Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Fim Do Inferno
Fim Do Inferno
Fim Do Inferno
E-book488 páginas7 horas

Fim Do Inferno

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Cinco histórias diferentes que começam em cinco cidades do mundo: Recife (BR), Guimarães (PT), Porto (PT), São Paulo (BR) e Paris (FR), cinco vidas que se ligam numa trama policial regada à culpa, ao ódio e à ganância. Vidas humanas de anti-heróis, pessoas com suas ânsias de viver num mundo onde ter é muito maior do que ser. A história é ligada ao roubo de 3 santos barrocos na cidade de Guimarães, numa fortuna em obras barrocas, que guiará uma corrida desenfreada no mercado de arte roubada de Paris. Um derrotado social, um taberneiro e artista plástico cínico, uma proxeneta traficante de seres humanos cruel e amarga, uma prostitua ambiciosa e ingênua e um estelionatário especialista em obras de arte roubadas e falsificação de documentos dão vida a esta ficção baseada em personagens reais, todos os personagens se entrelaçam numa relação de necessidade histórica. Nos meandros dessa história nasce um amor platônico entre um estelionatário e uma prostitua, dentro de um meio onde a beleza do sentimento não tem espaço, é uma flor que nasce no asfalto. Aves de rapina voando pela ganância, pela vaidade, pelo dinheiro num jogo letal onde a ingenuidade não tem vez! Uma trama de leitura corrente, com uma narrativa escrita para reter o leitor ao livro, perseguindo a simplicidade ao máximo para, assim, abranger o maior número de leitores. O livro discorre sobre sentimentos humanos como culpa, ambição, amor, arrependimento e vontade de excelência num meio sem ética, sem moral e sem paz. Trata-se de forma simples, mas em abundância da história da arte, da prostituição, da falsificação de documentos, do tráfico humano na cidade de Paris. Um livro de forte emoção sobre sentimentos puros e resistentes, nascidos no inferno do sentimento humano, personagens humanos confirmando a tese de que todo mundo é bom e ninguém presta!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de nov. de 2014
Fim Do Inferno

Leia mais títulos de Edu França

Autores relacionados

Relacionado a Fim Do Inferno

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Fim Do Inferno

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Fim Do Inferno - Edu França

    O FIM DO INFERNO

    Aos meus filhos

    Letícia França

    Gabriel França

    Beatriz França

    Raphael França

    Eduardo França

    CAPÍTULO I

    Recife – Brasil

    Ser pobre em Recife é morrer de sede em frente ao mar. O clima tropical, de sol escaldante e brisa marítima, seduz qualquer alma viva ao ócio. O mar vem lamber os pés dos ricos que moram nos arranha-céus da Zona Sul, de arquitetura belíssima e o metro quadrado tão caro quanto na Europa. Serviços e produtos de primeiro mundo ao dispor de uma chamada telefônica, nos quais tudo está à pronta entrega 24h por dia, de legumes às prostitutas. Restaurantes especializados em todo tipo de comida, desde a cozinha regional, vinda do centro do sertão – com seus bodes e derivados – passando por cozinhas que trata exclusivamente de frutos do mar e suas delícias, e passeia por todo paladar do mundo. É possível viver o universo gastronômico da cozinha mediterrânea  a  cozinha japonesa. Restaurantes franceses, italianos, gregos, portugueses e até marroquinos ao alcance das carteiras abastadas. Ali, por onde a vida é bela, não se anda à pé, muito menos em qualquer carro, o luxo passeia sobre quatro rodas em êxtase de ostentação. Um paraíso artificial agulhado diariamente pela violência sangrenta da maré de miséria, que é escondida por trás dessa pequena, restrita e minguante ilha de excelência.

                    Há dias em que o inferno sopra sobre a cidade! Barracos, esgoto, música alta, crentes gritando, assaltos, corpos no asfalto, sangue ressecado numa calçada, carro com alto-falante, pobreza explícita, miséria desavergonhada, pedintes, ricos, políticos, pastores, estelionatários, mulher desocupada, homem fofoqueiro, policial corrupto, hospital lotado, médicos em greve, tiroteios, julgamentos injustos, justiça com as mãos, fumaça de óleo diesel, carro enguiçado, trânsito parado, uma buzina mais dezenas de buzinas, um velho implorando para morrer, uma mulher sofrendo para dar à luz, um aleijado chorando, uma proposta, uma recusa e, a meio, crianças com fome, documentos perdidos, celular roubado, jogo do Sport, canal do Derby transbordado, Piedade inundada, Casa Amarela desabando com os morros nas costas, o povo dançando é o sol cozinhando, misturando o certo e o errado, formando uma cidade de sudorose e abafada.

                    Rua de barro rachada pelo sol, laçando uma nuvem fina de poeira ao passar dos carros, nas margens postes de concretos com fios da companhia de eletricidade disputavam espaços com postes de madeiras, emaranhados de fios que desviavam eletricidade para as casas e comércios da rua, em plena conivência legal. Alguns barracos se davam ao luxo de ter lâmpadas ligadas o dia todo. No fim da tarde, quando o sol dava uma trégua na sua guerra diária, as mulheres vinham ao portão dar vazão ao hábito do ócio. Os meninos descalços, morenos e de tronco nu, jogavam bola com barras improvisadas entre bandas de coco ou tijolos quebrados, interrompidos, de quando em quando, por algum carro inconveniente. Casas de alvenaria eram poucas e sinal de luxo, a maioria eram barracos de taipa ou de madeira construído às pressas para aproveitar um terreno distraído da prefeitura. Mas as melhores já se notavam, água canalizada, luz e a promessa de um saneamento; as casas iam melhorando na velocidade da miséria, algumas mesclavam uma parede de tijolos com tábuas de madeira. Os casos mais graves eram das casas feitas de compensado, um prensado de cola e raspas de madeira, uma espécie de papelão que inchava e se desfazia nas chuvas, como açúcar no café. Era o caso do irmãozinho, como é conhecido e até onde se sabe só tem esse nome, que todo mês avançava um ou dois metros na alvenaria da casa. Uma luta de titã, porque copeiro de um escritório, seu salário não chegava nem para despesas básicas, e ainda por cima sustentar um alcoolismo que nem Jesus foi capaz de retirar. Amanhecia crente fiel e cristão guerreiro e voltava ao fim da tarde bêbado, atrapalhado, trocando os passos, chorando de remorso pelo pecado e com uma intensa tosse de cachorro velho, o pequeno presente que o álcool lhe dera: uma tuberculose. Tentava esconder como um segredo de maçonaria, engolia a própria tosse durante o dia para evitar o afastamento ou baixa médica, depender da Previdência Social seria o mesmo que ser condenado à morte. Mas quando a tarde ia avançando entrava ele orando, chorando, tossindo e cuspindo pedacinhos de pulmão em escarros de sangue, implorando pelo ar que lhe faltava. Os dramas vizinhos eram mais ou menos intensos, profundos e sofridos que o dele, mas todos filhos da mesma mãe, a miséria!

                    _ Você é uma mentira na minha vida. Uma ilusão que eu não tenho direito, um luxo que eu não posso me dar, Sofia! – Falava com serenidade, a voz rouca intensificava a impressão de profundidade nas constatações tão duras que caíam da boca, sem que um músculo facial fosse movido em vão para tal lividez. Ele tinha certeza do fundo do coração de cada palavra.

                    _ Pois, Alexandre, eu continuo achando seus argumentos desculpas esfarrapadas para não enfrentar a vida aqui. Seu desejo é como a síndrome de Peter Pan, você quer abrir uma porta e mudar de  vida, como se isso fosse possível. Mudar de país não muda o passado de ninguém! – Sofia gesticulava com a mesma habilidade com que manejava os argumentos. A beleza branca dela realçava quando sua inteligência a excitava, seus olhos castanhos brilhavam e os cachos lindos de cabelos longos e negros com a noite se agitavam, davam drama a sua fala.

                    _ Esse é o problema, Sofia! Tenho 24 anos, nenhum passado interessante, um presente morto e um futuro determinado; eu vejo todo dia a minha frente, quando abro a janela, o pântano de miséria tragando vidas, sentenciando destinos e rasgando sonhos, como rascunhos. – Alexandre exaltou-se.

                    _ E você se põe nesse meio como um aleijadinho, sem braços e sem pernas para lutar, olha com a perspectiva do derrotado. - Foi grossa e desabafou, arrependendo-se de imediato.

                    _ Sofia, eu não quero que nossa conversa seja uma luta de classes, nem quero lhe culpar pela sua boa  sorte de nascença. Qual a culpa que você tem de ter todas as oportunidades abertas como um baralho de cartas, que você pode escolher sem medo? Você sabe que sempre poderá voltar atrás, escolher outros rumos diferentes sem prejuízo, com todo o tempo que só a boa nascença permite. Também não quero tirar seu mérito, de modo algum. Você é uma médica por mérito seu, foi seu esforço, mas subsidiado, apoiado. Não é meu caso nem de longe. Nesse jogo da vida quem vem de onde eu venho, onde o mais bem sucedido é um motorista, a gente começa perdendo de 2 a 0.

                    _ Isso e derrotismo...

                   _ Chega de termos bonitos, Sofia! Derrotismo de Becket, determinismo de Ratzel, seja que nome bonito for, de que escola seja, para mim é miséria do mesmo jeito, porque depois de descer do seu lindo carro é na lama que eu piso; o cheiro do seu perfume vai e é o cheiro de esgoto que eu sinto, é não saber se amanhã se tem ou não carne para o almoço. Isso não tem nada de teoria, de retórica estéril, de argumentos belos que são apenas masturbação mental; eu tou falando de coisa concreta, de fome, de privação, de falta de perspectiva. Isto você não vai saber nunca e por mais que leia, não há biblioteca que a explique traduza ou condense as marcas da miséria na alma humana. E que a vida não lhe apresente nunca essa face, porque, posso lhe garantir, não serve para nada, além de um envelhecimento precoce e a morte da esperança. – Os olhos negros de Alexandre estavam escancarados de raiva, com um brilho reluzente de lágrimas de revolta.

                    _Você deixou de acreditar em si mesmo, e está deixando uma inteligência tão bonita se perder. -Sofia chorava doído.

                    _ Eu deixei de acreditar, não em mim, no todo, no sistema de valores e na  organização social e a minha desgraça foi a vida, só de maldade, ter me feito minimamente inteligente. _ Alexandre retomava a serenidade e a placidez do olhar perdido. E completou: _ Nascer burro na miséria é uma espécie de bênção!

                    _ Muito bem, eu não vou contra-argumentar, mas saiba que se você se acha um ninguém hoje, amanhã quando voltar vai ser apenas um ninguém com dinheiro. - Disse convicta.

                    _ É assim que você se mostra verde nesse mundo podre, a realidade, princesa, é que a diferença entre alguém e ninguém é justamente o dinheiro!

                    _ Nós sabemos que não é verdade, não é?

                    _ Que pena que o mundo não é apenas eu e você!

                    _ Não me procure mais, por favor!

                    _ Não se preocupe, um dia a gente termina essa conversa… - Disse saindo do carro.

                    _ Espero que não! -Arrancou o carro em acelerado, mal esperou fechar a porta.

                    _ Tchau! -Disse ao vento, no vácuo do carro.

    A conversa foi pesada e o fim previsível, Alexandre sabia que Sofia jamais aceitaria razões de diferença social para um afastamento, porque chegava a crer que ela fazia ouvido de mercador e ele se sentia apenas um bibelô exótico no quarto de prendas da menina que tem tudo. Às vezes pensava que ela fazia com ele uma espécie de exorcismo social, no qual se punia relacionando-se com o rapaz pobre, matando a culpa de ser rica. Foi por essa série de teses paranóicas que o deixou inseguro e impedia que se apaixonasse pela irresistível menina brilhante. O tipo físico de Alexandre chamava atenção das mulheres, moreno alto, tipo atlético, cabelos finos de fios longos e penteados para trás, o que lhe dava uma aparência ora caribenha, ora italiana. Inteligente e culto, na mesma proporção e perigo. Estudante de filosofia, leitor voraz e oriundo da mais densa e intransponível pobreza recifense.

    Ele ia caminhando pela a estrada de terra, empoeirando os sapatos e tentando organizar as ideias. As palavras da conversa ressoavam como pedras atiradas à cabeça, foi a primeira vez que falou de modo explícito e cru da sua realidade, que por vezes tentava esquecer, enfiando a cara nos livros. A rebordosa era pior. Ao longe se via uma agitação muito grande. Pessoas se apressavam ao redor de um círculo de gente cada vez maior. O vendedor de milho parou seu carro-de-mão por perto, onde há gente há clientes. Alexandre foi-se aproximando devagar e ouvindo o zum-zum-zum dos cochichos. Crianças abriam espaços entre as pernas dos adultos para depois soltar os gritos tu visse?. Estava a poucos metros de casa e permaneceu à margem do círculo, mais interessado nos comentários do que no fato: coitado, tão novo!, disse uma senhora idosa; Quase que ele consegue escapar, se entra no portão..., disse um rapazinho; Porra, eu conheço a família dele disse uma morena formosa; como não podia faltar, havia as más línguas das pequenas calúnias, sem este lixo social não pode haver humanidade: batia na mãe, amaldiçoado, disse uma dona com ar impiedoso; Ladrão morre cedo!, sentenciou um gordo que não trabalhava e vivia Deus sabe do que; Era ele que tava arrombando as casas por aqui, não se perdeu nada, julgou um magro sem camisa, descalço e com a filha no colo; Saiu do presídio faz um mês, olhe o resultado!, afirmou o barraqueiro da esquina.A curiosidade mórbida, que vem dos confins mais primitivos do homem, estava presente: Estourou o pescoço, Deu nem tempo de gritar, pipoco da porra!, Isso é tiro de pistola, meu vei, para estourar a cabeça. Alexandre sentou-se no meio-fio como se assistisse a uma peça de teatro, a polícia Militar chegou, ligou os faróis da viatura para iluminar ainda mais o cadáver, e fez a pergunta clássica: Alguém viu alguma coisa?", a resposta foi um silêncio, não menos clássico. Quando a mãe do morto chegou foi o ápice da opereta bufa, a senhora que já estava um tanto alcoolizada, se jogava no chão, batia no corpo do filho, pedia que levantasse, desmaiava e tornava a seguir, na mesma intensidade soltava gritos, uivos a maledicências a Deus. Alexandre olhava atento para a senhora, na sua opereta latina, para identificar até onde ia a dor de uma mãe que perdeu seu filho, até que ponto era uma encenação canastrona do papel que lhe cabia e até que ponto era pura bebedeira. Impossível de dissecar, era tudo ao mesmo tempo! Populares levaram-na da cena, que já estava ficando monótona. Levantou-se, entrou ao meio do povo, observou o corpo de um adolescente de uns 17 anos, caído desconjuntado, observou duas perfurações pequenas nas costas, uma no tronco, outra na nuca, na região do cerebelo, observou ainda que o projétil havia transfixado a cabeça e saído no lóbulo frontal, formando uma enorme cratera sobre os olhos, observou ainda que uma das sandálias estava com a alça partida. Viu o suficiente para saber que o assassino era conhecido da vítima, por isso a tentativa de fuga. Se fosse desconhecido não haveria tempo para fuga, o tiro nas costas o fez cair e na queda quebrou a alça, o tiro na nuca o matou, logo foi um assassinato premeditado e executado por alguém da confiança da vítima. A motivação só podiam ser duas: dívidas de tráfico ou desentendimento na divisão de roubo. Alexandre não era legista, nem criminalista, mas de tanto ver assassinatos pegou o jeito.

    O cheiro de sangue lhe virou o estômago. Afastou-se da cena em direção a um orelhão.

                    _ Alô, como tá essa força?

                    _ Quem tá falando?

                    _ Alexandre, porra!

                    _ Fala, intelectual.

                    _ Olha, aquela parada tá de pé?

                    _ De Milão?

                    _ Sim!

                    _ Claro, mas tu tás disposto?

                    _ Tou!

                    _ É comer cu de viado, vai segurar a onde ou vai amarelar?

                    _ Tou te ligando, velho. Diz ao cara que eu vou.

                    _ O intelectual vai virar michê?

                    _ Deixa de resenha, vai rolar ou não?

                    _ Vai, vai sim.

                    _ Mas o cara paga a passagem?

                    _ Paga tudo, intelectual, tudo por conta da casa. Amanhã mesmo vou marcar um encontro.

                    _ Ok, vou esperar tua ligação.

                    _ Beleza, sem amarelar, intelectual!

                    _ Tchau, até amanhã.

    Alexandre tinha o mesmo brilho nos olhos, frios e calculistas, com que analisara o assassinato, de modo meticuloso e calculado ia dando andamento ao que vinha planejando há muito tempo. Parou em frente ao portão de casa, mergulhou em si, com ou sem consciência, pensou: 'há sempre um dia na vida de todo mundo, no qual você escolhe se vai ser alguém ou  ninguém. Eu já escolhi!'

    Porto-Portugal

    Os vinhos maduros do Douro eram guardados na prateleira mais alta do armazém, assim permaneciam fora do alcance da luz intensa e estavam próximos da saída do ar-condicionado, sempre a 21° graus, ótimas condições para sua preservação. De pé sobre a arca frigorífica e com um cabo de vassoura erguido, tentando tocar em uma garrafa, Neiva fazia uma acrobacia patética, perigosa e sem resultado.

    _ Quer se arrebentar, Neiva? - disse Bruno, entrando de súbito no restaurante, naquela velocidade agressiva que só espíritos jovens permitem.

    O susto foi tamanho que Neiva quase se estabanou no chão, derrubou o cabo de vassoura, balançou a garrafa e fez um malabares para não cair.

    _ Com este susto quem ia causar um acidente era você! - reclamou com certo pânico. 

    _ Espere que isso é um minuto… - Nuno subiu na arca e mal esticou o braço e a garrafa já estava em seu poder. _ Pronto, aqui está, é toda sua! – Entregando a garrafa ao pobre Neiva e saltando da arca como um atleta. Esbanjava vigor no cum dos seus 18 anos e 1,85m, era um moreno de cabelos e olhos negros, dono de uma magreza e de uma beleza que só a juventude exala.

    _ Obrigadíssimo, pois com este meu tamanho não ia lá. – riu abertamente, ostentando o galardão de possuir 1,55m de altura. A bem da verdade ele mostrava publicamente o seu aspecto delgado como se fora uma virtude, com a mesma vaidade com que um halterofilista exibe seus músculos definidos, Neiva exibia sua esqualidez em sua altura e no seu peso infantil de 45kg, com um orgulho incontido de ser franzino e parcialmente incapaz. Visto de longe parecia uma criança anêmica e nada lembrava um homem de 35 anos. Num movimento estranho de vaidade ele presava este aspecto de coitado, numa estratégia de sedução que almejava unicamente a compaixão, a piedade e a pena alheia.

    Nos idos de 2005, Portugal ia muito mal das pernas, o entusiasmo provocado pela injeção massiva de dinheiro da União Europeia deu lugar a um arrocho quando a conta do dinheiro emprestado bateu à porta. O milagre de Bruxelas deu lugar ao desespero luso! De repente toda uma classe média recém emergida da lama se viu à beira do precipício outra vez, sentindo cada dia mais forte o conhecido cheirinho da miséria. Os emergentes viviam a ilusão da ascensão súbita e não havia entre eles um que fosse dono do seu próprio nariz. Cada carro, cada apartamento, cada mobília tinha por trás uma longa história de dívida, que estava prestes ao protesto. As famílias estavam despencando violentamente de classe social, ora classe média bem morada, bem vivida, bem comida e de súbito eram indigentes vivendo de favores, se escondendo de credores como ratos e rasgando todo e qualquer manual de ética e escrúpulo para, nesta base do vale tudo, recuperar a classe perdida. Em tempos de crise o primeiro produto a sumir do mercado é a ética.

    _ Pois, seu Neiva, tens que compreender que isto está mal para todos. – disparou seu Beirão, um gorducho que ainda não chegara aos 30 anos e o pai lhe deu um restaurante de presente, na esperança de que aquele corpo inerte desse algum sinal de vida. Mas esse novo jogo do menino mimado de ser dono não ia muito bem, fornecedores em protesto, funcionários com salários atrasados e um movimento deprimente. Só uma coisa não faltava: as jantaradas fartas das sextas, regadas aos vinhos dos melhores safras e nutridos com o que havia de melhor no estoque.

    _ Pois, eu bem sei... É que a prestação do meu apartamento já está no terceiro mês de atraso e agora me chegou uma carta com aviso de penhora... – Neiva já era pequeno e quando precisava cobrar alguma coisa encolhia os ombros, tomava uma postura de tamanha inferioridade que mais parecia uma espinha de peixe dentro de uma camisa; falava tão baixo que era preciso repetir 2 ou 3 vezes cada frase para ser entendido.

    _ Oh seu Neiva, o senhor ganha 450 euros e se mete a pagar uma prestação de 375 euros. Foda-se, só pode estar no sufoco, afinal nós só lhe devemos três meses de salários atrasados, se a prestação fosse mais barata o senhor estaria mais organizado. Olhe, pegue lá 200 euros pra já, desenrasque-se que mais pra frente pomos tudo direito! – largou os minguados 200 euros e lhe virou as costas, Neiva pensou no total da dívida, 1350 euros, sentiu um calor, lembrou-se da penhora do apartamento e seus olhos arderam, sentiu um tremor nas mãos, seus lábios inflamados não se contiveram e ele expulsou da boca:

    _ Obrigado, seu Beirão!

    _ Agora uma garrafinha do mesmo vinho, mas fresca, a outra estava quente. – disse a caminho da mesa de uns amigos que bebiam já iam na quarta garrafa do vinho Alentejano Incógnita, que custava 180 euros a garrafa. Disse isso já de costas, enterrando assim a miséria do Neiva e pondo fim a este assunto que de fato não lhe interessava em nada.

    Como de costume o restaurante estava entregue às moscas, com exceção da mesa do patrão e seus amigos, igualmente jovens bem nascidos e irresponsáveis. A conversa ia larga, as gargalhadas iam soltas e Nuno observara discretamente do seu balcão de vender frango grelhado, sujo cheirando a gordura animal, pensou como seria bom ter nascido assim, sem precisar doar belos, doces e irretornáveis anos da juventude em troca da sobrevivência. Foi também discreto que observou o diálogo entre Neiva e o patrão, afinal tinha também alguns meses para receber. Já fazia planos para o dinheiro acumulado e o peito era plena ansiedade.

    _ Então Neiva? - perguntou olhando para os frangos, tentando disfarçar.

    _ Não há nada, meu amigo! – disse Neiva com um sorriso prazeroso.

    _ Como assim? – se agitou o rapaz.

    _ Oh Nuno, tens que entender, que isto está mal!

    _ Que fechem as portas, eu preciso de dinheiro para viver!

    _ Temos que compreender e ajudar o menino a sair desta crise, não o podemos enforcar ainda mais! Disse com entusiasmo.

    _ Que crise, criatura? Olhe aquela mesa regada ao que há do bom e do melhor, a única crise é a nossa. Eu vou ser despejado!

    _ Esta é vida deles, Deus quis assim! Eles podem e nós temos que nos conformarmos com nossas vidas. Uma coisa é muito importante Nuno: temos que ser leais às pessoas, se ele diz que está sem dinheiro é porque está sendo sincero! – ele falava como um pregador sereno e convicto.

    _ Faz dias que ele voltou de umas grandes férias, foi a 3 países diferentes, férias de rei e eu sendo enxovalhado, levando o nome de tudo que não mereço, inclusive de irresponsável, que neste caso não sou eu, e ao fim tenho que ajudar o menino? Tenha santa paciência Neiva! – já voltava seu ódio contra o colega.

    _ Olha, Nuno, penso que estás a ser egoísta e não estás a ver as coisas como elas são. Ele sempre fez boas férias desde criança e esses jantares não é justo que se acabem por causa de um período mau. Se queres que te diga, tens que ser forte... – Neiva havia como costume assumir o papel de advogado do patrão.

    _ É impossível conversar contigo sem perder a cabeça, eu só queria saber quem te ensinou a viver…- Perdeu as estribeiras, jogou as grelhas de qualquer jeito, largou o avental sobre a churrasqueira e quando ia em direção ao vestiário Neiva o interrompeu.

    _ Pega lá 200 euros, é para abateres, quando ele puder te paga o resto. Foi o que me deu também! – Disse naquele tom de superioridade de quem presta uma benevolência celestial.

    Nuno quando viu aquelas esquálidas notas, num montante que não chegava nem para pagar um mês de aluguel, ardeu em cólera, pensou que seria melhor nada que aquela desfeita vergonhosa, que parecia premeditadamente feita para humilhar. Seus olhos se encheram d’água, sentiu uma dormência nas pernas, ouvia as risadas na mesa como um insulto ferino, como uma pontada aguda, decidiu terminantemente não aceitar, ou melhor, pegar nas notas, rasgá-las e jogar na cara do patrão ultrajante. Cerrou o punho, seu maxilar tremia e uma sudorose lavava sua face, erguendo o punho cerrado, para o espanto e medo de Neiva, até a altura do peito, abriu a mão e recebeu o dinheiro. Seu amor próprio tombou de joelhos à necessidade, este ácido corrosivo de toda ética e dignidade. Trocou-se, passou pela mesa festiva de cabeça baixa, não olhou seu colega e sentiu que depois daquela momento algo se partira de muito sério, algo de muito importante se quebrou e lá ia ele com os estilhaços daquilo que se partira, cujo nome, origem e finalidade desconhecia e seus míseros 200 euros nos bolsos, como uma esmola oferecida.

    São Paulo – Brasil

    _ Então, menina, como foi ontem? – Perguntou ansiosa enquanto espremia laranjas.

    _ Menina nem te conto, 850 reais. Estou em claro aqui, mais valeu a pena!- Disse apressada carregando uma bandeja com sanduiches e sucos. –Espera que quando voltar é nosso intervalo, aí te conto tudo.

    Já sentadas na praça de alimentação do Shopping Zona Leste, Juliana começou a contar com entusiasmo a aventura da noite anterior.

    _ Eles passaram para me buscar lá em casa pelas 22hs...

    _ Eles quem? – Perguntou a amiga querendo reter todos os detalhes.

    _ Os tais que tiveram aqui semana passada... Menina, o lugar é lindo; sem contar a maior pose de madame que botei saindo lá da rua numa Pajero. A ralé parou pra ver e eu nem aí!

    _ Poderosa! – Entre risos.

    _ E muito. Lá me maquiaram, me deram um vestido super sensual, com umas joias. Modéstia à parte, estava linda. O DJ é profissional, anima geral, e as bebidas? Menina cada drink fantástico, bebi todos... De verdade, me senti como uma estrela...

    _ Sim, mas e depois você conseguiu...?

    _ Isso foi mais complicado, eles me deixaram muito à vontade cumpriram a promessa, só fazia se quisesse. Na verdade eu fui mais pela curiosidade, para conhecer mesmo; até que se aproximou um homem de uns 50 anos, bem vestido, cheiroso me abordou com educação. Conversamos bastante e ele me pagou bastantes bebidas...

    _ Mas as tuas bebidas não são de graça? – se intrigou a amiga.

    _ Deixa eu te explicar: se o cliente nos pagar uma bebida ganhamos a metade do valor. E as nossas bebidas são caríssimas... Enfim, até que ele me perguntou se eu queria subir com ele. Eu quase pergunto subir para onde? Levei um tempo para entender, aí sem responder, pedi para ir ao banheiro. Disfarcei no balcão e conversei com a menina que faz as bebidas, chamam de bar-tender, então ela me disse que se eu quisesse fosse à vontade, porque esse era dos melhores clientes da casa. Logo eu perguntei quanto eu cobraria. Ela disse pode pedir de 400 para cima que ele pagaria! Meu queixo caiu! Eu ganho 500 por mês aqui!

    _ Sim, vai conta o resto…- a amiga ouvinte estava vidrada na história

    _ Calma, menina! Então eu voltei à mesa e disse que sim, ele disse que isso era motivo de comemoração e pediu uma garrafa de champagne. Chuta o preço?

    _ Sei lá, 100?

    _ Que nada, 400 reais a garrafa, queridinha! O coroa é entupido de dinheiro. Então fomos lá fazer o babado. Que aflição, eu nervosa com medo, achando que não conseguiria fazer nada. Pensei vou botar tudo a perder, vou ficar paralisada e esse homem vai se irritar e vai dar merda, que nada, o homem super delicado me deixou totalmente à vontade, parecia um namorado ou que me conhecia de muito tempo. E eu já estava para lá de Bagdá, deixei rolar!

    _ Usaste camisinha? – Espantada

    _ Claro, foi minha primeira condição! Bom, quando saímos do quarto já passavam das 3 horas e o bar tava fechado. Ele se chamava Arthur e eu disse que meu nome era Daniela.

    _ Por que Daniela? – Intrigada boquiaberta com tudo.

    _ Sei lá, foi o primeiro nome que me ocorreu, agora nessa vida ninguém dá seu nome verdadeiro. A menina do bar ao fim da noite chamam as meninas e acerta as contas. Quando ela me disse que minha parte era 850 reais eu quase dei um grito de alegria. Nunca ganhei esse dinheiro todo de uma só vez. Agora minha vida vai caminhar!

    _ Então você vai continuar? – Perguntou com incredulidade.

    _ Claro, minha filha, cavalo selado só passa uma vez. E em muito breve vou largar essa bosta de trabalho, que não é vida para ninguém!

    _ Falar em bosta de trabalho, vamos voltar que o intervalo já vai acabar! – Disse a amiga meio tonta com tudo, olhando o relógio e ouvindo as palavras da amiga que se repetirem como um eco permanente. Havia sem dúvida muitos julgamentos morais, que não se mostravam claros, havia também alguns preconceitos que gritavam e por outro lado havia uma realidade promissora, um ganho realmente fabuloso. Enquanto as palavras da amiga ressonavam nenhum conflito real se formara e nenhuma linha moral ou ética preponderava. Concomitantemente a tudo que ouvira apenas algumas palavras soltas ocorriam, saltavam ao consciente: puta, dinheiro, família, vergonha, futuro, trabalho, miséria, luxo, carros, ônibus, filhos, doenças, joias, poder, alegria e tristeza!

    Jardim Colônia, subúrbio na Zona Leste Paulistana, é uma concentração social profundamente enraizada nos fundamentos que compõe todas as favelas e pós-favelas, desde associações politizadas, passando por movimentos culturais revoltados, politizados e por vezes racistas, até a forte e permanente presença do crime desorganizado, extremamente violento e muito bem armado, que faz uso da corrupção policial como licença de funcionamento. Em suma Jardim Colônia é apenas mais um bairro de periferia de qualquer grande cidade brasileira.

    _Alô, princesa? – começa o assédio para o segundo dia de trabalho.

    _Olá, tudo bem?- Disse Júlia, com um largo sorriso.

    _ E como foi o dia? Pensou sobre ontem? – o homem tinha uma voz pausada.

    _ E como não pensar? – respondeu levantando as sobrancelhas.

    _ Espero que não desista, já contava com você para hoje! – intimou.

    _Não, não se preocupe, eu vou sim, sem falta! – Falou séria.

    _ Ótimo! Te vi hoje. – disse em tom despretensioso. Mas com toda maldade de um diabo velho.

    _ Onde?- Assustada

    _ No Shopping onde você trabalha, não fui até você para não ser inconveniente. – Dissimulando seu real interesse.

    _ Não teria problema algum. Eu estava com uma amiga...

    _ Pois, por isso fiquei em dúvida se seria uma boa ideia; aliás, muito bonita sua amiga. Vocês duas trabalhando juntas seriam o mesmo que fabricar dinheiro. Em um ano estariam ricas!

    _ Que exagero!

    _ Sorriu

    _ Você viu quanto fez ontem? Bem que você poderia convidar sua amiga para conhecer a casa, sem compromisso, só conhecer! – lançando a isca.

    _ Posso convidar, não custa nada. Ela é meio certinha, mas quando falei do tanto de dinheiro que fiz ela ficou impressionada. – Disse com orgulho.

    _ Que dinheiro menina? Ontem foi gorjeta, você vai ver! A que horas posso te pegar?

    _ Às 21h tou pronta, vem na Pajero linda? E não esqueça, ao lado direito da entrada da Febem, não se perca, pode ser perigoso!

    _ Não me perco, não se preocupe. E claro que é na Pajero e é pouco, você merece uma limusine. Só mais uma coisa, como se chama tua amiga?

    _ Você é muito exagerado. Gostou mesmo dela, hem? Tou com ciúmes já. – Parecia uma adolescente colegial.

    _ Nada disso, só curiosidade... – Dissimulado como uma raposa.

    _Amanda, é nome dela e pode deixar que amanhã mesmo a convido.

    _ Ok, um beijo – Júlia tava vislumbrada, pela primeira vez na sua vida alguém a tratava como se fosse indispensável; e mais, com requintes de gentileza, educação, finura e respeito! Já estava acostumada a grosseria dos homens do bairro, que não tinham a menor postura diante de uma mulher. Aliás, poucos a viam assim. Na maior parte do tempo era apenas um pedaço de carne apertado num jeans, como a pronto consumo. Renato não, esse sabia tratar uma mulher e nem, sequer, havia-lhe dado uma cantada, nem uma insinuação, era um tratamento genuíno, da natureza dele que claramente desarmava-a. Mesmo sabendo que ele sendo o dono da boate, mesmo ciente de tudo que se fazia lá, o modo, a forma, o gesto dele era maior e preponderante a qualquer outro interesse. Júlia desligou o telefone pensando que esse homem ela queria para si, que por essa deferência valia tudo, tinha nisso uma profunda carência de filha e de mulher.

    Renato era um tipo de 40 anos muito bem conservado, atlético, dono de uma vaidade que o obrigava a manter o corpo que tinha aos 25 anos. Vestia-se muito bem e só possuía carros que marcassem presença, costumava lembrar-se da frase de Aristóteles Onassis: Milionário para ter credibilidade tem que viver muito além de suas posses. Assim era seu estilo, fazia-se aparentar muito rico, não economizava na imagem, mas para isso era um austero administrador de bordel. Ganhava muito dinheiro, mantinha o ar de gastador debochado quando na prática era um avarento atuante. Costumava parodiar a Bíblia: aquilo que você dá com a mão esquerda, toma com a mão direita. Era o dono do bordel mais famoso de São Paulo, situado numa casa em Alphaville, condomínio de rico, não tinha grande espaço físico; e ele o reduzira ainda mais, porque segundo sua experiência: bordeis tinham que ser pequenos, intimistas, ambientes que de tão micro inspirem sussurros, cochichos, frases roucas ao pé do ouvido e confissões molhadas em álcool. A arte do proxenetismo Renato aprendera nos seus verdes vinte e poucos anos que passara na Europa como empregado de inferninhos, casas de alternes e bordeis de luxo; foi nesse meio que apurou seu trato com as meninas e com clientes e hoje se dava ao raro luxo de escolher ambos, sobretudo os clientes.

    _ Alô, por que demorou tanto para atender o telefone? – Impacientíssimo.

    _ Tava limpando o salão. Alguma coisa urgente? – Perguntou empregado do bar.

    _ Na cave há umas garrafas de Old Parr 15 anos, trás uma pra cima e cole o Sr Amaral sobre o rótulo e em baixo escreva Exclusive Vip e faça pedras de gelo de água de coco.

    _ Mas hoje é quinta, será que o desembargador Amaral virá hoje?

    _ Já liguei, vem a meu convite e a Júlia vira como carne fresca, produto chamativo, tenho que afirmar presença com os dois. Agora tem aquela particularidade do desembargador, que você conhece bem... – disse em tom de alerta.

    _ Tudo bem, mas você precisa soltar mais algum dinheiro, porque os rapazes tão se recusando a comer aquele velho pela ninharia que você paga. – cheio de dedo com receio do patrão.

    _ Ok, ok, ofereça mais, mas garotos até 21 anos, ele só gosta assim.

    _ Só que tem um detalhe, não será muito pesado para Júlia no segundo dia?

    _ Eu também pensei nisso, por isso chame aquele traficante de merda, mas diga pra vir de terno, completamente social e avise que dialogo só com você no balcão, nada de papo com as meninas. Outra coisa, diga que só apareça se tiver heroína da melhor, o desembargador não abre mão de heroína da boa, whisky velho, rapaz novo e moça iniciante, isso pra ele não tem preço e seu bolso é um poço sem fundo quando bem servido. – Renato estava eufórico e continuou – Sim, muito importante, junto a caixa de Whisky estão os copos balão, a Velha maricona só bebe nesses copos. Preste bem atenção em cada detalhe e não me falhe em nada, tem que ser uma noite inesquecível para o velho!

    _ Pode deixar comigo! – o empregado sabia da responsabilidade, o desembargador era um dos clientes que Renato mais estimava. Era, também, o mais chato nos detalhes e fazia exigência de estrela, as quais Renato fazia sem pestanejar, desde os gostos bissexuais do septuagenário, ao tipo de heroína preferida, passando pelo tipo de copo e seu gelo de água de coco. Os concorrentes de Renato tentavam, em vão, entender como e os porquês seus seis processos por lenocínio foram arquivados por falta de prova.

    Júlia e Amanda davam os últimos retoques na maquiagem na saída do trabalho. Na porta do vestiário ficava o segurança para revistar as bolsas.

    _ Tou farta disso tudo, a gente trabalha como animais o dia todo, aguentando luxo de clientes, trabalhando muito mais do que a carga acertada, tudo isso por um salário que dá muito mal para comer. Deus dê-me paciência! – Amanda desabafava sua fragilidade de tudo.

    _ É por isso que tou caindo fora, isso aqui não é futuro para ninguém. Falando nisso, o Renato pediu pra te convidar pra conhecer a casa. – disse olhando seu telefone, mostrando um total desinteresse, falando por mero desencargo.

    _ Sei lá, não sei se é minha praia. – respondeu com uma voz oscilante.

    _ Eu sabia, só convidei porque ele pediu... Agora, amiga, um beijo e fica com Deus porque tou atrasada pra pegar o ônibus, se perder este só daqui a uma hora. – saiu às pressas.

    _ Vai, corre então. Até amanhã. – Amanda saiu pelos fundos do shopping que dava acesso ao estacionamento. Andou devagar, melancólica, pensando que amanhã naquele mesmo horário estaria saindo pelo mesmíssimo lugar com o mesmo cansaço,mas sem mesma paciência, ao menor sinal de insurreição, o patrão colocaria outra em seu lugar sem a menor piedade. Sabia também que o comércio consumia sua beleza, sua juventude e quando os sinais do tempo gritassem seria cuspida como um chiclete mastigado. E pensando assim se sentiu uma prostituta. Em casa as coisas não iam muito bem, o pai nunca o conhecera e a mãe só a via no dia em que recebia o salário, sempre se queixando de que assim como estava não era possível, assim iam passar fome, fechava-lhe a cara pelo resto do mês como se ela fosse culpada do salário mínimo brasileiro. E de quê servia tanta virtude, qual a função de tanto pudor, quantas contas eram possíveis de pagar com tamanha honestidade? Sentiu o que a sociedade grita descaradamente, sem pudor ou remorso: que nesta vida você vale o quanto pesa. Cedeu à realidade.

    _ Oi, aconteceu alguma coisa? Acabei de entrar no ônibus.

    _ Diz ao Renato que vou hoje, se puder. – disse Amanda quase em confissão.

    _ Oba! Fica pronta às 21h!

    _ Ok!

    _ Até lá, você não vai se arrepender.

    _ Até logo! – Desligou o telefone convicta e determinada, como se fizera a coisa mais acertada de sua vida, por alguma razão sabia que tinha tomado uma decisão que mudaria todo curso de sua vida. E não se amedrontava!

    Guimarães – Portugal

    Noite de inverno rigorosa, de doer os dedos e fazer sumir a população. A cidade ficava mais bonita vazia. Sua beleza resplandecia no silêncio da madrugada e no escuro da noite. O Largo da República do Brasil é pleno de flores rasteiras que sobreviviam ao rigor do inverno; ao fim dos seus 500 metros de extensão havia a bicentenária Igreja de São Gualter, um esplendor pós-barroco gótico; impressionava sê-la toda circundada por vitrais no alto das paredes de 8 metros, que reproduziam a saga e o martírio de alguns Santos, inclusive do seu patrono. Mantinha o rito medieval de badalar seus sinos a cada 15 minutos das 8 às 21h, vestígio bonito de um tempo em que poucos possuíam relógios e quase todos se orientavam pelas badaladas precisas. A cada 15 minutos acrescentava mais um trecho à melodia, que era tocada por completo à formatura de uma hora. Beleza preservada até os dias de hoje.

    Um homem de chapéu escuro e gabardine preto, que ia além dos joelhos, subia, a passos de passeio, a pequena rampa da Rua da Ramada, admirando a iluminação da Igreja de São Gualter; ao fim da pequena rampa, o homem taciturno fez uma pequena pausa, a seguir virou à esquerda em direção ao Largo da República do Brasil. Era a única alma viva que se aventurava no vento intenso, com gotículas de chuva e uma temperatura de menos 3 graus. Fez um atalho a meio do Largo, ao lado de um centro comercial, que o deixou logo ao lado da Igreja de São Francisco de Assis, uma construção medieval de rara beleza; seguiu em seus passos sem pressa, contemplando tudo como um turista notívago. Mais uma vez à esquerda e entrou na Rua dos Couros, que num passado

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1