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Conquistas e reveses: Múltiplos passos de um percurso
Conquistas e reveses: Múltiplos passos de um percurso
Conquistas e reveses: Múltiplos passos de um percurso
E-book424 páginas6 horas

Conquistas e reveses: Múltiplos passos de um percurso

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Sobre este e-book

Este é um livro que se encaixa em múltiplos gêneros. Não é simplesmente uma autobiografia, um recorte histórico, um livro de memórias ou ainda uma coletânea de registros científicos; é, sobretudo, um amálgama literário de tudo isso. Nas 358 páginas em que o Professor Doutor Raoul Henry compartilha suas Conquistas e Revezes – desde a chegada ao Brasil, com as primeiras dificuldades linguísticas e culturais, até a construção de sua sólida carreira na limnologia – nos aproximamos do jovem pesquisador ao longo de sua ascensão na universidade, observando mais de perto, através de seu ponto de vista, a realidade dessa instituição. Lemos, ainda, a narrativa honesta e incômoda de uma verdade bem conhecida: a dificuldade em se fazer ciência no Brasil. Acima de tudo, como o próprio Professor Raoul diz, é um texto realista, o que implica fatos narrados tal e qual eles aconteceram, sem floreios ou adornos.
Partindo desse pressuposto, a leitura desta obra não precisa ser linear: apesar de os capítulos comporem as tramas de uma vida toda, eles são independentes entre si. Logo, aquele que quiser se aprofundar nos projetos desenvolvidos pelo Professor entre a universidade e a educação de base pode iniciar a leitura por esse capítulo. Por outro lado, quem anseia por conhecer um pouco mais sobre o Professor-Turista, tem como ponto de partida o capítulo "Viagens de lazer: a descoberta do mundo". E assim o leitor vai montando o quebra-cabeça de Conquistas e Reveses.
Camila Aparecida da Cruz
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento3 de abr. de 2023
ISBN9786525449098
Conquistas e reveses: Múltiplos passos de um percurso

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    Conquistas e reveses - Raoul Henry

    cover.jpg

    Conteúdo © Raoul Henry

    Edição © Viseu

    Todos os direitos reservados.

    Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).

    Editor: Thiago Domingues Regina

    Projeto gráfico: BookPro

    Coordenação Editorial: Giselle Rocha

    Consultoria Editorial: Marcelo Mezzari

    Copidesque: Giulia Garcia

    Revisão: Luana Cimatti Zago Silvério

    Capa: Pamela Luz

    Diagramação: Ytana Mayanne

    e-ISBN 978-65-254-4909-8

    Todos os direitos reservados por

    Editora Viseu Ltda.

    www.editoraviseu.com

    Para

    Maria Aparecida Coelho de Arruda Henry.

    Companheira por mais de 45 anos nesta jornada.

    Como é repleta de ilusões a nossa jornada sobre a Terra. É como se caminhássemos por uma trilha cortada no meio de uma floresta sombria. Porque permanecemos na trilha e conseguimos avançar, temos a impressão de que controlamos nosso destino.

    AUGUSTO, Imperador Romano

    Apresentação

    Por que uma autobiografia? Receio de ser esquecido? Registro de ações, dificuldades, sucessos e derrotas na lida diária, de múltiplos retratos de uma época que não voltará mais? Balanço de uma vida em que se analisa o desempenho de uma trajetória? Na realidade, aqui é uma conjunção de todas essas afirmativas.

    Nesta obra, procurei relatar os vários degraus de um percurso longo, que se iniciou com meu nascimento em país europeu – a Bélgica, a infância passada na África Equatorial, a vinda e a adaptação inicial a uma nova pátria – o Brasil, onde tudo era diferente, língua, costumes, cultura e modo de agir da população. Após passar por essa barreira, e já completamente inserido no novo meio ambiente, segui essa caminhada enfrentando os percalços da vida e prosseguindo até atingir o ápice da carreira. Todas as conquistas e as derrotas sofridas resultaram de algumas decisões conscientes e maduras e de muitas outras não refletidas neste roldão que é a nossa vida agitada.

    Dizem que a memória é seletiva, podendo o autor, o causador, carregar nas tintas, enfatizando de forma positiva as peripécias na jornada de trabalhos a que é submetido ou, de modo negativo, os dissabores experimentados ao longo de toda a sua rota. Outros mencionam que toda autobiografia é em grande parte uma peça de ficção. Neste compêndio, afirmo taxativamente que todas as ocorrências descritas nos vários capítulos foram vividas exatamente como retratadas. É bem possível que, para os protagonistas envolvidos nos embates e nos episódios positivos, o impacto não tenha sido o mesmo. Relato aqui o meu ponto de vista.

    Para apoio às descrições efetuadas, eu me escorei na documentação arquivada ao longo de mais quarenta anos, cópias de cartas antes do advento da internet, cadernetas, agendas, relatórios científicos, prestações de contas, canhotos de talões de cheque, folhetos de divulgação, álbuns de fotografias. A despeito de não ser um acumulador compulsivo, tenho grande resistência em me desfazer de toda a documentação que me cai nas mãos ou que é gerada diariamente. Mas, apesar da aparente facilidade para empreender esta obra com todas as provas arquivadas nas gavetas e armários, afirmo que eu não tinha planejado a priori redigir uma autobiografia.

    Este trabalho é uma resposta à sugestão, pedido (talvez insistência!) da professora Camila Aparecida da Cruz, docente no ensino fundamental do município de Angatuba (SP), para que eu compusesse um texto sobre as minhas experiências da vida. Talvez motivada pela leitura do livro Minha passagem por três continentes, de autoria de minha mãe (Paula Maria Roes Henry), a professora Camila quisesse conhecer a sequência desta história envolvendo uma geração e seus descendentes.

    O título deste livro (Conquistas e Reveses) foi motivo de muita reflexão. Após leituras de alguns artigos que revelavam as trajetórias de biólogos recém-aposentados em vários números do boletim mensal do Conselho Regional de Biologia, que recebia antes do advento da internet, eu ficava admirado pela carreira vitoriosa dos colegas que me precederam. Nos textos lidos, eu constatava que reveses, percalços, derrotas e fracassos não eram mencionados. Essa omissão me deixava intrigado. Por que, no meu caso, passei por muitos dissabores e embates?

    Este livro foi organizado de forma que o leitor possa iniciar a leitura não necessariamente na sequência cronológica dos capítulos como assinalado no sumário. Tentei redigir os capítulos como se fossem independentes um do outro, com temas distintos, sem sobreposição, na medida do possível. Assim, se alguém desejar começar a consulta por um capítulo que mais lhe apraz, poderá fazer sem perda de informação precedente.

    Outra advertência pouco usual: as pessoas mencionadas no texto são referidas pelas iniciais do nome completo. Na primeira vez que cito alguém, apresento o nome completo e as iniciais entre parênteses. No final do livro, a relação das pessoas com seu nome e iniciais é incluída para consulta caso queiram. Justifico a adoção dessa sistemática por achar que mais importa o fato descrito do que o protagonista.

    Finalmente, quero apresentar os meus agradecimentos a várias pessoas pela leitura crítica e as sugestões para melhoria do texto. Em primeiro lugar à Camila Aparecida da Cruz, por sugerir a redação desta obra, a revisão de vários capítulos e a elaboração da sinopse presente na contra capa. À professora Luciana Gomes Barbosa, meus agradecimentos pela leitura e comentários a respeito do capítulo 12. Também sou grato à Carla Ferragut e a Valter Monteiro Azevedo-Santos pelo tempo necessário na leitura e na emissão de opiniões sobre a obra. Estendo minha gratidão à Editora Viseu pelo atendimento.

    Botucatu, julho de 2022.

    Capítulo 1

    A minha infância na África Equatorial

    A caminhada foi longa. Cheia de obstáculos, dificuldades, momentos de alegria e de tristeza, de desavenças e de felicidades. Tudo começou com meu nascimento em 29 de setembro de 1948 em Namur, capital da província de mesmo nome, na Bélgica. Meus pais, Léon Robert Ghislain Henry (nascido em Saint-Servais, Bélgica, em 15 de setembro de 1922, falecido em Botucatu, SP, em 24 de dezembro de 2011) e Paula Maria Roes Henry (nascida em Antuérpia em 4 de maio de 1926, falecida em Botucatu em 8 de agosto de 2006) casaram-se em 11 de setembro de 1947, e eu nasci um ano depois.

    Meu pai era engenheiro agrônomo, formado pelo Institut Agronomique de l’État à Gembloux (Instituto Agronômico do Estado em Gembloux, Bélgica), diplomado em 22 de janeiro de 1947. Iniciou a carreira como conselheiro técnico de uma pequena empresa belga, que estava começando a produzir ração para aves, bovinos e suínos. Essa fábrica, entretanto, não teve sucesso, vindo a ser decretada a sua falência. Em consequência, meu pai foi demitido, após dois anos de formatura. Dessa maneira, a procura por um novo emprego iniciou-se.

    Preciso explicar a dificuldade para os agrônomos em encontrar uma colocação na Bélgica. Meu país de origem tem área territorial reduzida, cerca de 30.530 km², um oitavo da superfície do Estado de São Paulo e 278 vezes menor que o tamanho do Brasil. Em função de sua superfície diminuta, as perspectivas de emprego para os engenheiros agrônomos são restritas. Logo após sua formatura, meu pai tinha cogitado ir para o Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), antiga colônia da Bélgica, na África Equatorial. Tinha recebido uma oferta de emprego na mesma companhia em que atuava um amigo, colega de turma de Gembloux. Não foi, contudo, de imediato para a África, porque minha mãe recusou-se a ir para o Congo, visto que minha avó materna não se conformava em ter dois de seus três filhos residindo na África (nesse período, meu tio materno estava em fase final de formação em administração colonial, preparando-se para assumir um cargo no Congo).

    Com a negativa de minha mãe e após ser demitido da fábrica de ração, meu pai trabalhou por dois meses numa usina de extração de açúcar de beterraba. Continuou procurando emprego durante os oito meses seguintes, até que foi finalmente aceito numa companhia algodoeira denominada Cotonco que atuava no Congo. Foi assim que ele viajou para a África em janeiro de 1951. Todos os belgas que trabalhavam no Congo (em empresas privadas, funcionários públicos e militares) recebiam salários mais elevados do que aqueles que permaneciam na Bélgica, o que representava uma compensação pela vida em região de clima tropical, sem muito conforto e vivendo muitas vezes na selva. O regime de trabalho era diferente do que estamos acostumados a vivenciar, era para todos os colonos belgas que atuavam na África: um período de três anos de serviços contínuos, seguido por seis meses de férias na Bélgica. Mas por que a África Central era colônia da Bélgica?

    A África Central foi parte do continente, originalmente ocupado por bantos (conjunto de povos negros) vindos da África Oriental e do rio Nilo, desconhecido dos brancos. Um dos primeiros europeus a penetrar nessa região foi o missionário e explorador escocês David Livingstone. No período de 1840 a 1872, ele percorreu várias vezes o interior do território congolês, procurando as nascentes dos grandes rios africanos, instalando postos médicos e centros de pregação religiosa. Conhecia bem o interior do atual Congo. Na segunda metade do século XIX, um jornalista, Henry Stanley, saiu à sua procura. Em 1876, o rei da Bélgica, Leopoldo II, funda uma associação, que depois seria transformada em Associação Internacional do Congo, e convida Stanley para estabelecer contatos comerciais com os africanos. Isso possibilita ao jornalista inglês fazer um reconhecimento de toda a bacia do rio Congo. Em novembro de 1884 e estendendo-se até fevereiro de 1885, uma conferência internacional, a Conferência de Berlim, promoveu a partilha da África entre várias nações europeias. O rei Leopoldo II recebeu como possessão pessoal a África Central, que administrou de 1878 até 1908, como propriedade particular. Criou um exército de mercenários para explorar o marfim e a borracha. Esses homens submeteram os congoleses a maus-tratos, explorando-os como escravos, e, resultado, a mortandade dos africanos elevou-se a milhões de pessoas. Depois de uma série de denúncias em nível internacional, o parlamento belga destituiu, em 1908, a propriedade do rei Leopoldo II, que passou para o estado belga. Dessa data em diante, o Congo tornou-se colônia da Bélgica e recebeu o nome de Congo Belga.

    Assim, viajando sozinho para a África em janeiro de 1951, meu pai iniciou a sua vida no Congo. A resolução de ir sem a família para a África era na verdade uma exigência da própria companhia Cotonco, que considerava os primeiros seis meses como um período necessário de avaliação de desempenho (estágio probatório, como falamos para os professores recém-ingressos na universidade). Transcorrido esse tempo e sendo aprovado, poderia, então, receber as passagens aéreas para os demais membros da família.

    O que acabou acontecendo, porém, é que o período probatório de meu pai foi encurtado em três meses e, assim, minha mãe, eu e minha irmã Nicole, que ainda não havia completado um ano de idade, tomamos um avião, em maio de 1951, e partimos ao encontro de meu pai. A viagem, feita com DC-4, levou 24 horas (não se esqueçam: estamos na década de 50 do século passado!) com escalas em Roma, Atenas, Cairo, Juba (no Sudão) e finalmente Kisangani (antiga Stanleyville, denominação da cidade antes da independência do Congo, ocorrida em 30 de junho de 1960). Apesar de ser ainda muito pequeno, tendo dois anos e meio de idade, a única lembrança dessa viagem que permaneceu em minha memória foi a escala no Cairo à meia-noite sob um calor infernal! De Kisangani, fomos para Paulis (hoje chamado de Isiro), cidade a 600 km de distância, de carro dirigido por um congolês em viatura da companhia algodoeira. A duração da viagem, que era normalmente de um dia e meio, levou, segundo relato de minha mãe em seu livro Minha passagem por três continentes (2002), três dias, pernoitando em pequenos hotéis sem nenhum conforto no meio da selva.

    Dessa maneira, o reencontro com o meu pai ocorreu apenas quatro dias após termos deixado a Bélgica. O que não significa que já estávamos no ponto final da nossa viagem. Chegando a Paulis, meu pai nos esperava e continuamos nosso trajeto de camionete por mais 100 km, até finalmente chegar a Tely, nosso destino final. Esse pequeno povoado constituído por oito famílias de belgas, todos empregados da companhia Cotonco, tinha na região áreas de cultivo de algodão e café.

    O povoado chamado Tely, a aproximadamente 700 km de Kisangani, era situado ao longo de um rio muito bonito, Rio Bomokandi, repleto de crocodilos e hipopótamos. Em fotografia (ver encarte), estou nas margens desse rio sem imaginar que um dia, aos 25 anos de idade, iniciaria uma longa jornada, até o final da carreira científica, em investigações envolvendo a ecologia das águas continentais.

    Em janeiro de 1953, a Cotonco resolveu nomear meu pai para outra função no sul do Congo, em Kamende, a aproximadamente 1.500 km de Paulis. Primeiramente, fomos para Kisangani, cidade com aeroporto, e sem nenhum contratempo na viagem! Meu pai foi na frente para assumir o seu posto. Pegamos um avião DC-3 em Kisangani, minha mãe, eu, Nicole e Marc, meu irmão recém-nascido, em janeiro de 1953, com destino a Kongolo, cidade mais ao sul de Kisangani. Meu pai nos esperava no aeroporto e nós nos movemos com uma camionete da empresa para Kamende, viagem de 400 km que durou cerca de 10 horas, segundo relato de minha mãe. Não preciso dizer que eu tinha na época 4-5 anos, e as lembranças da infância são poucas.

    Seis meses mais tarde, nova mudança! Meu pai foi removido para assumir o mesmo tipo de serviço em Mulundu, localidade a cerca de 200 km de Kamende. Permanecemos em Mulundu até janeiro de 1954, quando meu pai cumpriu o seu primeiro triênio de serviços, tendo direito a seis meses de férias na Bélgica. Tanto meu tio, irmão de minha mãe, já mencionado, como minha tia, irmã de meu pai, e famílias residiam no Congo. O primeiro, com a sua família em Lumunbashi (antiga Elisabethville, situada no sul do Congo Belga), e a segunda, com família em localidade denominada de Kipushi (próximo de Lumumbashi). Meus pais resolveram visitar a família congolesa antes de usufruir das merecidas férias na Bélgica. Todos nós tomamos o trem em Luputa, localidade próxima de Mulundu, para Lumunbashi. Assim, reencontramos parte da família. Após curta permanência nessa cidade, embarcamos para uma viagem aérea de mais de 24 horas, saindo de Lumunbashi, passando por Kampala (capital de Uganda) para finalmente chegar a Bruxelas, na Bélgica. Segundo minha mãe relatou, foi um choque térmico, já que a temperatura no embarque era de 30 °C, e de -17 °C quando aterrissamos na capital da Bélgica.

    Depois da adaptação climática, estávamos finalmente de férias em nossa terra natal! Uma das viagens que fizemos nesse período foi para a França, que percorremos de carro até atingir o Mar Mediterrâneo no extremo sul deste país. Na volta, passamos por Lourdes (cidade religiosa, similar à Aparecida, aqui em São Paulo) e paramos numa fazenda em Dordogne (vilarejo, ao norte de Bordeaux), local onde meu pai refugiou-se durante a Segunda Guerra Mundial. Os fazendeiros, felizes em reencontrar um hóspede após muitos anos, que estava agora vindo com a família formada, serviram um almoço fantástico regado com muitas garrafas de champagne. Desse episódio, lembro-me bem, pois foi, aos seis de idade, a minha primeira bebedeira!

    Após os seis meses de férias na Bélgica, retornamos para o Congo, desta vez de navio, pois meu pai tinha comprado um carro, que seguiu junto. A primeira escala foi em Tenerife, nas Ilhas Canárias, onde pudemos fazer uma visita rápida, da qual ainda me lembro a despeito de que ocorreu há aproximadamente 65 anos! Era uma ilha montanhosa com estradas tortuosas que permitiam desfrutar de uma vista bonita. Seguimos viagem por duas semanas até desembarcar em Lobito, Angola (antiga colônia de Portugal), porto situado no Oceano Atlântico, em país vizinho à República Democrática do Congo. A proximidade Angola-Congo talvez possa explicar a influência do português na linguagem dos africanos. Sem saber que um dia viria a aprender, ler e escrever em português, uma das únicas palavras que guardei na memória e que ouvia dos congoleses é mesa.

    Após desembarcar em Lobito, tomamos um trem, que também transportou o veículo adquirido na Bélgica, e, em três dias de viagem, atravessou Angola de oeste a leste até atingir Dilolo, primeira cidade congolesa na fronteira com a antiga colônia de Portugal. Tenho vagas lembranças dessa viagem de trem. De Dilolo, continuamos por mais 300 km, agora de carro, até chegar a Gandajika. Nessa localidade, havia uma sede do Instituto Nacional para a Pesquisa Agronômica do Congo – INEAC, onde a maioria dos engenheiros agrônomos dedicava-se à pesquisa.

    A Cotonco, companhia algodoeira da qual meu pai era empregado, designou-o para trabalhar em Gandajika, em campos experimentais. Após ter feito um estágio no centro de pesquisa, ele foi encarregado de aplicar os resultados originados de pesquisas, fazendo com os congoleses plantações de algodão com sementes melhoradas, nas regiões do sul do Congo. Como não havia residência para permanecer em Gandajika, outra mudança ocorreu, agora para Kibangula, onde também havia um posto do INEAC. Nessa região, moramos inicialmente num casebre no meio da selva (em localidade denominada Mazomeno), a 14 km de Kibangula, porque outra vez não havia residência prevista para o agrônomo, recém-designado pela Cotonco para prestar serviços ao instituto de pesquisa, e para a sua família.

    Como meu pai viajava muito e, na década de 50, não havia tantos postos de gasolina como na atualidade, meu pai tinha um tambor de 200 litros de combustível ao lado da moradia. Uma noite, resolveu encher o tanque do carro, tendo ao seu lado um lampião a querosene para iluminação na noite escura da selva africana. Os vapores emanados do tambor de gasolina, com o calor desprendido do lampião, levaram a uma explosão da lâmpada, e um incêndio iniciou-se repentinamente. Como o telhado do casebre era feito de palha seca, em alguns instantes a casa incendiou-se completamente. Lembro-me bem dessa ocorrência. Nós três, os filhos, já estávamos deitados. Eu e minha irmã Nicole saímos correndo da cama para fora da casa, com pavor de sermos queimados, mas meu irmão Marc, ainda um bebê de um ano, não tinha obviamente autonomia para correr! Foi salvo pelos congoleses que destemidamente entraram na casa em chamas e removeram meu irmão do berço. Após esse incêndio, fomos morar em uma casa de hóspedes existente em Kibangula.

    Em setembro de 1954, tendo seis anos, atingi a idade de iniciar a alfabetização. Na Bélgica, como no Congo, os estudos completos envolviam seis anos de primário e mais seis anos de secundário, sendo seguidos por alguns anos na universidade (duração variável, dependendo do curso de graduação) para aqueles que assim desejavam ter formação universitária. Como o colégio mais próximo de Kibangula distava mais de 500 km, quem me alfabetizou foi minha mãe. Teve, porém, muitas dificuldades, pois não era professora e, como vivíamos na selva africana, longe de qualquer escola, ela resolveu me ensinar as primeiras letras em francês. Mas, como mencionou no seu livro de memórias, achava que seu filho Raoul não era muito inteligente, porque aprendia muito pouco. Então, consultou algumas freiras que ensinavam aos congoleses e que lhe disseram: A senhora quer ensinar um programa, que devia ser de três meses, em três semanas!

    No ano seguinte, segundo ano de primário (como era designado na época, o Fundamental de hoje no Brasil), meus tios (irmã de meu pai e marido) me convidaram para prosseguir o primário em Lumunbashi, onde residiam. Meus pais aceitaram prontamente o convite. Assim, durante dois anos sucessivos, eu voltava para casa somente ao final de cada trimestre, no Natal e na Páscoa (férias de curta duração), e no final de junho, para férias mais prolongadas (julho e agosto). Lembro que, tanto na Bélgica como no Congo, o ano escolar iniciava-se em setembro.

    Para chegar a Lumumbashi, eu devia viajar sozinho de avião DC-3 (década de 1950), retornando para casa somente nas férias. Como toda criança com sete anos de idade, eu chorava muito cada vez que era o início do ano escolar, não querendo, em absoluto, ir para a casa de meus tios e primos (a despeito de gostar muito deles!). No seu livro, minha mãe relata que ele (eu) chorou tanto e agarrou-se a mim no aeroporto de Kongolo (cidade mais próxima de Kibangula), que tive dificuldade para embarcá-lo no avião. Um pouco antes de falecer (em 2006), minha mãe me perguntou se eu não havia sofrido um trauma por essas despedidas forçadas trimestrais. Apesar de lembrar que chorava na hora do embarque, não guardei nenhum sinal na vida posterior.

    Durante os dois anos de minha permanência na casa de meus tios em Lumumbashi, uma escola internato (pensionato) foi inaugurada em Kasongo, cidade a 150 km de Kibangula, bem mais perto de casa. Assim, em 1957, continuei aí os estudos do primário, acompanhado de minha irmã Nicole, ela agora no segundo ano primário (ela também foi alfabetizada por minha mãe). No ano seguinte, meu irmão Marc, então com cinco anos e meio, veio também para o mesmo internato, em Kasongo. Lembro que eu, como irmão mais velho, dava a assistência possível ao meu irmão mais novo durante a nossa permanência na escola, os três internados.

    Em julho de 1957, terminou o segundo triênio de serviços prestados por meu pai, o que significava seis meses de férias na Bélgica. Durante esse período na Bélgica, residimos na casa de meus avós paternos em Dave, pequeno vilarejo no vale do rio Meuse, a cerca de 7 km de Namur, capital da província, cidade onde nasci. Nós não residimos na casa de meus avós maternos em Kapellen, vilarejo próximo de Antuérpia, porque na região norte da Bélgica a língua oficial é o holandês (na Bélgica, temos duas línguas oficiais: no norte, o holandês e, no sul, o francês; minha mãe é do norte e meu pai é originado do sul) e nós somente sabíamos falar francês, que também é uma das línguas oficiais da República Democrática do Congo.

    Obviamente nós três, os filhos, não estávamos de férias! Como tinha já nove anos, eu ia com meu primo Jean-Pierre, de 11 anos, que também residia com sua mãe na casa dos avós paternos em Dave, de trem para Namur para dar prosseguimento aos estudos de primário. Na Bélgica, os estudos são em tempo integral (manhã e tarde). Assim, somente no final da tarde, regressávamos a Dave, de trem. Minha irmã Nicole e meu irmão Marc frequentaram a escola de Dave. Dessa época lembro-me bem da casa que parecia um castelo, com três andares e o telhado em ponta. Podia ser vista de longe. Ao lado estava situado o cemitério de Dave, e na frente, um grande jardim, dividido com uma horta cultivada por meu avô, aposentado, seguida na segunda metade por um pomar, repleto de macieiras que, na época da frutificação, estavam tão carregadas de maçãs que muitas apodreciam na superfície do solo. Essa época ficou bem gravada na minha memória. Morando no Brasil e retornando à Bélgica a passeio, fazia questão de ir a Dave para rever o castelo e a região onde passamos alguns meses de nossas vidas.

    Em abril de 1958, voltamos para o Congo de avião. Meu pai tinha ido na frente de navio, pois levava um carro novo. Permanecemos em Kibangula até meados de 1959 quando meu pai foi transferido para Gandajika, onde o INEAC tinha seu posto mais importante no Congo. O local tinha boa estrutura, vinte famílias viviam ali, com clube e piscina. Segundo a minha mãe, a casa agora era bonita e confortável. Prossegui meus estudos de primário em Gandajika.

    Meu tio Roger, irmão de minha mãe, e família viviam, nessa época, em Kaniama, cidade situada a cerca de 300 km de Gandajika. Ele era administrador local (não era prefeito, porque não havia eleições!). A curta distância entre Gandajika e Kaniama permitia às duas famílias encontros mais frequentes.

    Devo agora contar um episódio que me marcou para a vida inteira. Um dia, minha mãe me pediu para levar um recado para uma vizinha belga em Gandajika. Todas as casas dos pesquisadores eram alinhadas ao longo de uma avenida e todas apresentavam uma alameda margeada por árvores na entrada e a casa no fundo do terreno. No final da alameda, estava localizada a garagem da casa. Quando cheguei à casa, iniciando o percurso pela alameda para o acesso à moradia, veio na minha direção, em corrida embalada, uma cachorra Pastor Alemão latindo e furiosa (hoje mais de 60 anos após, ainda vejo a situação na minha frente). Tomei um susto violento, achei que ia ser atacado, mordido. Ainda bem que, nessa hora, apareceu a dona da cachorra (que tinha na garagem filhotes recém-nascidos; obviamente a cachorra estava defendendo a sua prole), que a chamou pelo nome tentando acalmar o animal. Essa ocorrência me deixou marcado para sempre. Cada vez que vejo um cachorro na frente, tento me controlar, mas tenho um temor que a situação vivenciada se repita. Talvez essa ocorrência possa ser chamada de trauma da infância. Hoje não tenho nenhuma simpatia por cachorros e tento me manter longe deles!

    Permanecemos em Gandajika até o final do terceiro triênio (julho de 1960). No final de junho daquele ano (dia 30), a Bélgica concedeu a independência ao Congo. Imediatamente, iniciou-se em várias regiões do Congo rebeliões por parte de soldados congoleses. Esses militares começaram a atacar os belgas, inclusive mulheres. Atacavam, matavam e feriram os belgas. Estupravam mulheres, jovens, casadas e até freiras. Na região onde nós morávamos, não houve rebeliões, mas nós seguíamos as notícias que eram dadas por radioamadores. Isso eu lembro bem, porque era terrificante.

    Um amigo, assistente de meu pai em Kibangula foi barbaramente torturado e morto. O diretor do INEAC em Gandajika, onde nós morávamos, resolveu, por medida preventiva, evacuar as mulheres e as crianças para Kamina, cidade onde havia uma base militar belga e aeroporto. Formou-se uma caravana de viaturas, todas bem carregadas com malas, que dirigiu-se para Kamina, fazendo uma escala pernoite em Kamiana, cidade onde meu tio era administrador (como já mencionei). Nessa caravana, todos estavam armados com fuzis, porque, no trajeto, íamos passar por um posto militar congolês. Mas felizmente, nessa região, não havia rebelião, e a viagem ocorreu sem nenhum incidente. Essa evacuação (fuga?) ficou gravada na minha memória.

    Durante o percurso, a estrada margeava uma via férrea, e o temor era de haver um encontro com um trem lotado de congoleses rebelados. Em Kamina (local da base militar belga), formou-se uma ponte aérea do Congo para a Bélgica, para evacuar todos os belgas, mulheres e crianças em primeiro lugar. Situação similar recentemente (agosto de 2021) foi presenciada pela evacuação dos americanos e afegãos de Kabul para os USA, quando o Talibã tomou o poder. Como era medida de emergência e havia muita gente a remover, a bagagem permitida era restrita ao mínimo, na tentativa de colocar maior número possível de pessoas nos aviões com destino à Europa. Embarcamos minha mãe e meus irmãos praticamente somente com a roupa do corpo num desses aviões para chegar a Bruxelas, onde a família esperava os refugiados! Meu pai, pouco depois, embarcou para a Bélgica, porque, em julho de 1960, ele tinha acabado mais um triênio de serviços contínuos e tinha direito aos seis meses de férias.

    Mesmo com toda essa situação pouco segura em função da independência, ao terminar as suas férias, meu pai, como empregado da Cotonco, foi obrigado a retornar para o Congo, agora com contrato de um ano. Nesse período, foi nomeado Diretor Regional da empresa na região de Sankuru, província natal do Primeiro Ministro Congolês Patrice Lumumba, que tinha assumido o cargo em face da independência em 30 de junho de 1960. Um mês após a chegada de meu pai na região de Sankuru, o primeiro ministro foi assassinado, e a Bélgica foi acusada de ser a mandante do assassinato. Imediatamente, represálias por parte dos militares congoleses ocorreram na região. Meu pai, outros funcionários, padres, freiras (todos belgas) foram presos e submetidos a humilhações e maus-tratos. Meu pai contou que, em três ocasiões, achou que ia ser morto. Todos foram salvos pelas tropas da Organização das Nações Unidas – ONU. Depois da liberação, meu pai teve um encontro com o diretor-geral da Cotonco, que o indicou para outra região. Após ter passado por essa experiência terrível, meu pai achou que não valia mais a pena continuar nessa situação bastante instável e perigosa para a sua vida. Seu contrato de um ano não tinha ainda terminado e ele precisou pedir demissão, voltou para a Bélgica em março de 1961. Era o fim de nossa vida na África.

    Após nosso retorno (minha mãe, eu e meus irmãos) para a Bélgica na situação de refugiados, voltamos a morar na casa de meus avôs paternos, que tinham-se mudado do castelo em Dave para a cidade de Namur (capital da província de mesmo nome). Assim, em setembro de 1960, quando começou o ano escolar, continuei meus estudos de primário em Namur. Ia de manhã e retornava no fim do período a pé, da casa dos avós até o Athénée Royal de Namur (Ateneu Real de Namur, colégio onde estudava), cujas origens datam de 1545.

    Quando minha mãe soube que meu pai deveria voltar para o Congo sozinho para o contrato de um ano, após os seus seis meses de férias, ela resolveu alugar um apartamento e sair da casa de meus avós paternos. O apartamento situava-se no município de Salzinnes, subúrbio de Namur. Como já mencionei, a Bélgica é um país tão pequeno que os municípios se sucedem sem que a gente saiba exatamente os seus limites, similar aos municípios dos subúrbios de São Paulo e Rio de Janeiro. A distância entre o apartamento em Salzinnes e o Ateneu (onde estudava) não era grande. Eu ia a pé à escola de manhã, retornando no final da tarde da mesma forma. Em 1960, eu estava no sexto e último ano do primário. As aulas, em tempo integral, estendiam-se de segunda a sexta-feira; na quarta-feira, aula somente de manhã. Nesse período à tarde, nós íamos nadar na piscina aquecida comunitária de Salzinnes.

    Um fato curioso que lembro bem de Salzinnes é que, na hora do almoço, passava na rua em frente ao apartamento uma camionete tocando sino, como aquelas existentes aqui no Brasil vendendo botijão de gás, mas, na Bélgica, vendendo sopas! Na Bélgica, obrigatoriamente no almoço, tomamos todos os dias do ano sopa, seguida de prato constituído por batatas, carne e verdura. Tudo regado diariamente por bière de table (traduzindo: cerveja de mesa, isto é, cerveja bem fraca). Arroz é extremamente raro (somente em ocasiões muito especiais), muito menos feijão, inexistente (eu somente conhecia feijão-branco).

    Assim termina este primeiro capítulo de minha vida passada até os 12 anos de idade na África Equatorial.

    Capítulo 2

    Adaptação de um imigrante adolescente à vida no Brasil

    Como mencionei no capítulo anterior, meu pai, após sofrer maus-tratos nas mãos dos congoleses rebelados, demitiu-se da Cotonco, retornando para a Bélgica desempregado. Como ele, muitos engenheiros agrônomos que tinham voltado para o país tinham dificuldades em arranjar uma colocação, em função também da área reduzida da Bélgica para a agricultura. Como todos sabem, a Europa é

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