Lembrança de Lorena
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Lembrança de Lorena - Aparecido Klai
João Miguel
Era tarde quando João Miguel fez sua última verificação do dia em suas redes sociais. Comentou publicações de amigos e parentes, leu algumas mensagens sem dedicar muita atenção, exceto uma. Passou alguns instantes refletindo e recordou o dia em que sua mãe deu autorização para ele iniciar um projeto sem muitas pretensões.
Foi só depois de muito insistir que recebeu da mãe, Maria Júlia, os cadernos de anotações do avô Ernani. Algumas histórias contidas ali, ele já conhecia. Lembrava-se do avô contando e recontando esses fatos se apoiando apenas no que a memória preservou. E sua memória era privilegiada. Ele era capaz de desenvolver narrativas longas com início, meio e fim, sempre ricas em detalhes.
Maria Júlia guardava aquelas anotações, desde o falecimento do pai, com muito zelo e temia que se perdessem. Admitiu que o filho transcrevesse tudo para seu notebook, desde que o material não saísse de sua casa, que manuseasse com muito cuidado e não estivesse comendo ou bebendo durante esse manuseio.
O projeto de João Miguel era digitalizar todas aquelas páginas para que os registros do avô não se perdessem ou fossem devorado pelas traças. Se havia algum valor ou utilidade, ele não sabia avaliar. Começou transcrevendo versos de um poeta e não fez alterações nos textos que o avô escreveu.
Ernani nasceu em Lorena, quando a cidade era ainda muito pequena, nos anos cinquenta. Depois das primeiras letras, adquiriu o hábito de escrever sobre tudo o que acontecia consigo, com amigos e conhecidos. A primeira vítima foi o avô Salustiano, com quem conviveu por mais de uma década e possuía uma capacidade narrativa acima da média ou muita vontade de conversar com o neto.
Salustiano era paraibano, de Campina Grande. Viajou para a cidade de São Paulo, depois foi para Lorena com um grupo de mascates e de lá se embrenhou para os lados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais negociando tecidos, panelas, ferramentas e tudo o que pudessem transportar.
Ernani contava que o avô, depois de muita conversa com um comprador endividado e de muita cachaça, trocou os créditos que tinha com aquele cliente por um lote de terra afastado do centro de Lorena e quase sem valor.
Rildo foi o devedor que, segundo Ernani, se aproveitou da bebedeira de Salustiano para fazer dele o proprietário de um pequeno lote vizinho ao seu, naquele novo loteamento da cidade.
Quando Ernani começou a escrever sobre o avô, aquele era o seu primeiro caderno de anotações. Cem páginas grampeadas e escritas a lápis. Letras cursivas, grandes e bem desenhadas. Infelizmente o vocabulário do avô era bastante limitado e os mesmos fatos foram narrados mais de uma vez em épocas diferentes, em cadernos diferentes e até em um mesmo caderno.
Depois daquele vieram outros. Cada novo relato era iniciado com a data em que foi escrito. No final da vida de seu querido ancestral, os fatos registrados preenchiam mais de uma dezena de cadernos. Todos escritos a lápis e nada fora apagado. Palavras escritas erradas nunca foram corrigidas e o mesmo erro de escrita se repetia por toda aquela obra. Pontuações quase não existiam. Eram frases curtas e objetivas, apenas registros de alguém sem nenhuma afinidade com a literatura.
As ideias estavam bem organizadas, embora a pontuação despertasse dúvidas quanto ao sentido de alguma frase. Mesmo assim permitia compreender tudo o que foi escrito. Principalmente para quem conheceu o autor e o imaginava falando em cada um daqueles períodos escritos.
João Miguel também pretendia conhecer os fatos sobre a sua família. Ernani contava que Salustiano viajava muito. Viajou até na semana de seu falecimento. Também buscava mais informações sobre Anthero, seu bisavô, pai de Ernani, de quem ele pouco comentava. Dizia apenas que desaparecera pouco depois da morte do pai.
Tudo ali contido eram histórias que envolviam o passado de sua família. Pensou que estava diante de uma oportunidade que poucos têm, a de conhecer as aventuras e desventuras de seus ancestrais contadas por uma testemunha caprichosa. Entre os acontecimentos que o avô vivenciou e aqueles que ouviu e registrou, estavam reunidas e bem preservadas quase um século de histórias.
Seus irmãos, primos, primas, tios, tias, sobrinhos e sobrinhas também desejavam conhecer melhor a história da família, no entanto não tinham vontade ou tempo para vasculhar mais de mil páginas manuscritas. Mesmo que tivessem essa disponibilidade, ainda teriam de vencer a resistência de Maria Júlia em ceder os cadernos, de modo que todos concluíram que o melhor mesmo era confiar no resumo que João Miguel faria após a transcrição.
Depois que o primeiro caderno foi transcrito, as passagens repetidas excluídas, palavras substituídas e corrigidas, aquelas primeiras cem páginas manuscritas se tornaram apenas dezoito páginas. Manuseou os demais cadernos e percebeu algumas narrativas se repetindo em todos eles. Imaginou que seu avô, depois de escrever, arquivava o caderno preenchido e se esquecia dele.
O avô faleceu com setenta anos, começou a escrever próximo dos dez anos, preencheu dez cadernos de cem páginas cada e deixou o décimo primeiro escrito até o primeiro terço. Concluiu que ele precisava de mais de dez anos para preencher dois cadernos.
Alguns cadernos tinham colados em suas páginas recortes de jornais ou de revistas, de algum fato mais relevante. Eram Copas do Mundo de Futebol, a chegado do homem na Lua, falecimento de pessoas famosas, novo Papa, notas antigas de dinheiro... Um apanhado bastante eclético.
João Miguel fez dessa atividade uma rotina diária. Chegava em casa depois da faculdade, tomava um banho para relaxar, fazia um lanche, abria o notebook, conferia os acontecimentos em suas mídias sociais e nas dos parentes e amigos, depois se dedicava a organizar e digitar as memórias do avô.
Imaginou uma atividade que consumiria muitas horas de seu tempo livre. Contudo, depois de iniciar os trabalhos, percebeu que não demandaria tanto tempo quanto havia imaginado. Animou-se com essa perspectiva e se empenhou para concluir no menor tempo possível.
O que ele nunca imaginou, quando digitou os versos na abertura, foi que essa atividade ampliaria o número de amigos e parentes, o levaria para uma viagem que não pensava em fazer e ajudaria a entender um pouco mais sobre a história familiar. Por último e não menos importante, que fosse o caminho para ele conhecer a futura namorada.
Sempre que se acomodava diante do notebook, antes de começar a digitar, lia uma página ou duas, depois imaginava o avô Ernani se aproximando e contando tudo o que aquelas páginas continham. Digitava ouvindo a voz do avô, com as pausas na fala e o dedo indicador apontando para algum lugar da cidade, toda vez que a cena narrada envolvia um lugar conhecido.
Essa presença do avô parecia ser tão real que, às vezes, eles conversavam. Balbuciava alguma pergunta para Ernani e obtinha resposta, depois verificava no texto manuscrito sem encontrá-la.
Algumas datas onde o avô comentava um acontecimento histórico foram conferidas e nem sempre estavam corretas. Provavelmente Ernani anotava como data do fato a data de uma publicação. Nas páginas em que a publicação estava colada era mais fácil conferir. E esses acontecimentos não eram o que mais lhe interessava, buscava apenas os fatos banais que envolviam sua família. Em dado momento chegou mesmo a concluir que era um fofoqueiro informatizado.
Vez por outra recebia o telefonema de um parente mais próximo perguntando sobre o andamento daquele trabalho. Ele atualizava, falava sobre algum detalhe particular de um fato que estava lendo, trocavam algumas informações, ouvia versões diferentes do mesmo fato, ignorava e se mantinha fiel ao que estava lendo.
Muitas vezes sonhava com