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Lucie De ...
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E-book458 páginas3 horas

Lucie De ...

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Sobre este e-book

Um francesa, de familia nobre arruinada, prostituta, vem para o Brasil a convite de um rico fazendeiro. Paralelamente, um família paulista, numerosa. É a vida dessas pessoas, no dia a dia.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de jun. de 2018
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    Lucie De ... - Liline Aguiar

    Liline Aguiar

    Lucie de ...

    1

    1ª Edição

    2016

    2

    Lucie de ...

    3

    Para Lucie, quem quer que seja.

    4

    Sumário

    1 ........................................................................ 6

    2 ...................................................................... 18

    3 ...................................................................... 23

    4 ...................................................................... 29

    5 ...................................................................... 33

    6 ...................................................................... 61

    7 ...................................................................... 69

    8 ...................................................................... 80

    9 ...................................................................... 89

    10 .................................................................... 92

    11 .................................................................... 94

    12 .................................................................. 100

    13 .................................................................. 107

    14 .................................................................. 109

    15 .................................................................. 115

    16 .................................................................. 116

    17 .................................................................. 118

    18 .................................................................. 120

    19 .................................................................. 134

    20 .................................................................. 139

    21 .................................................................. 153

    22 .................................................................. 157

    5

    1

    A mulher está junto à janela, atrás da cortina entreaberta. Não

    ousa aparecer, tem medo de ser vista, mulheres janeleiras aca-

    bam faladas; das duas uma: ou estão xeretando a vida alheia

    ou, pior, estão à espera de alguém, boa coisa não pode ser. É jo-

    vem, esguia, usa um vestido de tecido leve cor de salmão, o cabe-

    lo castanho amarrado num coque. Sua figura é agradável, uma

    leve sombra de olheiras lhe adoça a fisionomia.

    Não espera ninguém, espia a rua deserta como quem per-

    gunta sem esperar resposta. São as horas depois do meio-dia, as

    lojas estão fechadas, todos se recolheram às suas casas, os que não

    têm como o fazer se arranjam como podem para fugir da soalhei-

    ra: embaixo das árvores, das carroças, num canto dos armazéns

    fechados, e mais onde houver sombra e silêncio.

    Não deveria haver movimento em parte alguma na cidade,

    mas há. Por trás das portas e janelas cerradas, há pessoas atarefa-

    das e angustiadas, sem conseguir descansar. Muitas nem comer

    conseguem. Cuidam de doentes ou choram seus mortos. Há uma

    doença atacando em toda parte, sem distinguir entre velhos e

    jovens, ricos e pobres, felizes e infelizes. A morte se desdobra

    para atender a todos que a peste lhe aponta, os vivos lutam com

    as armas que têm, ou pensam ter.

    O vigário da igreja do bairro decretou vigília permanente,

    mas o número de pessoas, mulheres principalmente, que se reve-

    zavam na adoração do Santíssimo e nas súplicas e ladainhas de-

    cresce a cada dia. As que não adoeceram têm doentes para cuidar

    ou mortos para chorar, as outras evitam as que perderam alguém,

    como se isso pegasse ou desse azar.

    6

    Faz calor, mas ninguém sente, todos tremem em expectativa,

    em constante alerta, os pais evitam olhar os filhos, os noivos não

    mais se contemplam nem fazem planos, todos temem a perda.

    Procuram sobreviver e cuidar dos demais sem pensar nem no

    daqui a pouco, quanto mais no futuro. Há um vazio repleto de

    sobressaltos na alma da cidade sob um céu cor de cinza sujo.

    A mulher morena continua à janela. Na sala, uma garota

    gorducha e corada a espia com interesse, as duas mãozinhas

    agarradas à mesinha ao lado do sofá. A menina usa um vestido

    de veludo vermelho, a barra de renda da anágua engomada ul-

    trapassa a da saia. Roupa fora de moda e inapropriada ao tempo

    quente. Parece uma pequena dama antiga, as meias de seda bran-

    ca, os sapatinhos de verniz preto, os cabelos arrumados em ca-

    chinhos. Deve ter seus três, quatro anos de idade, fita a mulher

    com curiosidade, como se olha os estranhos, mas sem temor, co-

    mo fazem os inocentes.

    A sala está na penumbra por causa das cortinas cerradas. Os

    muitos móveis, quadros, jarros e outros enfeites tornam o ambi-

    ente pesado, mas isso dá segurança à mulher da janela. A casa é

    dela, foi ela quem escolheu tudo. É de fora, procurou imitar as

    pessoas desta cidade, enfeitou sua casa com os objetos vistos nas

    outras. Parece petrificada junto à janela, não fossem os olhos, dir-

    se-ia uma boneca de barro pintado. De repente, abaixa a cortina e

    vira-se, ar contrafeito, atravessa a sala rapidamente e segue para

    o interior da casa. A garota gorducha se ergue na ponta dos pés e

    apoia o queixo no tampo da mesa repleta de bibelôs. A mesinha

    frágil sequer balança e nada cai.

    A casa é igual a todas da rua. Feita do sólido granito dos

    morros entre os quais a cidade se espalhou. Fachada rente à cal-

    çada, porão alto com quatro janelinhas gradeadas emparelhadas

    com os janelões de cima, onde ficam a sala de visitas e o quarto

    do casal. Uma varanda ao lado, a qual se chega por uma escada

    de degraus de pedra com anteparos e corrimão de ferro trabalha-

    7

    do. No final da varanda, a porta principal, que dá para a saleta e a

    sala de jantar. Daí se vai para os demais quartos, à direita, pelo

    corredor avarandado. Do lado esquerdo, ficam a copa, a cozinha,

    a despensa, o quarto de engomar e os tanques de lavar roupa.

    Essas dependências, embora desprezadas, os fundos, como

    chamam, são as mais importantes. Ninguém vive sem comer e

    ninguém admite se apresentar sem estar perfeitamente lavado e

    engomado. Não a pessoa, as roupas. Neste mundo, são as roupas

    que importam, os homens se vestem de casimira inglesa em pleno

    verão tropical, sabe lá Deus, ou o Diabo como aguentam, e por

    que ou pra que, mas é assim que é. As lavadeiras e engomadeiras

    sacrificam a vida nesse altar, a troco só do feijão de cada dia e

    olhe lá!

    Hoje, não há movimento algum nessa parte da casa, nem ca-

    misas engomadas para pendurar no armário. A mulher para na

    sala de jantar sem saber para onde ir. Evita o quarto de casal, on-

    de o marido jaz na cama, aniquilado pela morte do filho. Filho só

    dele, não dela, é a segunda esposa, ele era viúvo quando casaram,

    bem mais velho que ela, os filhos crescidos. "Melhor você não

    arranja, disseram os parentes. Um homem desses, doutor, polí-

    tico importante, você vai morar na Capital. Foi um bom marido

    pra primeira, vai cuidar bem de você". Os preparativos do casa-

    mento consumiram as poucas energias da família e quase todo o

    dinheiro. A cerimônia foi simples, em casa mesmo, poucos con-

    vidados, mas, mesmo assim, foi o acontecimento do ano. A rua

    cheia de gente, pessoas da dita boa sociedade se acotovelando

    com o pessoal do sereno, os frequentadores habituais das cal-

    çadas dos clubes e casas da elite nos dias de festa. Críticos severos

    de todos os ilustres convidados, são temidos, nenhuma dama de

    respeito ousa comparecer com o mesmo vestido usado noutra

    ocasião. O sereno não perdoa. Pois até essas damas não se peja-

    ram de misturar-se com a ralé, só para não perder a chance de

    conferir, ao menos de longe, evento tão insólito.

    Só mesmo muita sorte, a noiva estava longe de ser das moças

    mais notáveis. Morena clara de olhos e cabelos castanhos, igual a

    8

    muitas, sem nada de especial. Nem alta nem baixa, nem gorda

    nem magra, nem feia nem bonita. Nem rica nem pobre, o pai to-

    cava o armazém herdado do pai dele sem verdadeiro empenho

    nem sucesso, só mantinha, e mal, sempre à beira da falência. A

    surpresa foi geral, quando souberam do noivado, o noivo era o

    melhor partido da cidade; apesar de viúvo, podia escolher

    quem quisesse. Fez bem em arranjar uma pessoa tão apagada,

    disseram, assim não corre perigo, ninguém vai reparar nela, e,

    afinal, é de boa família, de estirpe, a mãe é neta do barão tal, não

    é como essas sirigaitas que só querem saber de festa, de aparecer,

    não vai perder a cabeça na Corte - como ainda chamavam a Capi-

    tal, apesar da República.

    Sente pena do marido, o coitado merecia ter alguém ao seu

    lado nesta hora, alguém capaz de partilhar sua dor. Decerto, sen-

    tiu a morte do rapaz, mas como sentem os estranhos, os de fora.

    Menos até, porque não tem filhos, não sabe o que é ter filhos,

    muito menos como é perdê-los. O marido não quer mais filhos,

    ela sabe, embora ele nunca tenha falado no assunto. Sorte sua,

    disse-lhe a mãe, nunca vai passar por esse horror.

    A mãe tinha nascido com o dom da tragédia, dramatizava até

    os acontecimentos mais corriqueiros. Vivia a detectar e prever

    catástrofes e desgraças certas. A filha crescera ouvindo falar de

    perigos constantes e aterradores, havia escorpiões e cobras em-

    baixo de cada pedra, não podia brincar no quintal. Não podia

    fazer isso nem aquilo, nada, afinal, senão. . "Um menino desobe-

    deceu à mãe, foi banhar no rio, nunca mais foi visto, veio uma

    sucuri e engoliu ele." Ou um jacaré, era um ou outra, nas incon-

    táveis vezes em que teve de ouvir essa história. Outro menino

    passou a tarde inteira no sol, entrou na água com o corpo quente,

    ficou paralítico para o resto da vida. Um horror! Horror, a mãe

    adorava essa palavra, e outra, peçonha, essa quando falava dos

    bichos escondidos por toda parte no quintal e alhures. Com que

    gosto as pronunciava. Horror, peçonha.

    9

    Era um milagre não ter se transformado numa criatura fraca

    e medrosa. Saiu a mim, disse o pai, uma das únicas vezes em

    que o ouviu dizer alguma coisa.

    O pai saía cedo de casa para o armazém, a casa comercial,

    como dizia a mãe. Voltava ao meio-dia, para o almoço, comia

    enquanto a mãe desfiava a ladainha de sempre. Doenças, mortes,

    queixas diversas. Descansava um pouco na rede da varanda dos

    fundos, saía de novo e voltava para o jantar, ao entardecer. De-

    pois, sentava-se na cadeira de vime na varanda da frente, a mãe

    sentava-se ao lado e se retirava assim que ele acendia o cigarro.

    Saía abanando o nariz, com uma careta de desgosto. O vizinho do

    lado sempre aparecia, pra dois dedos de prosa com o amigo,

    como dizia. Prosa só dele, só ele falava e sempre o mesmo assun-

    to: a carestia, o dinheiro da aposentadoria não dava para nada. O

    pai ouvia, ou fingia ouvir, de vez em quando acenava com a ca-

    beça, como se ouvisse e concordasse.

    Se dependesse de mulheres como a mãe e as amigas dela, a

    humanidade se acabava, os poucos filhos das boas famílias cres-

    ciam mofinos, enfadados, enquanto os filhos das lavadeiras e das

    cozinheiras nasciam às dúzias e corriam descalços pelas ruas.

    Também morriam às dezenas, é certo, e as mães se acabavam

    cedo. Se acabam de tanto parir, essas sem-vergonhas, ouviu,

    certa vez, uma das amigas da mãe dizer. As outras se espanta-

    ram, viraram a cabeça para o lado, a tal amiga era considerada

    inconveniente pelas demais, falava o que não devia, isto é, o

    que as outras pensavam, sem coragem de dizer. As senhoras "de

    bem diziam essas pobres infelizes", embora elas mesmas pen-

    sassem exatamente o mesmo que a tal inconveniente falava de

    alto e bom som. Eram todas umas sem-vergonhas, as emprega-

    das, além de preguiçosas e desastradas. Era de bom tom falar mal

    das empregadas, reclamar do serviço, principalmente na hora de

    pagar, as poucas moedas entregues de má vontade e depois de

    muita descompostura. Quem não agia assim, não era boa dona-

    de-casa.

    10

    Pensa na sua lavadeira, o dia inteiro ao sol, os pés e as mãos

    na água fria, e, em seguida, no quartinho dos engomados, às vol-

    tas com o ferro pesado cheio de brasas. Aguentando as reclama-

    ções, não se perdoa uma ruga no lençol, um vinco num colarinho

    é um sacrilégio. O dinheiro do pagamento dá só para a comida do

    dia seguinte, a mulher tem filhos em casa, de pais diferentes, "es-

    sa gente é como os animais", dizem, aqui como lá. Se não eram

    animais, eram tratadas como tal. Não faz a menor ideia de como

    vive sua lavadeira, mas sabe como vivem as da sua terra: as casas

    de madeira em palafitas sobre o rio, onde jogam o lixo da cidade,

    as crianças brincam nas margens, no meio do lixo e dos urubus.

    Vivem assim porque querem, diziam as tais boas senhoras, "se

    fossem honestas, decentes, podiam morar na casa da gente (lugar

    não faltava nos imensos casarões herdados dos avós), mas elas

    preferem viver na imundície. ."

    Ter filho, a mãe jamais diria a palavra parto, era o pior dos

    horrores, coisa de bicho, as mulheres decentes passam por isso

    porque é o jeito, castigo de Deus, a penitência de Eva que todas

    devem cumprir. Certas coisas são feias, moças e senhoras de bem

    não falam, melhor seria se as ignorassem por completo. E perigo-

    sas. A mãe a advertia das ciladas que armavam para as mulheres,

    sem especificar quais eram, só que sempre levavam a horror e

    ruína total. Tivera um ataque quando soube que o filho mais ve-

    lho do genro ia morar com eles. "Um rapaz! A proximidade, cui-

    dado", dissera-lhe, num canto escondido da casa ao qual a arras-

    tara, como se tratasse de um segredo terrível. "As pessoas iam

    falar, eram favas contadas".

    Se falavam ou não, jamais soubera. O enteado, um rapaz cir-

    cunspeto, instalara-se no último quarto, no final do corredor, pas-

    sava pela casa sem olhar para os lados. Nunca falou com ela, se

    pedia alguma coisa, era ao pai. O máximo de tempo que ficavam

    juntos era às refeições e, como não conversavam à mesa, nem

    sabe direito como era a voz dele. Não conversavam à mesa e nem

    11

    em lugar nenhum, ela e o marido. Só se diziam o necessário e não

    era muito, não precisava de nada, o dinheiro regularmente colo-

    cado na gaveta da sua penteadeira era mais que suficiente.

    Depois do jantar, pai e filho se instalavam na varanda, con-

    versavam e riam bem à vontade, como dois velhos amigos.

    Consegue imaginar o tamanho da dor do marido. Cuidou do

    filho dia e noite, pela primeira vez o viu despenteado, os bigodes

    caídos, a barba por fazer. Carregava, ele mesmo, as bacias, os

    lençóis usados, até os urinóis. No final, nem os chinelos calçava.

    Quando o rapaz morreu, os amigos tiveram de obrigá-lo a arru-

    mar-se para o velório, você deve isso a seu filho, vamos, e ele

    recuperou a dignidade, pelo menos na aparência, até que voltou

    do enterro. Arriou-se na cama, chora em silêncio. Ela cuida que

    nada lhe falte, leva ao quarto as bandejas com o café, a almoço, o

    jantar. Ele não toca na comida, traz uma tigela de caldo, um copo

    de laranjada, alegra-se de ver que tomou alguns goles, verifica os

    lenços na mesinha de cabeceira, pensa em tudo de que possa pre-

    cisar e providencia, sempre em silêncio e sem fazer sentir sua

    presença, mais não pode fazer. E quem pode? A pior dor do

    mundo, dizem, quem é ela para lhe estender a mão, para lhe

    olhar nos olhos, ajudá-lo a suportar uma dor que não é dela nem

    jamais será?

    Durante a doença do enteado, precisou se ocupar sozinha do

    abastecimento da casa, faltava tudo na cidade, e de alguns servi-

    ços, a lavadeira sumiu, a cozinheira adoeceu; se não fosse o copei-

    ro, até roupa ia ter de lavar. Felizmente, o sujeito morava lá mes-

    mo, fez as tarefas pesadas e ajudou-a a tratar da cozinheira. A

    mulher se recuperou, já voltara ao fogão e às panelas, ainda meio

    trôpega, mas conseguindo dar conta. Agora, está esta pasmaceira.

    Nada para fazer.

    O nada pesa, como pesa! Faz a gente pensar, vem essa inqui-

    etação inconveniente, não se sabe de onde. Do maldito nada.

    O homem derreado na cama lá no quarto é seu marido, mas é

    como se não fosse. Pior, nunca tenha sido. Pela primeira vez, o vê

    sem os ternos de casimira, os coletes, o colarinho alto, o bigode

    12

    impecável. A figura imponente ao

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