Lucie De ...
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Lucie De ... - Liline Aguiar
Liline Aguiar
Lucie de ...
1
1ª Edição
2016
2
Lucie de ...
3
Para Lucie, quem quer que seja.
4
Sumário
1 ........................................................................ 6
2 ...................................................................... 18
3 ...................................................................... 23
4 ...................................................................... 29
5 ...................................................................... 33
6 ...................................................................... 61
7 ...................................................................... 69
8 ...................................................................... 80
9 ...................................................................... 89
10 .................................................................... 92
11 .................................................................... 94
12 .................................................................. 100
13 .................................................................. 107
14 .................................................................. 109
15 .................................................................. 115
16 .................................................................. 116
17 .................................................................. 118
18 .................................................................. 120
19 .................................................................. 134
20 .................................................................. 139
21 .................................................................. 153
22 .................................................................. 157
5
1
A mulher está junto à janela, atrás da cortina entreaberta. Não
ousa aparecer, tem medo de ser vista, mulheres janeleiras
aca-
bam faladas
; das duas uma: ou estão xeretando a vida alheia
ou, pior, estão à espera de alguém, boa coisa não pode ser. É jo-
vem, esguia, usa um vestido de tecido leve cor de salmão, o cabe-
lo castanho amarrado num coque. Sua figura é agradável, uma
leve sombra de olheiras lhe adoça a fisionomia.
Não espera ninguém, espia a rua deserta como quem per-
gunta sem esperar resposta. São as horas depois do meio-dia, as
lojas estão fechadas, todos se recolheram às suas casas, os que não
têm como o fazer se arranjam como podem para fugir da soalhei-
ra: embaixo das árvores, das carroças, num canto dos armazéns
fechados, e mais onde houver sombra e silêncio.
Não deveria haver movimento em parte alguma na cidade,
mas há. Por trás das portas e janelas cerradas, há pessoas atarefa-
das e angustiadas, sem conseguir descansar. Muitas nem comer
conseguem. Cuidam de doentes ou choram seus mortos. Há uma
doença atacando em toda parte, sem distinguir entre velhos e
jovens, ricos e pobres, felizes e infelizes. A morte se desdobra
para atender a todos que a peste lhe aponta, os vivos lutam com
as armas que têm, ou pensam ter.
O vigário da igreja do bairro decretou vigília permanente,
mas o número de pessoas, mulheres principalmente, que se reve-
zavam na adoração do Santíssimo e nas súplicas e ladainhas de-
cresce a cada dia. As que não adoeceram têm doentes para cuidar
ou mortos para chorar, as outras evitam as que perderam alguém,
como se isso pegasse ou desse azar.
6
Faz calor, mas ninguém sente, todos tremem em expectativa,
em constante alerta, os pais evitam olhar os filhos, os noivos não
mais se contemplam nem fazem planos, todos temem a perda.
Procuram sobreviver e cuidar dos demais sem pensar nem no
daqui a pouco, quanto mais no futuro. Há um vazio repleto de
sobressaltos na alma da cidade sob um céu cor de cinza sujo.
A mulher morena continua à janela. Na sala, uma garota
gorducha e corada a espia com interesse, as duas mãozinhas
agarradas à mesinha ao lado do sofá. A menina usa um vestido
de veludo vermelho, a barra de renda da anágua engomada ul-
trapassa a da saia. Roupa fora de moda e inapropriada ao tempo
quente. Parece uma pequena dama antiga, as meias de seda bran-
ca, os sapatinhos de verniz preto, os cabelos arrumados em ca-
chinhos. Deve ter seus três, quatro anos de idade, fita a mulher
com curiosidade, como se olha os estranhos, mas sem temor, co-
mo fazem os inocentes.
A sala está na penumbra por causa das cortinas cerradas. Os
muitos móveis, quadros, jarros e outros enfeites tornam o ambi-
ente pesado, mas isso dá segurança à mulher da janela. A casa é
dela, foi ela quem escolheu tudo. É de fora, procurou imitar as
pessoas desta cidade, enfeitou sua casa com os objetos vistos nas
outras. Parece petrificada junto à janela, não fossem os olhos, dir-
se-ia uma boneca de barro pintado. De repente, abaixa a cortina e
vira-se, ar contrafeito, atravessa a sala rapidamente e segue para
o interior da casa. A garota gorducha se ergue na ponta dos pés e
apoia o queixo no tampo da mesa repleta de bibelôs. A mesinha
frágil sequer balança e nada cai.
A casa é igual a todas da rua. Feita do sólido granito dos
morros entre os quais a cidade se espalhou. Fachada rente à cal-
çada, porão alto com quatro janelinhas gradeadas emparelhadas
com os janelões de cima, onde ficam a sala de visitas e o quarto
do casal. Uma varanda ao lado, a qual se chega por uma escada
de degraus de pedra com anteparos e corrimão de ferro trabalha-
7
do. No final da varanda, a porta principal, que dá para a saleta e a
sala de jantar. Daí se vai para os demais quartos, à direita, pelo
corredor avarandado. Do lado esquerdo, ficam a copa, a cozinha,
a despensa, o quarto de engomar e os tanques de lavar roupa.
Essas dependências, embora desprezadas, os fundos,
como
chamam, são as mais importantes. Ninguém vive sem comer e
ninguém admite se apresentar sem estar perfeitamente lavado e
engomado. Não a pessoa, as roupas. Neste mundo, são as roupas
que importam, os homens se vestem de casimira inglesa em pleno
verão tropical, sabe lá Deus, ou o Diabo como aguentam, e por
que ou pra que, mas é assim que é. As lavadeiras e engomadeiras
sacrificam a vida nesse altar, a troco só do feijão de cada dia e
olhe lá!
Hoje, não há movimento algum nessa parte da casa, nem ca-
misas engomadas para pendurar no armário. A mulher para na
sala de jantar sem saber para onde ir. Evita o quarto de casal, on-
de o marido jaz na cama, aniquilado pela morte do filho. Filho só
dele, não dela, é a segunda esposa, ele era viúvo quando casaram,
bem mais velho que ela, os filhos crescidos. "Melhor você não
arranja, disseram os parentes.
Um homem desses, doutor, polí-
tico importante, você vai morar na Capital. Foi um bom marido
pra primeira, vai cuidar bem de você". Os preparativos do casa-
mento consumiram as poucas energias da família e quase todo o
dinheiro. A cerimônia foi simples, em casa mesmo, poucos con-
vidados, mas, mesmo assim, foi o acontecimento do ano. A rua
cheia de gente, pessoas da dita boa sociedade se acotovelando
com o pessoal do sereno
, os frequentadores habituais das cal-
çadas dos clubes e casas da elite nos dias de festa. Críticos severos
de todos os ilustres convidados, são temidos, nenhuma dama de
respeito ousa comparecer com o mesmo vestido usado noutra
ocasião. O sereno
não perdoa. Pois até essas damas não se peja-
ram de misturar-se com a ralé, só para não perder a chance de
conferir, ao menos de longe, evento tão insólito.
Só mesmo muita sorte, a noiva estava longe de ser das moças
mais notáveis. Morena clara de olhos e cabelos castanhos, igual a
8
muitas, sem nada de especial. Nem alta nem baixa, nem gorda
nem magra, nem feia nem bonita. Nem rica nem pobre, o pai to-
cava o armazém herdado do pai dele sem verdadeiro empenho
nem sucesso, só mantinha, e mal, sempre à beira da falência. A
surpresa foi geral, quando souberam do noivado, o noivo era o
melhor partido
da cidade; apesar de viúvo, podia escolher
quem quisesse. Fez bem em arranjar uma pessoa tão apagada
,
disseram, assim não corre perigo, ninguém vai reparar nela, e,
afinal, é de boa família, de estirpe, a mãe é neta do barão tal, não
é como essas sirigaitas que só querem saber de festa, de aparecer,
não vai perder a cabeça na Corte - como ainda chamavam a Capi-
tal, apesar da República.
Sente pena do marido, o coitado merecia ter alguém ao seu
lado nesta hora, alguém capaz de partilhar sua dor. Decerto, sen-
tiu a morte do rapaz, mas como sentem os estranhos, os de fora.
Menos até, porque não tem filhos, não sabe o que é ter filhos,
muito menos como é perdê-los. O marido não quer mais filhos,
ela sabe, embora ele nunca tenha falado no assunto. Sorte sua
,
disse-lhe a mãe, nunca vai passar por esse horror
.
A mãe tinha nascido com o dom da tragédia, dramatizava até
os acontecimentos mais corriqueiros. Vivia a detectar e prever
catástrofes e desgraças certas. A filha crescera ouvindo falar de
perigos constantes e aterradores, havia escorpiões e cobras em-
baixo de cada pedra, não podia brincar no quintal. Não podia
fazer isso nem aquilo, nada, afinal, senão. . "Um menino desobe-
deceu à mãe, foi banhar no rio, nunca mais foi visto, veio uma
sucuri e engoliu ele." Ou um jacaré, era um ou outra, nas incon-
táveis vezes em que teve de ouvir essa história. Outro menino
passou a tarde inteira no sol, entrou na água com o corpo quente,
ficou paralítico para o resto da vida. Um horror! Horror, a mãe
adorava essa palavra, e outra, peçonha, essa quando falava dos
bichos escondidos por toda parte no quintal e alhures. Com que
gosto as pronunciava. Horror, peçonha.
9
Era um milagre não ter se transformado numa criatura fraca
e medrosa. Saiu a mim
, disse o pai, uma das únicas vezes em
que o ouviu dizer alguma coisa.
O pai saía cedo de casa para o armazém, a casa comercial
,
como dizia a mãe. Voltava ao meio-dia, para o almoço, comia
enquanto a mãe desfiava a ladainha de sempre. Doenças, mortes,
queixas diversas. Descansava um pouco na rede da varanda dos
fundos, saía de novo e voltava para o jantar, ao entardecer. De-
pois, sentava-se na cadeira de vime na varanda da frente, a mãe
sentava-se ao lado e se retirava assim que ele acendia o cigarro.
Saía abanando o nariz, com uma careta de desgosto. O vizinho do
lado sempre aparecia, pra dois dedos de prosa com o amigo
,
como dizia. Prosa só dele, só ele falava e sempre o mesmo assun-
to: a carestia, o dinheiro da aposentadoria não dava para nada. O
pai ouvia, ou fingia ouvir, de vez em quando acenava com a ca-
beça, como se ouvisse e concordasse.
Se dependesse de mulheres como a mãe e as amigas dela, a
humanidade se acabava, os poucos filhos das boas famílias cres-
ciam mofinos, enfadados, enquanto os filhos das lavadeiras e das
cozinheiras nasciam às dúzias e corriam descalços pelas ruas.
Também morriam às dezenas, é certo, e as mães se acabavam
cedo. Se acabam de tanto parir, essas sem-vergonhas
, ouviu,
certa vez, uma das amigas da mãe dizer. As outras se espanta-
ram, viraram a cabeça para o lado, a tal amiga era considerada
inconveniente
pelas demais, falava o que não devia, isto é, o
que as outras pensavam, sem coragem de dizer. As senhoras "de
bem diziam
essas pobres infelizes", embora elas mesmas pen-
sassem exatamente o mesmo que a tal inconveniente falava de
alto e bom som. Eram todas umas sem-vergonhas, as emprega-
das, além de preguiçosas e desastradas. Era de bom tom falar mal
das empregadas, reclamar do serviço, principalmente na hora de
pagar, as poucas moedas entregues de má vontade e depois de
muita descompostura. Quem não agia assim, não era boa dona-
de-casa.
10
Pensa na sua lavadeira, o dia inteiro ao sol, os pés e as mãos
na água fria, e, em seguida, no quartinho dos engomados, às vol-
tas com o ferro pesado cheio de brasas. Aguentando as reclama-
ções, não se perdoa uma ruga no lençol, um vinco num colarinho
é um sacrilégio. O dinheiro do pagamento dá só para a comida do
dia seguinte, a mulher tem filhos em casa, de pais diferentes, "es-
sa gente é como os animais", dizem, aqui como lá. Se não eram
animais, eram tratadas como tal. Não faz a menor ideia de como
vive sua lavadeira, mas sabe como vivem as da sua terra: as casas
de madeira em palafitas sobre o rio, onde jogam o lixo da cidade,
as crianças brincam nas margens, no meio do lixo e dos urubus.
Vivem assim porque querem
, diziam as tais boas senhoras, "se
fossem honestas, decentes, podiam morar na casa da gente (lugar
não faltava nos imensos casarões herdados dos avós), mas elas
preferem viver na imundície. ."
Ter filho, a mãe jamais diria a palavra parto, era o pior dos
horrores, coisa de bicho, as mulheres decentes passam por isso
porque é o jeito, castigo de Deus, a penitência de Eva que todas
devem cumprir. Certas coisas são feias, moças e senhoras de bem
não falam, melhor seria se as ignorassem por completo. E perigo-
sas. A mãe a advertia das ciladas que armavam para as mulheres,
sem especificar quais eram, só que sempre levavam a horror e
ruína total. Tivera um ataque quando soube que o filho mais ve-
lho do genro ia morar com eles. "Um rapaz! A proximidade, cui-
dado", dissera-lhe, num canto escondido da casa ao qual a arras-
tara, como se tratasse de um segredo terrível. "As pessoas iam
falar, eram favas contadas".
Se falavam ou não, jamais soubera. O enteado, um rapaz cir-
cunspeto, instalara-se no último quarto, no final do corredor, pas-
sava pela casa sem olhar para os lados. Nunca falou com ela, se
pedia alguma coisa, era ao pai. O máximo de tempo que ficavam
juntos era às refeições e, como não conversavam à mesa, nem
sabe direito como era a voz dele. Não conversavam à mesa e nem
11
em lugar nenhum, ela e o marido. Só se diziam o necessário e não
era muito, não precisava de nada, o dinheiro regularmente colo-
cado na gaveta da sua penteadeira era mais que suficiente.
Depois do jantar, pai e filho se instalavam na varanda, con-
versavam e riam bem à vontade, como dois velhos amigos.
Consegue imaginar o tamanho da dor do marido. Cuidou do
filho dia e noite, pela primeira vez o viu despenteado, os bigodes
caídos, a barba por fazer. Carregava, ele mesmo, as bacias, os
lençóis usados, até os urinóis. No final, nem os chinelos calçava.
Quando o rapaz morreu, os amigos tiveram de obrigá-lo a arru-
mar-se para o velório, você deve isso a seu filho, vamos,
e ele
recuperou a dignidade, pelo menos na aparência, até que voltou
do enterro. Arriou-se na cama, chora em silêncio. Ela cuida que
nada lhe falte, leva ao quarto as bandejas com o café, a almoço, o
jantar. Ele não toca na comida, traz uma tigela de caldo, um copo
de laranjada, alegra-se de ver que tomou alguns goles, verifica os
lenços na mesinha de cabeceira, pensa em tudo de que possa pre-
cisar e providencia, sempre em silêncio e sem fazer sentir sua
presença, mais não pode fazer. E quem pode? A pior dor do
mundo, dizem, quem é ela para lhe estender a mão, para lhe
olhar nos olhos, ajudá-lo a suportar uma dor que não é dela nem
jamais será?
Durante a doença do enteado, precisou se ocupar sozinha do
abastecimento da casa, faltava tudo na cidade, e de alguns servi-
ços, a lavadeira sumiu, a cozinheira adoeceu; se não fosse o copei-
ro, até roupa ia ter de lavar. Felizmente, o sujeito morava lá mes-
mo, fez as tarefas pesadas e ajudou-a a tratar da cozinheira. A
mulher se recuperou, já voltara ao fogão e às panelas, ainda meio
trôpega, mas conseguindo dar conta. Agora, está esta pasmaceira.
Nada para fazer.
O nada pesa, como pesa! Faz a gente pensar, vem essa inqui-
etação inconveniente, não se sabe de onde. Do maldito nada.
O homem derreado na cama lá no quarto é seu marido, mas é
como se não fosse. Pior, nunca tenha sido. Pela primeira vez, o vê
sem os ternos de casimira, os coletes, o colarinho alto, o bigode
12
impecável. A figura imponente ao