Odes Sensacionistas, Saudação a Walt Whitman e Ultimatum de Álvaro de Campos
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Sobre este e-book
Os legados intelectuais de Ramalho e de Bloom demonstram visões teóricas e ideológicas distintas quanto à construção do cânone literário. Mas ambos convergem na admiração pela obra de Pessoa e, em especial, num confessado fascínio pelo seu mais prolífico heterónimo, o irascível e escandaloso Álvaro de Campos, o engenheiro naval nascido em Tavira e formado em Glasgow, em quem Pessoa depositou toda a emoção que a si mesmo se recusou, e em quem projetou um génio ímpar da poesia de vanguarda do primeiro terço do séc. XX.
Odes Sensacionistas, Saudação a Walt Whitman e Ultimatum de Álvaro de Campos, antologia gizada na primavera de 2019, poucos meses antes do desaparecimento de Bloom, é simultaneamente um belo testemunho da amizade e da colaboração intelectual entre Maria Irene Ramalho e Harold Bloom e um contributo fundamental para a divulgação e compreensão da obra de Álvaro de Campos, o alter-ego de Fernando Pessoa até à sua morte em 1935.
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, one of the founders of modernism, was born in Lisbon in 1888. He grew up in Durban, South Africa, where his stepfather was Portuguese consul. He returned to Lisbon in 1905 and worked as a clerk in an import-export company until his death in 1935. Most of Pessoa's writing was not published during his lifetime; The Book of Disquiet first came out in Portugal in 1982. Since its first publication, it has been hailed as a classic.
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Odes Sensacionistas, Saudação a Walt Whitman e Ultimatum de Álvaro de Campos - Fernando Pessoa
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Harold Bloom (1930–2019) foi Sterling Professor of humanities da Universidade de Yale e Berg Professor of English na Universidade de Nova Iorque (NYU). Escritor e crítico literário, deixou extensa bibliografia, com mais de quarenta livros premiados. Entre as suas obras mais influentes, The Anxiety of Influence (1973), The Western Canon: The Books and School of the Ages (1994), Shakespeare: The Invention of the Human (1998), How to Read and Why (2000) são estudados, traduzidos e publicados em todo o mundo. Defensor da primazia da estética nos estudos literários e na construção do cânone literário, foi leitor e crítico de poetas como Shakespeare, Shelley, Blake, Yeats, Wallace Stevens, John Ashbery e Elizabeth Bishop, entre muitos outros. Admirador de Fernando Pessoa, integrou o poeta dos heterónimos no seu famoso e polémico «cânone ocidental» composto por vinte e seis autores.
Kleber Sales, nascido em Brasília, estudou Artes Visuais, com especialização em Design, na Universidade de Brasília (UnB). É ilustrador do Correio Braziliense desde 1997 e colabora com os jornais Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Bild am Sonntag, os periódicos Piauí, Quatro Rodas, Playboy Brasil e Runners Brasil e com outros meios de comunicação no Brasil e noutros países. Recebeu diversos prémios, incluindo da Society for News Design e do Salão Internacional de Desenho de Imprensa.
Maria Irene Ramalho é Professora Jubilada da Faculdade de Letras e Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. De 1999 a 2018 foi International Affiliate do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Wisconsin-Madison. É autora de Atlantic Poets: Fernando Pessoa’s Turn in Anglo-American Modernism (2003; ed. port. Poetas do Atlântico: Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano, 2008), «Poetry in the Machine Age» (The Cambridge History of American Literature, vol. V, 2003), Fernando Pessoa e outros fingidores (2021) e Fernando Pessoa and the Lyric: Disquietude, Rumination, Interruption, Inspiration, Constellation (2022). Co-organizou The American Columbiad: Discovering America, Inventing the United States (1997), Translocal Modernisms. International Perspectives (2008), Transnational, Post-Imperialist American Studies? (2010) e America Where?: Transatlantic Views of the United States in the Twenty-First Century (2012).
Introdução
Álvaro de Campos, engenheiro naval e poeta sensacionista
«Fernando Pessoa não existe, propriamente falando» — eis o que afirma o heterónimo Álvaro de Campos nas suas notas para a recordação de Alberto Caeiro, o heterónimo que é o mestre deles todos. Por impertinente que seja, a escandalosa afirmação de Campos corresponde perfeitamente à realidade. O sobrenome do poeta, Pessoa, vem do latim «persona», que significa «máscara»: por detrás da máscara, a pessoa de Fernando Pessoa não existe. Deter-se a recordar o mestre é o pretexto de Álvaro de Campos — porventura, depois do próprio Fernando Pessoa, o mais eloquente e desassombrado dos heterónimos — para tecer comentários sobre as realizações poéticas de Pessoa, entre as quais sobressai a mais original de todas elas: a criação dos heterónimos. Pessoa reinventou um termo já existente na gramática, «heterónimo» (nomes completamente diferentes para objectos semanticamente muito próximos), para significar os diferentes nomes dos seus muitos não-ele-próprio ficcionais. A palavra assim redefinida por Pessoa mereceu, entretanto, um verbete no Dictionary of Literary Terms and Literary Theory, de J. A. Cuddon (1999, p. 381).
A história da génese dos heterónimos é por demais conhecida. Pessoa criou-a em 1935 na muito citada carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro, um jovem poeta e crítico de presença (1927–1940). Esta revista do chamado «Segundo Modernismo» em Portugal foi fundamental para dar a conhecer a um público mais vasto um Pessoa até então praticamente inédito.
No dia 8 de Março de 1914 — Pessoa como se «numa espécie de êxtase» — a sequência de poemas intitulada O guardador de rebanhos «apareceu» subitamente perante ele, juntamente com o seu «autor», o ostensivamente singelo poeta pastoril, Alberto Caeiro. Este primeiro heterónimo, logo reconhecido como «mestre», foi de imediato seguido de «discípulos» que haveriam de constituir uma «coterie inexistente» de poetas: Ricardo Reis, médico, monárquico e autor classicista de epicuristas odes horacianas; Álvaro de Campos, extravagante cantor whitmaniano dos desafios da modernidade e da máquina, da nação, da identidade e da sexualidade; e Fernando Pessoa, virado não-Pessoa, e reagindo «contra a sua inexistência como Alberto Caeiro» (Pessoa 1982, pp. 93–100). Como primeiro reconheceu Jorge de Sena (Sena 1974; 1982), «Fernando Pessoa» passou a ser também um heterónimo; a partir daí, «Pessoa» não foi mais do que o nome de família do poeta. Tem razão Álvaro de Campos: ao passar a ser «drama em gente» e a integrar «pessoas livros», Fernando Pessoa deixou de existir — propriamente falando.
Caeiro (ou seja, os heterónimos) surgiu em resultado do encontro de Pessoa com Walt Whitman no início da sua carreira. Susan M. Brown, na peugada das perspicazes análises de Eduardo Lourenço (Lourenço 1973), foi quem primeiro reflectiu aprofundadamente sobre a fundamental relevância do aparecimento de Caeiro para o desenvolvimento dos heterónimos (Brown 1987). Brown fala com grande sensibilidade e persuasão do impacto de Whitman — dos seus muitos «Eu», «Mim», «Não-Eu», «Eu-Próprio», «Não-Eu-Próprio» — em Caeiro e nas outras pessoanas identidades poéticas.
Como o sexto sentido de Eduardo Lourenço o levou a intuir logo em 1973, Caeiro é também a magnífica invenção de Pessoa para suspender a ansiedade de influência. Pessoa inventou o mestre e criou a multiplicidade poética a fim de negar uma autoridade poética anterior. Não espanta que Pessoa tenha decidido deixar Caeiro morrer prematuramente. É curioso também que Pessoa defina Álvaro de Campos como «um Walt Whitman com um poeta grego dentro de si» (Pessoa 2009, p. 216) e um cultor privilegiado de arte não aristotélica (i.e. não-mimética), esquecendo-se muitas vezes de mencionar Whitman como um dos poetas que de facto o influenciou.
Sem o encontro de Pessoa com Walt Whitman, não teria existido Alberto Caeiro, mestre poeta-dos-sentidos-e-sensações. Em «Não há abismos», que incluímos nesta antologia, Campos dirige-se a Caeiro, dizendo, «tu sabias […] com o teu corpo inteiro». Sem Whitman, tão-pouco teria existido Álvaro de Campos, o engenheiro naval e poeta sensacionista, e «autor» de «Apontamentos para uma estética não aristotélica» (1925).
Das dezenas de manuscritos sobre sensacionismo e outros ismos pessoanos recentemente publicados por Jerónimo Pizarro (Pessoa 2009, pp. 141–220), alguns deles escritos em inglês e atribuídos a Pessoa, a Campos, ou a qualquer outra inventada persona, ficamos a saber um pouco mais do que pensava Pessoa (não sem contradições) do sensacionismo enquanto poética não-aristotélica. No rascunho de uma carta decerto destinada a algum editor inglês (Pessoa 2009, pp. 401–404), uma exposição detalhada da «atitude central» do sensacionismo pode resumir-se do seguinte modo: na vida, a única realidade é a sensação; a arte é a consciência harmoniosa da sensação; em arte não há filosofia, só arte. O sensacionismo não é um movimento, é antes uma «síntese final» de todos os movimentos modernos, incluindo o decadentismo, o cubismo e o futurismo. Deriva do simbolismo, lemos noutro apontamento, tem por objectivo a força e a energia, e não a beleza; na origem do sensacionismo está a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro; Álvaro de Campos e Almada-Negreiros são os seus cultores de excelência (Pessoa 2009, p. 215). Não admira que tivesse ocorrido a Campos dedicar