias de italianos que foram para lá. Isso marcou minha escolha profissional de ir para a agronomia. Quando chegou o momento certo, prestei o vestibular e entrei na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz-USP, em Piracicaba-SP).

    Na Esalq foi realmente uma coisa muito complicada. Você falou da FEAGRI, de Botucatu, mas antes, na Esalq, a sensação que eu tinha é que não era aquilo que eu queria estudar. Porque na faculdade de agronomia a gente estudava as grandes culturas, as grandes empresas e todos os tipos de agroindústrias. Já naquela época, a cana e a soja eram muito presentes, tudo se transformava em canavial, tudo se transformava em soja. Começamos a perceber que não era bem aquilo que nós entendíamos como agricultura. No primeiro e no segundo ano eu fiz estágio em solos e em outras coisas, mas, felizmente, no terceiro ano encontrei a Sociologia e Extensão Rural, com o professor José Molina Filho. O professor Molina tinha um programa de extensão rural numa colônia italiana também, de pequenos agricultores, que era no bairro Campestre, em Piracicaba. Foi aí que eu me achei, que me encontrei. Me encontrei porque comecei a ir todo final de semana para o bairro Campestre. Ali eu vivenciei todas as questões da agricultura familiar: a questão do chefe da família, a mulher subalterna, a questão da mulher, os filhos, os netos, os filhos que casavam e que ficavam ali, que construíam uma casinha do lado e ficavam ali, os netos que ficavam ali também, formando um aglomerado, uma família, não mais a família nuclear, mas uma família extensa, todos morando naquele lote, todo mundo trabalhando. É lógico que eles já tinham máquinas, eles já tinham tratores, eles já tinham alguma coisa nesse sentido, mas eram realmente as famílias que trabalhavam.

    No curso de agronomia, o que é que a gente recebia? Todo um aparato de uma agricultura comercial, de uma agricultura extensiva, de uma agricultura com recursos químicos, mecânicos. Então, passamos a questionar esse enfoque, lógico que não era só eu, inúmeros colegas tinham também o mesmo questionamento. Começamos a formar grupos que faziam uma certa oposição àquilo. Claro que isso ocorreu mais no final do curso, nos últimos anos, e, depois, na Associação de Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo (AEASP). Diversos desses colegas vieram para a AEASP e começamos a debater as questões sociais e ambientais. Aí eu posso citar o Walter Lazzarini, a Maristela Simões do Carmo e mais um grupo grande de pessoas que queriam discutir alternativas a uma agricultura que começamos a chamar de, essencialmente, capitalista. Então foi um pouco por aí a minha trajetória.

    Quando terminamos o curso de engenharia agronômica na Esalq, diferente de hoje, nós tínhamos inúmeras possibilidades de trabalho. Havia vagas no ensino agrícola, na CATI (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral), e nas universidades − tinha uma vaga na Unesp de Jaboticabal, e outra na Unesp de Botucatu. Além dessas vagas, havia também um trabalho que era ligado à igreja, ligado ao arcebispado de Lins-SP, que era um trabalho do chamado IPPH (Instituto Paulista de Promoção Humana) e esse IPPH tinha uma linha de ação rural em Araçatuba-SP, onde foi criado o CTA, que era o Centro de Técnicas Agrícolas. Eu optei por ir para Araçatuba, para onde foram também o Roberto Moreira, o Wirley Jerson Jorge, o Jeferson, e mais outros colegas.

    O trabalho era maravilhoso, era para trabalhar com os agricultores familiares, era para discutir a formação de associações. Nós tínhamos tido, nos últimos anos de graduação, toda uma formação de educação construtivista, de educação para a liberdade, que foi a Escola Paulo Freire. Nós fomos com essa bagagem lá para Araçatuba. Trabalhamos por lá e foi incrível o trabalho, mas durou pouco. Durou pouco porque a ditadura militar fechou o IPPH, era uma verba que vinha de fora e foi cortada e uma noite nós fomos avisados que não estávamos mais contratados, que fôssemos embora. Eu saí à noite de ônibus de Araçatuba, e fui para Presidente Prudente-SP, que era onde moravam meus pais. Amanheci em Presidente Prudente sabendo que eu não estava mais empregada depois de quatro meses e que aquilo lá ia acabar, nós estávamos na época da ditadura né, claro. Bom, mas aí ainda restava o ensino agrícola, que ainda dava tempo de eu ir porque eu tinha prestado e então fui trabalhar no ensino agrícola em São Manuel-SP. Ao mesmo tempo, as vagas na universidade para as quais tínhamos mandado currículo, tanto Jaboticabal como Botucatu, abriram e eu fui chamada para Botucatu e para Jaboticabal. Eu escolhi Botucatu porque estava em São Manuel e não sabia quando sairia a nomeação, e na verdade eu fiz bem, porque a nomeação só foi sair em dezembro. Eu fui para São Manuel no final de abril, começo de maio, fiquei ali trabalhando e esperando a vaga de Botucatu e saiu a vaga só em dezembro. Mas antes disso, o pessoal de Botucatu me chamou para dar as aulas de extensão rural, porque chegou uma turma no quarto ano e tinha que ter essa disciplina, então eles me chamaram para ver se eu podia começar a dar essa disciplina.

    A primeira turma (de agronomia da Unesp de Botucatu) se formou em 1968, e aí quem deu aula de extensão rural foi o professor Molina, ele ia de Piracicaba para dar aula para a primeira turma em Botucatu, eu dei aula na segunda turma em 1969, nesse ano a segunda turma chegou no quarto ano.

    Em 1969, eu trabalhava em São Manuel, dando aula também, mas fixei residência em Botucatu e dava aula também em Botucatu, até que saiu minha nomeação, daí eu larguei o trabalho em São Manuel, deixei a escola agrícola e fiquei só na universidade.

    Questão: Os cursos de agronomia e engenharia agrícola são, de maneira geral, mais voltados para questões técnicas e temas de interesse da agricultura empresarial. Como foi defender a agricultura familiar e as políticas públicas voltadas para a agricultura familiar no ambiente acadêmico?

    SMPPB: Bom, o trabalho em Araçatuba ampliou a nossa visão da agricultura familiar. Conhecemos a agricultura familiar de Araçatuba e uma série de outros tipos de agricultura familiar na região do noroeste paulista. Então fui para São Manuel dar aula no colégio agrícola e também comecei a dar aula de extensão rural em Botucatu, na Unesp. Na primeira turma que eu dei aula em Botucatu tinham alguns alunos que já me conheciam, porque haviam feito e cursinho para o vestibular comigo e estavam um ano atrasados. Como a disciplina de extensão rural era no quarto ano, e na época o curso de agronomia era de quatro anos, os alunos já estavam formados para trabalhar com uma agricultura química, mecanizada e tecnificada. E eu comecei a dar aula falando das coisas que eu conhecia, falando dos agricultores familiares. Era bem assim: 50%, acho que 50% de alunos muito comprometidos, que concordavam com o que eu falava, discutiam, participavam. Os outros 50% vinham ao contrário. Foi muito interessante essa primeira turma que eu dei aula, foram 50%-50%.

    O pessoal de Botucatu também tinha uma história de militância muito grande, eles brigaram muito para ter a faculdade, eles eram um grupo já bastante politizado, então quando você falava de fazer uma extensão rural através de uma educação dialógica, de construir junto, de trocar conhecimento, de ouvir o agricultor, saber que o agricultor tinha conhecimento, que não era uma coisa de que só o técnico iria ensiná-lo porque ele já sabia, o pessoal aceitou muito bem.

    Eu tenho mais de 50 anos de universidade, eu tenho falado isso, mais de 50 anos de atividades de ensino e pesquisa e todas elas voltadas para este público.

    Questão: Sonia, como caminharam, evoluíram as pesquisas sobre agricultura familiar e políticas públicas nas últimas quatro décadas, quais temas emergiram e sumiram dos estudos acadêmicos?

    SMPPB: Bom, a primeira coisa bem sentida nos estudos acadêmicos foi que uma grande parte dos pesquisadores que trabalhavam com os assalariados rurais foi trabalhar com a agricultura familiar, com os assentamentos rurais. Recentemente, nas reuniões da Rede de Estudos Rurais, pensamos… e os assalariados rurais, o que foi feito deles? As pesquisas com esse público diminuíram horrores, ficou todo mundo nas pesquisas da agricultura familiar e dos assentamentos. Essa foi a principal mudança, trabalhamos com boias-frias durante um bom tempo, depois veio a agricultura familiar, porque aí vieram os assentamentos rurais.

    Sempre batemos firme na questão das políticas públicas. Tanto que no nosso questionário dos assentamentos colocamos a questão das políticas públicas, mas o que tinha de políticas públicas naquele momento, década de 1970? Era só o crédito, o crédito rural que era para todos os agricultores. Agora, imagine se esses agricultores familiares pegavam algum crédito rural? Isso eu vi lá na minha pesquisa em Botucatu dos agricultores familiares − jamais conseguiam pegar crédito. Havia diversos estudos, como o estudo do Guedes (Luiz Carlos Guedes Pinto), alguns estudos de Piracicaba. Tinha um estudo de Piracicaba que demonstrava que numa determinada safra, 80% do crédito do Banco do Brasil de Piracicaba foi para dois grandes agricultores. Então tinham coisas desta natureza, o crédito rural saía, mas para quem? Não era para os agricultores familiares, eles não tinham nem condição, aquela coisa de nem entrar num banco.

    Outra transformação foi que deixamos de ficar somente no marxismo ortodoxo para discutir a agricultura familiar, utilizando a teoria marxista-leninista de diferenciação. Depois conhecemos os estudos de Chayanov, e então deu uma febre, quer dizer, a nossa base teórica passou a ser o Chayanov, que diz que existe uma especificidade nessa agricultura familiar. Passamos a trabalhar dessa forma em nossos estudos, a teoria que utilizávamos para discutir a agricultura familiar passou a basear-se na teoria chayanoviana.

    No estudo do Chayanov aqui em São Paulo, não podemos deixar de falar da nossa professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, a professora Maria de Nazareth Baudel Wanderley, que deu uma contribuição incrível nesse sentido. Ela fez uma importante pesquisa ali na região de Araras e Leme; que se tornou um trabalho clássico, que ela coordenou com os agricultores familiares produtores de algodão. E o que que ela mostrou? Que pessoal produzia algodão com tecnificação, com tecnologia mesmo, mas eles eram agricultores familiares. O fato de eles terem muitas máquinas, muitas coisas, não tirava deles a condição de agricultor familiar. Isso foi uma lição muito grande, porque nós tínhamos muita crítica à questão da tecnologia, da mecanização, da quimificação etc. Mas aí é olhar a agricultura familiar enquanto o núcleo familiar, o trabalho dentro dessa agricultura, que era feito pelos filhos, pelos membros da família e com pouca contratação de trabalho externo.

    Anteriormente a isso, também tem outro trabalho da professora Nazareth, uma pesquisa junto com o professor Graziano (José Graziano da Silva), no sudoeste do estado de São Paulo, ali na região do (assentamento) Pirituba. Já havia os assentamentos, mas eles não trabalharam com os assentamentos e sim com os agricultores familiares daquela região. Esse tipo de pesquisa a gente deixou um pouco de fazer, porque entramos com o trabalho com os assentamentos. Hoje em dia, a maioria dos trabalhos na área da sociologia rural no estado de São Paulo ocorre com os assentamentos; e depois que surgiram as políticas públicas de apoio à agricultura familiar, muitos trabalhos passaram a ser sobre políticas públicas, mas também políticas públicas para os assentados, virou uma febre isso.

    Questão: Como foram criadas e evoluíram as políticas para a agricultura familiar no estado de São Paulo e até que ponto foram influenciadas ou influenciaram as políticas federais? Como esse conjunto de políticas impacta na agricultura familiar paulista?

    SMPPB: Quando surgiram os primeiros assentamentos estaduais, aqui no estado de São Paulo, começamos a debater a importância de políticas para apoiar esses agricultores. Teve até um colega nosso, da Unesp de Botucatu, que foi assumir a questão do crédito rural para os assentamentos, junto à Secretaria de Agricultura. Neste momento (1983), a Secretaria criou um órgão para desenvolver políticas públicas para os assentamentos, chamado Instituto de Assuntos Fundiários. Dentro do Instituto de Assuntos Fundiários, se estabeleceu um núcleo para trabalhar a questão do crédito rural para os assentados. A partir do trabalho desse grupo é que surgiram as linhas de crédito específicas para assentados no estado de São Paulo. Nos outros estados, existiam algumas políticas, inclusive financiadas com recursos internacionais, como o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor, o PAPP. No estado de São Paulo não tinha PAPP, mas o governo do estado assumiu esse compromisso, principalmente para os assentamentos. Na sequência houve uma discussão de políticas para a agricultura familiar, mas era muito pouco, era muito pouca coisa. Os bancos não davam recursos para esses agricultores.

    É bom a gente pontuar bem, essas políticas do estado de São Paulo foram direcionadas especificamente para agricultura familiar, principalmente para os assentamentos. Foram criadas exatamente por conta dos assentamentos que se expandiram depois. Essas políticas vieram antes das políticas federais, não existiam políticas federais, tinha o crédito rural, mas o crédito rural geral para todo mundo e tinha lá uma definição dos menores, do pequeno, médio e grande. Tinha isso, havia a estratificação e tal, mas não era algo que vinha impulsionar. Eu diria que as políticas de crédito do estado de São Paulo, que foram elaboradas e gestadas na Secretaria da Agricultura, lá no Instituto de Assuntos Fundiários, impulsionaram muito os assentamentos no início, muito, muito, muito mesmo. A ponto de você, naquela época, ir lá em Pirituba (um dos primeiros assentamentos rurais do estado de São Paulo, localizado nos municípios de Itapeva e Itaberá), por exemplo, Pirituba foi um exemplo disso. Em Pirituba se montou um barracão de secagem de grãos, que haviam somente três iguais no estado de São Paulo, e financiado pelo governo do estado, não foi pelo governo federal, entendeu? Tudo bem que depois deu problema. Lá no Pontal do Paranapanema também foi financiado um monte de coisas para a cooperativa pelo governo estadual. Foi verba estadual num primeiro momento, aí depois começaram a vir as verbas federais para as áreas federais. Mas havia os assentamentos estaduais, desde aqueles lá da época do governador Carvalho Pinto, da década de 1960, como o Capivari (localizado no município de Valinhos-SP). Assentamento federal chega com a Fazenda Primavera (criado em 1980 no município de Andradina-SP), mas na década de 1970 não chegavam políticas para eles, somente o crédito rural convencional.

    Até que em 1995 foi criado o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), mas o Pronaf, no início, não chegava aos agricultores. Eu participei de uma pesquisa grande apoiada pelo governo federal, e eu fiquei responsável por analisar São Paulo. A gente ia nos bancos, ia nos agricultores, e nada. Identificamos que o Pronaf não chegava, o Pronaf ia para as associações, para as cooperativas, ia para esse pessoal, mas não chegava nas mãos do agricultor familiar.

    Antes do Pronaf houve o Procera (criado em 1985), que veio na onda dos assentamentos federais. O Procera foi importante porque o estado de São Paulo havia mudado de governo e as políticas estaduais para os assentados estavam desaparecendo. Mas o Procera depois endividou os agricultores. O pessoal ficou devendo muito; tiveram diversos problemas, eu recomendo a leitura da tese do (Wirley Jerson Jorge) para saber disso.

    Mas dando prosseguimento, em relação às políticas públicas para a agricultura familiar, uma grande guinada veio a partir do governo Lula. Aí sim é que passamos a ter políticas públicas para a agricultura familiar, sem dúvida alguma. Ele pega o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e determina a obrigatoriedade de gastar ao menos 30% do repasse na aquisição de alimentos da agricultura familiar. Cria o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), que foi uma grande jogada, parte de uma grande estratégia do governo. Melhora o Pronaf, que havia sido criado no governo Fernando Henrique Cardoso, melhora muito, e aí o Pronaf passa a ser, mesmo, uma linha de crédito para a agricultura familiar. Em termos de pesquisas, passa a haver uma concentração no tema das políticas públicas, os pesquisadores do rural, que pesquisavam agricultura familiar em assentamentos, foram todos pesquisar políticas públicas.

    A partir do governo Lula e das políticas públicas federais para a agricultura familiar e para os assentamentos, a coisa se intensificou de uma forma incrível. Eu me lembro bem dos agricultores do Assentamento Ipanema, em Iperó-SP, eles deram um salto, um salto incrível. Antes, eles plantavam alguma coisinha, poucas hortaliças etc., e passaram a fazer apicultura, passaram a produzir morango, morango orgânico que vendiam por toda a região. O Assentamento Sumaré (Sumaré-SP) também, o que os assentados falavam do PNAE e do PAA era uma coisa impressionante, eles tinham pego o Pronaf um pouco antes, mas para eles o mais importante era o PAA e o PNAE. Foi uma intensificação, os diferentes grupos de pesquisadores do estado apontam isso, o pessoal do Sudoeste Paulista, o pessoal de Ilha Solteira, mesmo Jaboticabal, a gente também fez diversos trabalhos que mostram esse impacto. Foi realmente um, vamos dizer assim, um prêmio que veio para essa agricultura, não sei se eu posso chamar de prêmio, mas foi algo extremamente importante para esses assentados, principalmente para os assentados. Lá no Assentamento de Tremembé-SP, por exemplo, os assentados disseram que eles estavam desistindo de ficar no assentamento e quando começaram a vir essas políticas deu um novo embalo, um novo impacto.

    A gente sabe que desde 2016 as políticas vêm diminuindo, diminuindo; e agora o pessoal reclama muito. Não tem quase PAA, foi reduzido, o PNAE ainda existe, mas hoje os prefeitos não seguem muito mais. E agora, o que que acontece? Porque veja bem, em todo esse tempo de assentamento eles aprenderam a produzir, eles produzem bem e produzem tecnicamente, tudo muito bem planejado. Muitos já entram com produção orgânica, com agroecologia e a produção está aí, tem que comercializar, agora comercializar no esquema que se fazia antes? A comercialização sempre foi um gargalo, lembro-me do governo do Franco Montoro (governador do estado de São Paulo entre 1983-1987). Logo no começo, a gente falava, tem que comercializar! O governo Montoro dava para as prefeituras caminhões, para ir buscar a produção dos assentados e levar para as feiras, foram criadas as chamadas feiras dos produtores. Eu mesmo em Botucatu, no início, ajudei a criar uma feira do produtor para pegar produtos da agricultura familiar, isso depois foi usado para pegar produtos dos assentamentos.

    Então reconheço a importância dessas políticas, foi uma coisa muito bem estruturada e muito bem bolada. Tudo bem, têm outras políticas, a política, por exemplo, de acesso à terra para os jovens, a política de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural), o próprio Pronaf jovem, Pronaf agroecologia, Pronaf SAF, a diversificação que se deu no Pronaf foi fantástica. Mas as de comercialização, eu acho que foram as que deram o maior impacto, porque dá retorno, dá retorno direto.

    Questão: Como você vê a agricultura familiar no estado de São Paulo hoje?

    SMPPB: Eu vejo a agricultura familiar hoje com muita preocupação, com esses governos que temos. Mas claro, eu acredito, e todo esse tempo de estudo me faz afirmar que eles resistirão. Os agricultores familiares resistirão a despeito do que for, a despeito da falta de crédito, de crédito para produção, de crédito para comercialização. Mas principalmente os assentados, os assentados estão acostumados a tirar leite de pedra e tem uma coisa muito importante, o que é que muitos deles estão fazendo hoje? Estão saindo para a questão ambiental, da agroecologia, dos SAFs (Sistemas Agroflorestais), da produção orgânica, e isso está abrindo um campo muito importante para eles, está abrindo um campo extremamente importante.

    Então eu acho que apesar de a gente olhar um futuro sombrio, por outro lado a gente tem um renascimento através da agroecologia, através de toda essa questão ambiental, da agricultura orgânica, da agricultura biodinâmica, dos sistemas agroflorestais, isso está renascendo em muitos desses agricultores familiares, muitos mesmo, em todas as regiões do Brasil, e o estado de São Paulo não está fora disso. É isso o que eu vejo, acho que não dá para dizer que mesmo no estado de São Paulo, com um intenso desenvolvimento do capitalismo no campo, a agricultura familiar vai perecer. Não vai! Ela pode estar sendo menos assistida, porque o serviço de assistência técnica e extensão rural também está precário, mas hoje, pela internet, eles conseguem muitas coisas. Não estou defendendo aqui uma ATER virtual, digital, de forma nenhuma.

    Como é que nós vamos teorizar e analisar esses novos núcleos de agricultores familiares que estão com a questão ambiental presente? Nós temos que olhar isso, aquelas antigas teorias de estratégias de reprodução da propriedade, reprodução social, de organização, tudo isso está aí, tudo isso ainda vale. Mas tem alguma coisa nova, e é uma coisa que na França já tinham detectado. A agricultura fica familiar, mas não ficam todos os membros. Esse pessoal que migra para a cidade tem um elo com essa agricultura, porque o que que vai acontecer com esse pessoal da cidade? Eles vão achar espaço para vender esses produtos, que são alimentos saudáveis, que são produtos orgânicos, que são produtos de uma agricultura sem agressão ao meio ambiente.

    Eu acho que a discussão teórica do rural-urbano já foi bastante aprofundada, mas não passando por essa questão dos alimentos saudáveis, eu acredito que é por aí que tem que caminhar.

    Questão: Na sua opinião, qual a importância dos programas de políticas públicas, estaduais e federais, para a agricultura familiar paulista atualmente?

    SMPPB: Estamos vivendo um caos em termos de políticas públicas. Faz muitos anos que nós estamos aí com esse neoliberalismo chegando, só que agora ele se abateu fortemente sobre todos os setores da nossa sociedade. Eu tenho que fazer economia, então eu enxugo, eu corto assistência técnica, eu corto o remédio de graça, eu corto isso, corto tudo, porque o Estado não pode mais assumir. A ideia do neoliberalismo é o Estado mínimo, isso que já vem acontecendo há décadas, só que agora eu acho que essa questão se endurece mais, chega com muita força. Então ficamos pensando, o que é que vai ser desses agricultores familiares, desses assentados, se não tem mais PAA, não tem mais PRONAF? Quer dizer, o PRONAF tem, mas tem daquele jeito. Como é que vai ser isso? Eu tenho visto, através de algumas pesquisas de alunos, os agricultores se recriando, montando outras estratégias, outras formas de se autogerir, não sozinhos, mas em conjunto, em associações, em cooperativas, eu acredito que isso vai continuar.

    Eu fiquei muito assustada há uns três ou quatro anos, quando o pessoal da CATI contava o que estava acontecendo pelo estado de São Paulo afora, por causa de duas coisas: uma que a gente já estava acostumada, que é a história do arrendamento para a cana-de-açúcar, que não deu muito certo. Os estudos da Vera [Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante] mostram que o pessoal vai e arrenda, mas, de repente, acaba não dando porque na terceira soca a coisa degringola e eles ficam sem renda e voltam atrás. E a outra coisa, que é muito drástica, é o reflorestamento. As empresas de reflorestamento chegam e vira tudo um eucaliptal e tem muitos agricultores, eu ouvi isso do pessoal da CATI, que nem sabem mais onde está o terreno deles, quer dizer, a propriedade deles, porque está tudo destruído. Então isso é bem precário, como é que esses agricultores vão voltar para a terra? Porque os assentados sabem onde é que está o lote deles, mas na agricultura familiar de um modo geral, e isso aconteceu muito no noroeste do estado, o pessoal não sabe nem onde está a terra mais, como é que eles vão voltar?

    Tem uma coisa também interessante que temos que pontuar no estado de São Paulo, que é o envelhecimento da população rural. Muitos jovens saem para a cidade, o que acontece de forma menos acentuada nos assentamentos, porque nos assentamentos o pessoal tem uma consciência de ficar no rural, uma consciência do papel deles, do trabalho deles no rural, então não saem muito. Saem também, aquela pesquisa de jovens que a Julieta (Julieta Teresa Ayer de Oliveira) coordenou mostrou que eles saem, mas é muito menos do que saem na agricultura familiar de um modo geral. Esse pessoal mais velho prefere arrendar para a cana, já que eles não querem vender e os jovens não querem continuar, eles arrendam para a usina plantar cana.

    Aí entra novamente a questão ambiental, porque pela questão ambiental, com a agroecologia e a agrofloresta, muitos jovens estão voltando para o rural. Há um processo de volta para produzir produtos saudáveis, para ter alimentação saudável, para ter uma vida mais saudável. Isso está acontecendo muito, não é coisa de um ou outro não, tem muita gente voltando para o campo. Então ocorre aquilo que a gente chama de uma recampenização, e um dos fatores primordiais para esse pessoal que volta é a questão ambiental; às vezes não é nem volta, às vezes é filho de classe média ou até de classe abastada que vai para o rural. E eles não vão ficar correndo atrás da política pública para poder fazer isso ou aquilo, porque eles têm um estofo para tocar essa agricultura, não todos claro, mas uma boa parte tem; é dessa forma que eu vejo esse panorama hoje.

    Questão: Professora, e como a senhora enxerga o papel da extensão rural para o desenvolvimento da agricultura familiar paulista? Principalmente agora, com o governador tentando aprovar o PL 529?

    SMPPB: Bom, eu não quero discutir especificamente esse PL [Projeto de Lei], mas a ATER, a assistência técnica e extensão rural, que no governo Lula deu um salto muito grande com a PNATER, com a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, e que depois na Dilma já ficou meio complicado, mas de qualquer forma ela ainda existia. Eu conto sempre essa história: eu fui uma das avaliadoras dos melhores projetos, das melhores práticas de ATER em todo o Brasil, e fui para um seminário em Brasília onde os trabalhos foram apresentados durante quase uma semana (Seminário Nacional de Boas Práticas de ATER realizado em dezembro de 2015, pelo então Ministério do Desenvolvimento Agrário). Foi uma coisa impressionante, eles levaram o técnico responsável e os agricultores, um ou dois agricultores de cada projeto. Eu fiquei impressionada com o que era realmente uma ATER, uma extensão rural realmente.

    Eu avaliei os trabalhos do estado de São Paulo, tinham alguns que não eram tão bons, mas tinham alguns muito bons. Nós estávamos num momento em que fazer ATER, desenvolver essa atividade era estar juntos com os agricultores, eu ponho assim, é estar junto, com a consciência de estar junto. E esses agricultores fazendo coisas incríveis, transformando tudo o que eles tinham na propriedade, vendendo, participando de feiras, participando de tudo, muito PAA, muito PNAE, muito tudo. E nós fomos responsáveis por isso também, porque nós promovemos diversos cursos, e lá tinha muita gente que havia feito cursos junto conosco.

    Bom, e o que aconteceu com isso? Foi pro brejo, para falar bem a verdade; nós temos uma lei, nós temos a PNATER que é lei, mas o pessoal não está nem aí para essa lei. A Dilma, sinto muito, a Dilma criou a tal da ANATER (Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural), que fomos contra. Mas no começo, com o Paulo (Paulo Guilherme Cabral, primeiro presidente da ANATER), achamos que poderia acontecer alguma coisa interessante com essa ANATER. Mas agora, nem a ANATER mais existe, e o MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) fala assim: nós vamos fazer alguns programas nos lugares que precisam, vamos buscar dinheiro fora. Mas que programas? Programas de ATER digital?

    Vocês estão aí, como professores, falando que isso não funciona, e não funciona mesmo. Eu tenho conversado com diversos funcionários da CATI, e eles estão abominando, eles trabalham o dia inteiro em cima do computador, e aí quando pensam que está tudo entendido, os agricultores falam assim: ah, mas não entendi doutor; ah, não sei o que; ah, vamos deixar pra depois da pandemia. Sabe? Coisas dessa natureza, então não tem sentido isso, mas essa é a linha agora, e o nosso governador foi na mesma linha. A primeira coisa que ele fez foi tirar a CATI, acabou com a CATI, e agora ele quer acabar com as casas da agricultura. Casa da agricultura, se a prefeitura quiser a prefeitura paga, se não quiser, fecha. Quer fechar o Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – José Gomes da Silva), que é quem dá apoio diretamente para os assentamentos. Nós já fizemos muitas críticas ao Itesp, nossos estudos mostraram onde a atuação deles estava ruim. Mas não é isso que está em jogo; o que está em jogo é a instituição. Ele quer acabar com a instituição, isso significa acabar com todo o serviço, que em muitos lugares é excelente. Tudo bem que os agricultores conseguem se virar e tal, mas sem uma assistência técnica vai ser difícil, e ter apenas uma assistência técnica digital, pelo amor de Deus!

    SITIANTES, LAVRADORES, CAIPIRAS, CAMPONESES… OS AGRICULTORES FAMILIARES PAULISTAS ONTEM E HOJE

    Regina Aparecida Leite de Camargo

    Ricardo Serra Borsatto

    Vanilde Ferreira de Souza-Esquerdo

    Introdução

    Andar em busca de terra para construir sua morada e deitar suas lavouras é um traço característico do campesinato brasileiro. A intermitência do acesso aos meios de produção para garantir a sua reprodução faz, nas palavras de Wanderley, com que no campesinato brasileiro seja "possível identificar os processos de campesinização, descampesinização e recampesinização,[1] os quais, de uma certa forma, revelam os caminhos de sua instabilidade estrutural".[2] Processos esses marcados e determinados por sua luta e capacidade de resistência ou por brechas conjunturais que permitiram a organização e continuidade de formas camponesas no meio rural.[3]

    A cultura camponesa encontra-se arraigada na herança identitária dos paulistas, moldada pelas formas como o estado foi ocupado, seja com as expedições de entradas e bandeiras, ou pelo avanço da cultura cafeeira. Na nossa literatura, esse camponês já apareceu como o caipira caboclo que vive a vegetar, de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso, assim retratado por Monteiro Lobato na obra Urupês, e como sociedades marcadas por fortes relações de vizinhança e parentesco e arraigadas tradições, descritas em detalhes por autores como Antonio Candido e Carlos Rodrigues Brandão.

    Símbolo de atraso ou bravo sobrevivente de um recorrente processo de espoliação e expropriação, esse camponês-caipira paulista vai participar de movimentos sociais no campo por reforma agrária e direitos trabalhistas, como as famosas greves canavieiras da década de 1980 e as ocupações de terras por todo o estado; além de demandar programas de políticas públicas que deem sustentação ao seu modo de vida e permitam a sua sobrevivência como agricultor familiar.

    O camponês paulista encaixa-se bem no que Nazareth Wanderley denominou de um de um setor bloqueado,[4] preterido em relação a grande propriedade, que tem que buscar sempre novas áreas onde plantar; mais apegado à reprodução de sua condição de produtor independente do que a um patrimônio fundiário familiar estático.[5] O camponês paulista é paulista porque nasceu no estado de São Paulo. Mas é também paulista, porque, vindo de outras partes do país em busca de emprego e sobrevivência, aqui lutou e conquistou um lote em um assentamento da reforma agrária, ou uma propriedade de terceiro para cuidar, ou ainda alguma terra para cultivar em regime de parceria ou arrendamento ou mesmo proprietário.

    Essa categoria sociológica e política – camponês – vai, a partir de meados da década de 1990, juntar-se a outras categorias rurais, como os ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e indígenas no grande guarda-chuva conceitual e instrumental denominado agricultura familiar. Em que pesem os argumentos acerca da agricultura familiar ser um constructo do Estado para a implementação de políticas públicas, e não uma categoria social,[6] é o leque de relações − políticas, econômicas, sociais e culturais − com o Estado, demais atores do campo paulista e sociedade em geral, que modelam as múltiplas facetas da atual agricultura familiar paulista.

    A agricultura familiar paulista, enquanto conceito genérico e instrumento operacional do Estado, abriga, com maior ou menor expressão, os diferentes segmentos que compõem o seu público. O estado de São Paulo tem agricultores familiares tradicionais, comunidades indígenas e quilombolas, muitos assentados da reforma agrária, ribeirinhos e extrativistas. Espalhados por suas regiões, representam as características específicas de determinados microbiomas, mas, sobretudo, a forma como se desenvolveu a agropecuária nessa unidade da federação e as conquistas dos movimentos sociais no campo que lograram, em muitos municípios, transformar terra grilada em terra de trabalho.

    Mas quem são e onde estão os agricultores familiares do estado de São Paulo? É esta indagação que este texto procura responder. Além desta pequena introdução, o trabalho está dividido não exatamente em partes, mas, digamos, vieses complementares. Inicialmente são recuperadas algumas das contribuições da sociologia rural acerca do camponês/agricultor familiar paulista – os parceiros de Antonio Candido, os produtores de algodão de Nazareth Wanderley, os sitiantes de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Aqui o agricultor familiar paulista emerge como uma camada intermediária, à margem das principais atividades econômicas do estado em formação ou, mais tarde, como sujeito inserido no mercado, parte do acelerado processo de modernização da agricultura paulista. Ele é ao mesmo tempo protagonista de uma relação de demandas e, por vezes, conquistas das benesses do Estado e herdeiro de tradições camponesas, sejam paulistas ou trazidas de outras localidades.

    Um segundo viés visita dois dos principais grupos que formam a agricultura familiar paulista: os assentados da reforma agrária e as comunidades quilombolas. Já o terceiro viés traz alguns dos resultados do Censo Agropecuário de 2017 para a agricultura familiar paulista – a porcentagem de estabelecimentos familiares nos municípios, seus extratos de área e sua contribuição na produção dos alimentos que constituem a cesta básica. Por fim perguntamos: afinal, qual é a importância da agricultura familiar paulista?

    Uma camada intermediária

    A ideia de que o espaço agrário brasileiro foi sempre majoritariamente ocupado pela agricultura exportável é relativizada por Queiroz: Enquanto as grandes monoculturas de exportação não cobriam senão quatro milhões de hectares em 1950, as pequenas culturas de subsistência se estendiam pelo menos por quatorze milhões de hectares no país.[7] No Censo Agropecuário de 2017, os estabelecimentos familiares representavam 77% dos estabelecimentos recenseados, mas ocupavam apenas 23 % da área agrícola; respondiam por 67% do pessoal ocupado no campo e por próximo de 40% do valor bruto da produção agropecuária nas regiões Sul, Norte e Nordeste, caindo esse valor para em torno de 20% na região Sudeste e perto de 10% no Centro-Oeste.[8] Mesmo com o avanço das novas monoculturas de exportação, como a soja e o milho, permanecem a maioria numérica e importância econômica da agricultura familiar.

    Em frase introdutória do livro A agricultura familiar: comparação internacional, Hugues Lamarche, assim resume a importância e a presença da agricultura familiar: […] em todos os países onde um mercado organiza as trocas, a produção agrícola é sempre, em maior ou menor grau, assegurada por explorações familiares, ou seja, por explorações nas quais a família participa da produção.[9] Temos aqui dois dos elementos constitutivos dessa modalidade de agricultores: o trabalho da família e a participação no mercado. Pela restrição de opções, o mercado do qual participa pode ser imperfeito, como alinhavou Abramovay,[10] o trabalho da família pode demandar complementação com mão de obra externa ou ser repartido com outras fontes de trabalho e renda, mas nunca deixa de estar presente na lógica da organização da propriedade familiar.

    Segundo Maria Isaura Pereira de Queiróz,[11] os primeiros estudiosos do meio rural brasileiro incorriam em dois erros recorrentes: a tese do isolamento de sua população, como retratada na obra Os sertões de Euclides da Cunha, e a presença significativa de apenas duas classes sociais − a que habitava a Casa Grande e a que era abrigada na Senzala. A concentração do olhar na dicotomia representada por esses dois extremos sociais impedia muitos estudiosos de reconhecerem, e se interessarem, por uma camada intermediária, formada por sitiantes independentes.

    Essa população livre, mas de autonomia relativa uma vez que desenvolvia diferentes simbioses com os fazendeiros do entorno, produzia para o autoconsumo e era, até certo ponto, norteada pela lógica da satisfação das necessidades do grupo doméstico, nos moldes do camponês chayanoviano. Mas não deixava de dedicar tempo e espaço para produções de mercado, como o fumo plantado por colonos italianos nas entrelinhas dos cafezais. Essa população, como coloca Maria Isaura Não era nem senhor e nem escravo, não era grande fazendeiro, mas também não era trabalhador sem terra.[12] Ou seja, uma população que, como nos definiu certa vez um agricultor, é patrão e empregado de si mesmo.[13]

    Para Linhares e Silva, o estudo da produção de subsistência não adquire maior importância na história da agricultura colonial brasileira por ser ela uma atividade de menor vulto, realizada por lavradores com pouca ou nenhuma terra, ainda que importante para o abastecimento das povoações urbanas.

    Como uma atividade menor, do ponto de vista do sistema de poder dominante, apesar de sua extensão e do número de pessoas que ela ocupa, a agricultura de subsistência torna-se, assim, a retaguarda da atividade maior que é voltada para o comércio metropolitano. Coube-lhe, entretanto, embora encarada como atividade menor, o papel de ocupar a terra, desbravando-a e povoando-a, de modo a cumprir as tarefas que lhe foram sendo, gradativamente, exigidas.[14]

    A camada intermediária representada pelos sitiantes autônomos era policultora, produzia para o autoconsumo e abastecia cidades e fazendas monocultoras com um amplo leque de gêneros alimentícios, fruto de sua produção vegetal e animal. Mas sem ter como fazer uso de técnicas mais sofisticadas de reposição da fertilidade do solo, o camponês/caipira/lavrador paulista, assim como em outras partes do país, fazia da mobilidade sua principal estratégia de reprodução. Em sua obra Sítios e sitiantes no estado de São Paulo de 1951, Nice Lecocq Muller descreve a facilidade com que o sitiante mudava a casa de pau a pique, os poucos pertences, e os animais e plantações para onde a terra estivesse menos cansada. Para Antonio Candido, o povoamento paulista foi marcado pelo caráter nômade e predatório das atividades das bandeiras, e pela fusão da herança portuguesa com as práticas culturais indígenas. Assim, a vida social do caipira assimilou e conservou os elementos condicionados pelas suas origens nômades…. por isso, na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura.[15]

    Ainda que vivendo uma vida de penúrias e espalhados pelos interstícios das grandes fazendas, ou desbravando, eles próprios, novas fronteiras agrícolas, forçados para a interiorização pela expansão do latifúndio monocultor; esses sitiantes estavam apenas parcialmente isolados. Dois elementos contradizem a tese do isolamento da população rural do Brasil colonial, estendendo-se até as primeiras décadas do século XX: o compartilhamento de uma vida social marcada por relações de parentesco e vizinhança, centrada nos bairros rurais; e as relações sociais e econômicas, mantidas com as cidades.

    Antonio Candido, em seu estudo etnográfico da população rural do município de Bofete, no interior do estado de São Paulo, destaca a importância do bairro como referência identitária e centro de compartilhamento da vida social: O bairro…é o agrupamento básico, a unidade por excelência da sociabilidade caipira.[16]

    Essa população errante, policultora, parcialmente independente, fruto de miscigenação racial e fundamental para o abastecimento das cidades com gêneros alimentícios diversos está na gênese de um campesinato que, passando por frequentes momentos de descampenização e recampenização, ainda sobrevive − mesmo que sob a égide genérica de agricultor familiar. As diferenças, similaridades, gênese identitária e usos dos termos camponês e agricultor familiar já foram discutidos por vários autores,[17] e ainda guardam material para amplas controvérsias e disputas. Em 2008, Schneider e Niederle afirmavam:

    Atualmente, o que há de novo no cenário, desde que a agricultura familiar reafirmou sua legitimidade social, política e acadêmica, é o aparecimento de clivagens e argumentos que defendem a necessidade e a pertinência de se caracterizar os agricultores familiares como camponeses, o que às vezes resulta na criação de termos como agricultura familiar camponesa. Mas em oposição a essa perspectiva, está igualmente na ordem do dia a discussão sobre as relações da agricultura familiar com o agronegócio, o que não raro resulta no uso de terminologias, tais como agronegócio familiar, contrapondo-se ao agronegócio empresarial ou patronal.[18]

    Embrenhar-se por essa discussão não é objetivo deste trabalho, mas, por outro lado, não é possível falar sobre o agricultor familiar, sobretudo sobre a origem desse agricultor, sem relacioná-lo com a sua herança camponesa.

    A teoria sobre essa categoria, que emerge dos clássicos estudos de Chayanov sobre o campesinato russo, pode ser sintetizada nos seguintes termos: a família camponesa agrega ao mesmo tempo a posse dos meios de produção e a força de trabalho, sendo a ausência da extração da mais valia que a diferencia de uma empresa capitalista; a economia camponesa é voltada para o atendimento das necessidades de consumo da família e uma vez atingido o equilíbrio entre produção e consumo nas diferentes etapas do ciclo reprodutivo da família, diminui a disposição do camponês para enfrentar a penosidade do trabalho agrícola; o rendimento desse trabalho forma um todo indivisível, ou seja, não se presta a uma análise econômica que separe lucro, salário e renda da terra, e tem a dupla finalidade de garantir o consumo imediato da família e permitir a manutenção ou mesmo ampliação do patrimônio familiar; apesar da centralidade da família, não se trata de uma economia fechada – o campesinato sempre gerou excedentes para o mercado.[19]

    No caso do caipira paulista, o desapego ao trabalho é explicado na obra de Candido pelo acomodamento a padrões mínimos vitais e sociais, consequência da precariedade de seu direito de ocupação da terra. Para o autor, o desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de trabalhar, condicionada pela falta de estímulos prementes, a técnica sumária e, em muitos casos, a espoliação eventual da terra obtida por posse e ou concessão.[20] O autor argumenta ainda que o equilíbrio ecológico e social baseado no atendimento de necessidades mínimas, ao qual o caipira se apega como sua razão de ser, vai ser deturpado em traço cultural, e estereotipado em figuras como o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.

    Na última parte do seu livro Urupês, publicado em 1918, Lobato, usando a linguagem a um tempo criativa e afiada, com que costumava criticar o que não concordava ou defender suas ideias, põe-se a desancar o indianismo de José de Alencar, que havia florescido no século anterior e o caboclismo então em voga:

    O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de caboclismo. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido a testa; a ocara virou rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda trochada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta no peito.[21]

    E completa mais adiante a imagem que faz desse caboclo caipira:

    Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé.[22]

    Sem compreender a lógica dos mínimos vitais descrita décadas depois por Candido,[23] Lobato via no caboclo, que batizou de Jeca Tatu, alguém voltado unicamente para a satisfação das parcas necessidades e incapaz de mover-se por qualquer causa que fosse. A influência da obra de Lobato foi tão grande, que, segundo os editores da edição de 1972 de Urupês, mais de setenta expressões foram incorporadas ao dicionário da língua portuguesa em consequência do livro; entre elas a palavra jeca, transformada em substantivo e adjetivo e utilizada até os dias atuais. A crença na falta de importância política, econômica e social do caipira pode estar na raiz de seu reconhecimento tardio por estudiosos do meio rural, como salientou Maria Isaura.

    Ao longo do século XX, os estudos dessa camada intermediária, aqui e alhures, irão demonstrar a importância do contexto social e econômico local para a sua formação. Segundo Lamarche, ainda que guardando traços locais particulares, é possível se falar em uma herança camponesa, que permanece no atual produtor familiar como referência. Para o autor, "a exploração familiar é ao mesmo tempo uma memória, uma situação, uma ambição e um desafio".[24] O autor argumenta que o grau de integração com o mercado vai definir os diferentes níveis que separam os dois extremos desse modelo teórico, e que quanto maior for a proximidade com um ou outro extremo, menor será a possibilidade de a exploração assegurar a sua reprodução.

    O grau e forma de inserção no mercado também estão na base da noção de mercantilização da produção familiar. Conforme a unidade de produção familiar se torna mais inserida e dependente do intercâmbio mercantil, maior é também a divisão social do trabalho que ocorre em seu interior, ou seja, também as relações sociais são mercantilizadas. No trabalho de Ploeg,[25] a noção de mercantilização é utilizada para distinguir uma forma camponesa de uma forma empresarial de agricultura familiar. Ainda que o autor não fale em herança camponesa, nos mesmos moldes de Lamarche, é uma reaproximação dessa forma camponesa que permite o alargamento do que Ploeg chama de espaço de manobra para driblar a vulnerabilidade econômica e a apropriação de valor impostas pelo mercado capitalista de commodities agrícolas.

    Lamarche refere-se ao modelo original como um ponto de referência sobre o qual o produtor familiar constrói o modelo ideal, ou a imagem de onde quer chegar com a exploração daquele espaço. Mas o autor reconhece que um mesmo modelo original pode gerar distintas formas de organizar e explorar a propriedade:

    Seria um erro concluir que todos os exploradores que se referem a um mesmo modelo anterior são idênticos, possuindo um mesmo sistema de valores e as mesmas ambições para o futuro. Com efeito, se alguma vez houve transmissão de um patrimônio sociocultural comum, o estado de conservação deste patrimônio pode variar consideravelmente de uma sociedade para outra e mesmo de um explorador para outro dentro da mesma sociedade.[26]

    No caso do agricultor familiar paulista, podemos considerar um conjunto de referências distintas na formação desse modelo original: a herança portuguesa, mas mais especificamente o estilo de vida e as ambições dos bandeirantes paulistas, a cultura dos povos indígenas e africanos e, mais recentemente, as tradições camponesas europeias e asiáticas dos imigrantes. Podemos também argumentar, emprestando categorias de análise de autores como Bebbington,[27] que na base tanto do modelo original como do modelo ideal está o conjunto de ativos (assets) de que dispõe o agricultor − traduzidos em cinco tipos de capital: cultural, social, humano, natural e produtivo. Esse conjunto vai determinar os fatores decisivos para a manutenção e reprodução da unidade produtiva familiar, como o acesso aos meios de produção, a começar pelo próprio acesso à terra. A agricultura familiar paulista vai ser moldada, ao longo de sua história, pelo conjunto de referências originais, sua maior ou menor facilidade em mobilizar o leque de capitais que alicerçam seus meios de sobrevivência e os diferentes arranjos produtivos das regiões onde está inserida. Fundamental para a sua formação são também as lutas e conquistas no acesso à terra, que será tratada no próximo segmento deste trabalho.

    Os momentos de abertura ou restrições das brechas de acesso à terra para essa categoria intermediária, por muito tempo invisível, configuram os processos de campenização e descampenização por que passou a agricultura de base familiar no estado mais industrializado do país; e os múltiplos referenciais mencionados acima, vão responder pela diversidade de atores que se formam no interior desses diferentes momentos. Por exemplo, a agricultura familiar que se desenvolve em torno da cultura do algodão na região de Leme na década de 1980, que pode ser considerada de forma empresarial em quase nada se parece com aquela de forma camponesa estudada por Antonio Candido nos anos 1950. No caso dos produtores de algodão, dois fatores são determinantes na moldagem de sua relação com a terra, com o mercado e com outros trabalhadores do campo: a forma como ocorria o acesso à terra – por compra e arrendamento, e a sua inserção no mercado de

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