Estudos interdisciplinares e as políticas de ações afirmativas: Pesquisas em raça e gênero no Brasil
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Estudos interdisciplinares e as políticas de ações afirmativas - Penildon Silva Filho
APRESENTAÇÃO
As investigações e trabalhos acadêmicos sobre racismo, preconceito, machismo e outras desse campo epistêmico são essenciais para atender à necessidade de aprofundamento da pesquisa no país nessa área, mas também pelo momento social e político de transição e conflito em que vivemos. Afinal, o racismo, o machismo, a misoginia, a LBGTfobia foram elementos estruturais da sociedade brasileira forjados desde a época colonial e do Império, que sobrevivem com muita força mesmo no período da República, elementos não desmontados em um país ainda com uma cultura escravocrata e patriarcal.
O momento social e político em que vivemos no Brasil se caracteriza, ao lado de outros aspectos, como uma reação conservadora de forma geral a políticas de ação afirmativa, assim como a políticas sociais que apenas iniciavam um processo de inclusão e ascensão das classes trabalhadoras e dos negros, nordestinos, mulheres e população LGBTQI+ no mundo do trabalho e no acesso às universidades. Tivemos desde o início do século XXI uma série de conquistas nesse campo democrático e popular, especialmente a partir do debate público de reparação na Conferência de Durban, em 2001 na África do Sul. A Conferência de Durban é como fica conhecida a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância promovida pela ONU contra o racismo e o ódio aos estrangeiros. Nesse encontro, a delegação brasileira, composta majoritariamente por representantes da Sociedade Civil organizada, se pronunciou a favor das ações afirmativas e das cotas nas universidades.
Essa pauta da reparação racial já existia antes desse momento, com uma longa história de movimentos negros de resistências e de reivindicação de direitos, que se tornaram um movimento cultural com raízes cada vez mais fortes na sociedade brasileira, e as mudanças institucionais nos momentos mais recentes se devem à uma mobilização social que desencadeou um debate nacional sobre racismo, discriminações, racismo estrutural, questionando e mudando a percepção da população de que vivíamos uma democracia racial
, derrubando um mito muito caro à estrutura extremamente excludente e racista da sociedade.
As primeiras universidades brasileiras a adotar as cotas foram a UERJ, as duas outras universidades estaduais cariocas e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que as instituíram em 2003, mas já em 2005 as cotas compuseram o projeto de Reforma Universitária na gestão do Ministro Tarso Genro, no governo Lula. Em 2008 foi enviado o projeto de lei das cotas ao Congresso Nacional, que teve que esperar até 2012 para votar esse projeto pela arguição de inconstitucionalidade movida pelo partido DEM no Supremo Tribunal Federal. O julgamento da constitucionalidade do projeto perdurou de 2008 a 2012, mas felizmente o posicionamento do STF foi coerente ao reconhecer a legitimidade de ações reparadoras e afirmativas nos diferentes âmbitos das políticas públicas.
Após a promulgação da Lei 12.711/2012, a lei de cotas nas universidades e institutos federais, tivemos a promulgação da lei 12.990, de 9 de junho de 2014, que estabelecia que ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União
.
Antes dessas duas leis foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial em 2010, após muitos anos de tramitação no Congresso, a lei 12.288/2010, que institui o referido Estatuto destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica
. Com uma atuação parlamentar essencial do senador Paulo Paim (PT-RS) na aprovação do Estatuto, o combate às discriminações ganha abrangência e institucionalidade, em diferentes esferas da vida social e como obrigação do Estado. O Estatuto reflete um momento histórico de reparações, reconhecimentos e de mudança nas políticas públicas. Em seu artigo 4º é explicitado:
A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
I - inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;
II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;
IV - promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;
V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;
VI - estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça e outros.
Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País. (Brasil, 2010)
Outras políticas reparatórias contribuíam para tentar superar a herança escravocrata ainda muito forte no Brasil, como a lei 150/2015, que enfrentou a profunda discriminação, especialmente voltada à mulheres negras, que viviam uma situação análoga à escravidão em milhões de domicílios do país, tendo negados seus direitos básicos, que foram definidos na CLT desde a década de 1940. Foi uma legislação que enfrentou dificuldades para sua aprovação, com forte boicote dos meios de comunicação e reclamações das famílias mais abastadas que viam seu status social ser igualado aos trabalhadores e negros no acesso às universidades, na frequência aos shoppings centers e aeroportos e que agora só poderiam contratar um trabalhador(a) com os direitos mínimos estabelecidos em lei que antes eram sistematicamente negados: salário mínimo; jornada de trabalho; horário de almoço; férias; FGTS; feriados; hora extra; seguro-desemprego; 13º salário; descanso semanal remunerado (DSR); vale-transporte; licença maternidade; estabilidade durante a gravidez; salário família; aviso prévio.
Foi criada uma institucionalidade que tornou o Estado brasileiro reconhecedor das discriminações e iniquidades seculares, como a instalação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), pela Lei 10.678, de 23 de maio de 2003, com a função de assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial. Houve ao lado disso a instituição da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), criada pelo Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003, com prioridade para trabalhar de forma transversal as políticas de inclusão do negro, envolvendo todas as áreas do governo; a criação do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), ligado à Seppir, também pela Lei 10.678, de 23 de maio de 2003; e a realização da 1ª Conferência Nacional da Igualdade Racial, de 11 a 13 de maio de 2005, em Brasília. O Estatuto da Igualdade Racial coroa esse processo de avanços das conquistas populares e as torna todas políticas de Estado, ao lado das leis de cotas nas universidades e no serviço público.
Avançou também a luta contra as discriminações contra as mulheres. Foi instituída a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, criada pela lei no 7.353, de 29 de agosto de 1985, mas tornada, no início de 2003, uma secretaria com status de ministério; foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, entre 15 e 17 de julho de 2004, que aprovou o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres; e criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), instituído pelo Decreto nº 4.773, de 7 de julho de 2003. Ao lado disso, foi promulgada a Lei 10.886, de 17 de junho de 2004, que criou o tipo especial violência doméstica
no Código Penal, que estabelece detenção de seis meses a um ano