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O Modelo de Processo Coletivo no Conselho Nacional de Justiça: a problemática jurídica da escritura pública declaratória de união poliafetiva frente ao direito fundamental à felicidade
O Modelo de Processo Coletivo no Conselho Nacional de Justiça: a problemática jurídica da escritura pública declaratória de união poliafetiva frente ao direito fundamental à felicidade
O Modelo de Processo Coletivo no Conselho Nacional de Justiça: a problemática jurídica da escritura pública declaratória de união poliafetiva frente ao direito fundamental à felicidade
E-book370 páginas4 horas

O Modelo de Processo Coletivo no Conselho Nacional de Justiça: a problemática jurídica da escritura pública declaratória de união poliafetiva frente ao direito fundamental à felicidade

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Sobre este e-book

Os princípios relacionados ao direito de família e ao processo coletivo são temas de destaque na atual conjuntura. Dissertar sobre os dois temas, correlacionando-os, foi possível a partir de uma decisão do CNJ que proibiu, no âmbito das serventias extrajudiciais, a lavratura de escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas. O estudo se mostra relevante, pois o Direito de Família e o Processo Coletivo serão abordados sob a perspectiva de Constituição de 1988. Além disso, analisar-se-á a competência constitucional do CNJ. Para tanto, a opção metodológica utilizada foi a pesquisa bibliográfica, com uma abordagem dedutiva. O objetivo é analisar a evolução histórica e a atual perspectiva principiológica do Direito de Família, bem como estudar o Processo Coletivo tendo como parâmetros a teoria das ações coletivas como ações temáticas e a teoria da formação participada nas ações coletivas, respectivamente de autoria de Vicente de Paula Maciel Júnior e Fabrício Veiga Costa. Objetiva-se ainda demonstrar o papel do CNJ em relação ao enfrentamento do Direito de Família e do Processo Coletivo. Debater-se-á especificamente sobre a legitimidade do CNJ para proibir a lavratura de escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas e o método de procedimento administrativo utilizado para tanto. Serão abordadas as cinco teses formadas no plenário do órgão, estudando-se, por fim, o déficit de democraticidade na formação participada do mérito junto ao CNJ.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mai. de 2024
ISBN9786525290904
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    O Modelo de Processo Coletivo no Conselho Nacional de Justiça - Frederico Rodrigues Assumpção Silva

    1. INTRODUÇÃO

    O desenvolvimento do presente trabalho será dividido em três eixos. Além desta introdução e das considerações finais, três capítulos abordarão aspectos relacionados ao tema.

    O segundo capítulo abordará princípios ligados ao direito de família. O terceiro capítulo tratará do processo coletivo no Estado Democrático de Direito. O quarto capítulo versará sobre o processo coletivo no âmbito do Conselho Nacional de Justiça – CNJ – e debaterá sobre a problemática das escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas.

    Além de abordar princípios expressos na Constituição da República, de 1988, e que se aplicam ora ao direito de família, ora ao processo coletivo, ora a ambos, o presente trabalho terá como marco teórico a teoria das ações coletivas como ações temáticas, de autoria do jurista Vicente de Paula Maciel Júnior, bem como a teoria da formação participada nas ações coletivas, de autoria do jurista Fabrício Veiga Costa.

    O segundo capítulo introduzirá o tema, tratando sobre a poliafetividade e a consequente aplicabilidade de princípios relacionados ao direito de família, como autodeterminação, liberdade e autonomia privada. Estudar-se-á a gênese e a historicidade da monogamia e o dever de fidelidade no casamento como desdobramento da monogamia como princípio do direito de família.

    Abordar-se-á o fenômeno social do poliamor e das uniões poliafetivas, trazendo-se o conceito aberto, plural e democrático sobre família. A autonomia privada nas relações familiares terá destaque no estudo sobre o tema, bem como o direito fundamental de liberdade e autodeterminação do sujeito no âmbito familiar e o princípio da não-discriminação das uniões poliafetivas.

    Será defendido o tratamento da união poliafetiva como entidade familiar. Os direitos decorrentes das uniões poliafetivas serão estudados criticamente e conjuntamente com julgados sobre o tema. Demonstrar-se-á que já se reconhecem efeitos previdenciários, patrimoniais e sucessórios às uniões poliafetivas, embora a jurisprudência dos tribunais superiores ainda seja resistente no tocante a essas questões.

    O segundo capítulo também fará as necessárias distinções teóricas entre poliafetividade, concubinato e famílias paralelas, a fim de que não se confundam os termos e as situações particulares advindas de contextos distintos.

    O terceiro capítulo tratará sobre o processo coletivo no Estado Democrático de Direito. Serão abordados os direitos fundamentais metaindividuais como contraponto dos direitos fundamentais individuais. Nesse interim, será enfrentada a seguinte questão: o direito fundamental à felicidade seria um direito metaindividual?

    O processo coletivo no modelo representativo será abordado, bem como a teoria das ações coletivas como ações temáticas. O processo coletivo será abordado sob a perspectiva do sistema participativo. Também nesse momento será trabalhada a teoria da formação participada do mérito nas ações coletivas. O terceiro capítulo tratará ainda sobre a importância das audiências públicas na formação democrática do provimento nas ações coletivas.

    O capítulo quarto versará sobre o processo coletivo no âmbito do CNJ e debaterá especificamente sobre a problemática das escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas. Nesse sentido, serão abordados aspectos legais e procedimentais do processo no CNJ e o modelo de processo coletivo no órgão. Também será trazido para o debate a questão da indispensabilidade da participação popular nos processos do CNJ.

    O capítulo quarto tratará ainda sobre a legitimidade do CNJ para debater o tema, trazendo as cinco teses formadas no plenário do órgão sobre a legalidade das escrituras públicas declaratórias de uniões poliafetivas. E finalmente será estudado o déficit de democraticidade na formação participada do mérito junto ao CNJ.

    2. POLIAFETIVIDADE, AUTODETERMINAÇÃO, LIBERDADE E AUTONOMIA PRIVADA

    A poliafetividade, por ser genuína expressão da livre afetividade da pessoa humana, tem proteção constitucional expressa, uma vez que a palavra liberdade, além de estar inserida no preâmbulo da Constituição da República, de 1988, aparece novamente no corpo do texto constitucional outras dezesseis vezes ¹.

    Embora se possa afirmar que a expressão diga respeito a situações variadas, é inegável que o principal escopo do constituinte foi o de proteger a liberdade individual do cidadão contra o arbítrio estatal.

    Por outro lado, é importante destacar que, por mais prolixa que seja a Constituição da República, de 1988, não seria possível ao constituinte originário prever todas as formas de expressão da liberdade individual dos cidadãos. É nesse contexto que se advoga que a poliafetividade tem proteção constitucional expressa, nos termos do artigo 5º, caput, da Constituição, uma vez que todos são iguais perante a lei, não se admitindo distinções de nenhuma natureza e sendo inviolável, dentre outros, o direito à liberdade e à igualdade.

    Ainda: não apenas a liberdade, mas também o pluralismo tem destaque especial na Constituição da República, de 1988. O preâmbulo e o artigo 1º, inciso V, informam que nossa sociedade tem como um dos principais fundamentos o pluralismo político². E aqui não se pode confundir pluripartidarismo com pluralismo político.

    O pluralismo político pressupõe a coexistência pacífica de diversas formas de pensamento e de crença, o que indica que merece o mesmo respeito e consideração, pelo Estado e pela sociedade, tanto a monogamia, quanto a poligamia e o poliamor. Por outro lado, a expressão ‘pluripartidarismo’ informa a possibilidade de coexistência de vários partidos num sistema político, o que não deixa de ser uma forma de manifestação do pluralismo político.

    Dessa forma, não se pode dizer que há liberdade e pluralismo político se não há respeito à autonomia privada e à autodeterminação. Ou seja, não se pode tratar com desiguais, diferentes ou inferiores aqueles que optam livremente por viver uma relação afetiva diferente da tradicional, uma vez que o próprio Estado, através da Constituição da República, de 1988, direciona a sociedade e o legislador para o respeito ao pluralismo, à liberdade, à autodeterminação e à autonomia privada.

    2.1. Gênese e historicidade da monogamia

    A monogamia, que pode ser entendida como regime segundo o qual o homem ou a mulher deva ter apenas um cônjuge, está cultural e historicamente estabelecida desde pelo menos a Idade Média, segundo Marina Alice Souza Santos:

    a Idade Moderna apresentou famílias com estruturas e funções idênticas às da Idade Média. Além disso, no que tange ao Direito em relação à família, pouco ou nada se alterou.

    Na estrutura interna, a relação familiar experimentava um padrão de hierarquia e dominação, reflexos de doutrinas políticas do absolutismo e despotismo iluminado ou esclarecido, que assentavam na necessidade de uma rigorosa ordem chefiada, no caso da família, pelo homem. Tal ordem, de essência cristã, apresentava-se imutável e indiscutível. (...).

    A família não era somente um mecanismo de ação social da Igreja, mas um instrumento de controle da população e sua submissão aos valores sociais pelo Estado. A família era instituição posta a serviço de fins sociais. (...).

    Com isso, a vontade dos cônjuges era desconsiderada, mesmo ao se invocar o caráter contratual do casamento. A mulher era submissa ao marido, e essa sujeição de gênero no casamento era vista pelo jusnaturalismo como algo natural.

    Somente na Idade Contemporânea, nota-se novamente uma mudança de paradigmas, que vêm influenciar na estrutura da família, principalmente na Europa fervilhada pelas revoluções burguesas, que levaram às mudanças socioculturais na busca de um Estado menos intervencionista, mas que garantisse a sua evolução econômica.

    Na segunda metade do século XVIII, os países católicos, em especial a França, seguindo a tendência dos protestantes, como a Inglaterra, começaram a secularizar a matéria de casamento, reconhecendo-o como um contrato civil, não sujeito à regulamentação do Direito canônico.

    Com isso, percebe-se que a obtenção de propriedade passa a ser viés da sociedade, e a família não fica fora de tal propósito. Se antes o casamento e os filhos tinham como função garantir a perpetuidade do culto aos antepassados, agora são meios de acúmulo patrimonial. Do casamento, ainda estruturado na forma religiosa e único meio legítimo de constituição de família, deviam advir os filhos, que se tornaram importante força de trabalho, com objetivo de manter o patrimônio da família. Se por um lado a mulher continuava com a função reprodutiva, de outro, os filhos passaram a representar a mão de obra familiar. Por sua vez, o marido era propiciador da aquisição patrimonial, subjugando os demais, mantendo sua superioridade patriarcal como chefe da família, detentor do agora denominado pátrio poder.

    Assim a família, como uma instituição matrimonializada, única forma legítima existente, era hierarquizada: seus membros continuaram submissos ao pater familias. Era também patrimonializada, uma vez que o patrimônio era o baluarte das relações de direito, configurando-se a família como um núcleo para a aquisição e ampliação do patrimônio, a fim de posterior transmissão a sua prole.

    Essas características da família – patriarcal, matrimonial, hierarquizada e patrimonial – permearam a regulamentação do direito de família nos códigos surgidos nos séculos XIX e XX, como os Códigos Civis francês e alemão, além do Código Civil brasileiro de 1916, influenciado pelos anteriores. Dessa forma, podia-se verificar, no século passado, uma formação familiar estruturada segundo os traços mencionados, tal como descrita e legitimada nas legislações portuguesas que vigeram no Brasil, e no posterior Código Civil brasileiro de 1916.³

    Ou seja, desde o século V até o final do século XVIII, que foi marcado pelas primeiras revoluções burguesas, não se tem notícia de outro regime matrimonial/afetivo socialmente aceito que não seja a monogamia. De mecanismo de ação social da Igreja Católica durante o período da Idade Média, a monogamia foi incorporada pelos regimes absolutistas da Idade Moderna como instrumento de controle social da população. Além disso, entendia-se a submissão de gênero da mulher como algo natural.

    Toda essa estrutura foi colocada em xeque com as mudanças socioculturais proporcionadas pelas revoluções industriais, período no qual buscou-se um Estado menos intervencionista, porém garantidor da evolução econômica. A ideia de casamento como força motriz de um regime então em colapso é bem retratada por Joseph A. Schumpeter:

    (...) há outra causa interna ainda mais importante: a desintegração da família burguesa. Os fatos a que aludo são demasiado conhecidos para precisar de uma explicação minuciosa. Para os homens e as mulheres das sociedades capitalistas modernas, a vida familiar e a paternidade significam menos do que significavam outrora e, por isso, são modeladoras de comportamento menos profundas; o filho ou a filha rebelde que professa desprezo pelos padrões vitorianos expressa, ainda que incorretamente, uma verdade inegável. O peso desses fatos não fica prejudicado pela nossa incapacidade de mensurá-los estatisticamente. A taxa de nupcialidade nada prova, pois a palavra casamento abrange tantos significados sociológicos quanto o termo propriedade, e o tipo de aliança que costumava se formar pelo contrato de casamento pode desaparecer completamente sem nenhuma alteração na construção jurídica ou na frequência do contrato. Tampouco a taxa de divórcio é mais significativa. Não importa quantos casamentos se dissolvem por decisão judicial: o que importa é o número de uniões que carecem do conteúdo essencial do modelo antigo. Se, na nossa era estatística, os leitores fizerem questão de uma mensura estatística, a proporção de casamentos sem filhos ou com filho único, posto que ainda inadequado para quantificar o fenômeno a que me refiro, pode se aproximar tanto quanto esperamos de indicar a sua importância numérica. Atualmente, o fenômeno se estende a mais ou menos todas as classes. Mas surgiu primeiramente no estrato burguês (e intelectual) e, para os nossos fins, é inteiramente nessa classe que reside o seu valor sintomático e também causal. O fenômeno é totalmente atribuível à racionalização de tudo na vida, que, como vimos, é um dos efeitos da evolução capitalista. Aliás, é um dos resultados da passagem da racionalização para a esfera da vida privada. Todos os outros fatores geralmente citados à guisa de explicação podem se reduzir prontamente a esse.

    Assim, a partir do século XVIII e em virtude das revoluções industriais que se seguiram, houve impactos não somente na economia, obviamente, mas também especialmente no comportamento social. Consequentemente, a forma de convívio familiar e a paternidade deixaram de significar o que significavam outrora, abrindo-se espaços para outras relações afetivas.

    Marina Alice Souza Santos descreve que países como a França, seguindo a tendência de países protestantes, secularizaram a matéria de casamento e reconheceram-no como contrato civil.

    Outro efeito proporcionado pelas revoluções industriais foi a mudança de foco da entidade familiar. A obtenção e a preservação da propriedade passam a ser os elementos agregadores. Nesse novo sistema é o acúmulo patrimonial o principal elemento integrador da família monogâmica. E nesse mesmo sistema é o marido o chefe e o detentor do denominado pátrio poder.

    O contexto, portanto, que tem como características a família monogâmica, patriarcal e patrimonial, permeou a regulamentação do direito de família nas legislações surgidas nos séculos XIX e XX, especialmente o Código Civil de 1916. Ou seja, ainda que tenha ocorrido uma profunda mudança econômica e social em virtude das revoluções industriais, percebe-se que a tradição católica continuou a exercer forte influência nas estruturas familiares.

    Assim, embora tenha ocorrido um desvirtuamento em relação aos princípios éticos que antes regiam as relações familiares, não é surpreendente o fato de que o legislador atual considere como protegida pelo Direito apenas a família monogâmica. Afinal, o tabu relacionado ao sexo está arraigado na tradição católica, segundo David P. Barash:

    (...) o sexo é considerado tão degradante em grande parte da tradição cristã que o casamento era visto por muitos como inferior à castidade. O casamento, segundo essa visão, só existe como uma forma de evitar o pecado maior da fornicação (definida como sexo entre pessoas solteiras). Como coloca São Paulo: É bom ao homem não tocar em mulher; todavia, para evitar a fornicação, tenha cada homem sua mulher e cada mulher o seu marido (I Coríntios 7: 1-2).

    Bertrand Russel é ainda mais incisivo ao comentar sobre a ideia de sexo fora do casamento tal como proposto pela Igreja:

    a visão cristã de que todo ato sexual fora do casamento é imoral era... baseada na visão de que todo ato sexual mesmo dentro do casamento é lamentável. Uma visão desse tipo, que contraria a realidade biológica, só pode ser considerada uma aberração mórbida pelas pessoas sãs.

    Ou seja, a gênese e a historicidade da monogamia, como se percebe, estão intrinsecamente associados à influência da Igreja Católica. Forjada como meio de controle da própria Igreja sobre a sociedade e posteriormente transformada num elemento de domínio pelo Estado Absolutista, a família monogâmica ainda tem forte apelo social, emocional e político.

    Porém, a gênese dessa tradição religiosa não mais se coaduna com o atual estágio de desenvolvimento da sociedade. David P. Barash descreve as principais causas que levaram à configuração da família monogâmica:

    O asseio é ótimo, mas para muitos dos verdadeiros devotos, o celibato estava ainda mais próximo da santidade. E a impureza sexual era (e ainda é) suja. Os monges cristãos até o Renascimento queixavam-se amargamente de serem visitados em seu sono por súcubos, demônios fêmeas que gesticulavam e acenavam lascivamente para eles, assim como as noviças eram alertadas das visitas noturnas de suas contrapartes masculinas eroticamente tentadoras, os íncubos. Para as pessoas que se consideravam casadas com Cristo ou com a Igreja, qualquer tentação sexual – mesmo que não envolvesse nada mais do que o ocasional pesadelo ou a ejaculação noturna – só era um pouco menos pecaminosa do que a fornicação. O espírito pode estar disposto, mas a carne pode ser adulteramente fraca.

    E é claro que, se o casamento é fundamentalmente falho, amplamente aceitável como uma forma de tornar o sexo tolerável (desde que esteja dentro do casamento), então até que ponto é pior o casamento com a inserção do sexo explicitamente proibido (extraconjugal)?

    A tradição bíblica, porém, não odiava o sexo de modo tão uniforme como podem sugerir os escritos dos primeiros cristãos. Os homens do Antigo Testamento em geral tinham várias esposas, e alguns dos mais respeitáveis tinham várias amantes e cortesãs. Os Cânticos de Salomão têm forte carga erótica – e assim, aparentemente, era o próprio Salomão. A poliginia era amplamente aceita e o adultério só era problemático quando envolvia a esposa ou a filha de alguém; isto é, uma mulher que claramente já estava associada com um homem. O adultério era definido como um crime contra um homem, fosse marido ou pai... como ainda é em grande parte do mundo hoje, em especial nas regiões influenciadas pelo Islã. As relações sexuais entre um homem casado e uma mulher que não tinha nem marido nem pai não violavam qualquer ditame, fosse da sociedade ou de Deus.

    (...).

    Entre os antigos hebreus, pelo menos, havia outros motivos para impor um padrão duplo. O casamento era especialmente importante como meio de estabelecer os direitos sobre uma propriedade de sucessão genealógica. Assim, uma esposa adúltera rompia o cuidadoso sistema de parentesco biológico do qual dependia a rede social.

    O excerto acima ratifica o que fora demonstrado até aqui. Ou seja, a família monogâmica surgira como meio de controle social, mesmo que sob a justificativa de que devesse haver restrição sexual, o que era aceito pela sociedade em razão do contexto histórico e social à época.

    Posteriormente, com o advento da Idade Moderna, o Estado Absolutista tomou para si o papel de exercer o controle social, porém manteve os mesmos alicerces outrora sedimentado pela Igreja Católica.

    Atualmente, mesmo após as revoluções industriais e a consequente mudança no estilo de vida de toda uma sociedade, não mais se coaduna com os princípios da liberdade e da igualdade a intolerância em relação a formas não tradicionais de constituição de famílias, conforme Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior:

    Autores mais recentes chegam a afirmar uma crise do sistema jurídico monogâmico. Teria, nessa feita, permanecido a monogamia apenas como um princípio de cunho moral, religioso ou ético, que, convertida em aspecto ajurídico, não se pode pretender impor a uma sociedade eminentemente plural, como a atual. Não se pode descartar a hipótese de pessoas que, em suas múltiplas ‘morais’, podem reputar uma realidade familiar poligâmica como mais adequada às suas aspirações existenciais.

    Assim, entendido o contexto de formação e de justificação histórica da família monogâmica, no próximo tópico será possível interpretar a constituição de novas entidades familiares à luz da Constituição da República, de 1988.

    2.2. O dever de fidelidade no casamento como desdobramento da monogamia como princípio do direito de família

    O inciso I do artigo 1.566 do Código Civil elenca como dever de ambos os cônjuges a fidelidade recíproca⁹. Waldir de Pinho Veloso explica que, dentre os deveres elencados no referido artigo do Código Civil, apenas a fidelidade recíproca não constitui uma finalidade do matrimônio:

    A constituição familiar traz, em si, alguns tentáculos que ofertam suporte a essa Instituição. O que o Código Civil (art. 1.566) trata como deveres de ambos os cônjuges não deixa de se apresentar como finalidade do casamento. Isto porque a busca da vida em comum, em um único domicílio; a mútua assistência; o sustento, a guarda e a educação dos filhos; o respeito e a consideração mútuos são, nitidamente, os fins que se buscam com a formação de um lar sob o manto do casamento.

    Somente a fidelidade recíproca, apontada como dever de ambos os cônjuges, talvez não se encaixe como finalidade do casamento, permanecendo na seara do dever. Exatamente porque a monogamia e a fidelidade são, quase sempre, condições para a manutenção do casamento – e se encaixam, portanto, no campo do dever – e, não, fins do casamento. De fato, não se casa para que se possa ser monogâmico ou fiel; mas, pratica-se a monogamia e a fidelidade em razão de, pelo casamento, terem as pessoas optado por renunciar aos demais seres humanos, ficando e renovando, continuadamente, as promessas de pertencerem um ao outro.¹⁰

    Ou seja, para o autor, enquanto a assistência, o respeito e a consideração recíprocos, dentre outros, constituem não apenas deveres, mas também finalidades do casamento, por outro lado, apenas a fidelidade seria somente um dever, e não uma finalidade do casamento. É nesse sentido que se conclui que o dever de fidelidade no casamento tem como pressuposto o princípio da monogamia. Isso caso se entenda que a monogamia seja um princípio do direito de família.

    O autor também defende que a prática da monogamia e da fidelidade é um desdobramento dos votos contínuos de promessa de pertencimento exclusivo do casal, o que seria uma espécie de pressuposto do casamento. Dessa forma, o casamento tem como consequência a renúncia pelo casal aos demais seres humanos, o que se renovaria continuadamente durante o casamento.

    Conclui-se, portanto, que a monogamia nada mais é do que uma construção cultural imposta pela Igreja e que foi mantida pelos Estados com o objetivo de controle social e manutenção de poder. Não há como concordar que a fidelidade, corolário do princípio da monogamia, seja algo intrínseco à natureza humana. Autores mais tradicionais, a exemplo de Washington de Barros Monteiro, tem uma opinião interessante sobre a diferença entre o dever de fidelidade do homem e da mulher:

    do ponto de vista puramente psicológico, torna-se sem dúvida mais grave o adultério da mulher. Quase sempre, a infidelidade do homem é fruto de capricho passageiro ou de um desejo momentâneo. Seu deslize não afeta de modo algum o amor pela mulher. O adultério desta, ao revés, vem demonstrar que se acham definitivamente rotos os laços afetivos que a prendiam ao marido e irremediavelmente comprometida a estabilidade do lar. Para o homem, escreve SOMERSET MAUGHAM, uma ligação passageira não tem significação sentimental, ao passo que para a mulher tem.¹¹

    A passagem acima demonstra a opinião infelizmente e socialmente aceita de que o dever de fidelidade do homem é algo que deve ser mitigado, ao contrário do dever de fidelidade da mulher, que deve ser cumprido à risca. Porém, em uma sociedade com herança e viés nitidamente patriarcal, tal juízo de valor tem forte aceitação social.

    E nesse sentido se entende, de forma equivocada, que são as pessoas que devem se adaptar a essa tradição, e não o contrário; ou seja, não é a lei que deve se atualizar para que seja possível o respeito à diversidade, mas são os cidadãos que devem se adaptar à realidade social, conforme doutrina de Sonia Corrêa:

    Nas sociedades latinas, em geral, não pensamos a lei e o direito como uma espinha dorsal do contrato social que pode e deve se transformar à medida que se transformam os sujeitos que os produzem (e suas relações). Mas sim como um arcabouço quase mítico (platônico, poderíamos dizer) que determina a realidade. Além disso, na conjuntura atual, em face da crescente perda de capacidade indutiva e normativa dos Estados nacionais, assistimos ao surgimento e intensificação de demandas políticas no sentido de mais regulação e controle.¹²

    Quando se defende, neste trabalho, a ideia de que o dever de fidelidade está atrelado ao princípio culturalmente construído e socialmente aceito da monogamia, não se faz apologia à prática da infidelidade. Não há aqui uma relação de causa e efeito.

    O que se defende é que uma relação afetiva livre não deve se pautar por deveres impostos pelo legislador infraconstitucional, por dois motivos. Primeiramente porque a Constituição da República, de 1988, sabidamente hierarquicamente superior, elenca como fundamentos a dignidade da pessoa humana e o

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