Mesa Para Três
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Mesa Para Três - Pedro Leitão Magyar
O chef e seu restaurante
Era um talk show, desses muito vistos por aí. O entrevistado era o Chef Tamuz, um letrado na arte da cozinha o qual prometia a melhor culinária do Oriente Médio, nunca vista! Nascido e criado na região, era um sujeito alto, com cabelos e barba grisalhos e olhos claros, apresentando uma experiência ímpar, segundo sua fala, de como fazer a melhor comida árabe
do mundo. Sim... ele exclamava que era a melhor do mundo!
Recém-chegado à capital paulista, tratou de buscar um imóvel na região mais badalada de restaurantes, junto daqueles mais famosos por sua gastronomia peculiar e seu preço alto cobrado pela experiência de aguçar as papilas gustativas com sabores indescritíveis. Restaurantes que possuem árvore em seu centro, maitres estrangeiros, chefs das mais variadas regiões do planeta e, acima de tudo, a frequência de pessoas que apreciam uma boa comida e o status de estar em tais lugares.
O entrevistador logo questiona:
- Devo fazer a entrevista em árabe, farsi, turco ou algum outro dialeto?
Com um sorriso de orelha a orelha, ele responde com vigor:
- Nada disso, eu falo português, a língua de vocês. Não teremos problemas com isso!
E segue a entrevista:
- Que maravilha! E como fala português se você nasceu e foi criado no Oriente Médio e só veio para cá agora? Você estudou? Tem parentes brasileiros ou portugueses?
- Tenho muita facilidade, falo línguas, das mais diversas!
Dali em diante ficou claro que o chef trazia à cidade uma nova cultura culinária, sendo os pratos desenvolvidos com segredos que ele mesmo nutria, como molhos, recheios, tipo de forno e a forma de se fazer as massas que iriam para o estômago de seus clientes.
Quando o entrevistador questiona sobre seus segredos culinários, ele apenas ressalta que segredos só são segredos quando não são revelados, sendo eles que fazem toda a diferença e incrementam todo o sabor. Se não fosse isso, ele não poderia apresentar o melhor do oriente médio, ao mundo!
Questionado sobre o espaço físico do restaurante, ele explicou que o melhor ambiente é aquele que possui apenas a área térrea uma vez que andares poderiam gerar certo desconforto nos clientes e a comida servida, no caminho, sofreria um resfriamento fazendo com que o sabor se esvaísse, se tornando algo padrão e não especial.
Ele prezou pelo intimismo e o conforto do local, com mesas espaçadas e um ambiente que rememorava a arquitetura e decoração típicas do oriente médio. Mosaicos, cores, panos, desenhos e tudo o mais que levasse os clientes à uma imersão na cultura artística da região. Nada de referências ou fotos às cidades que compõe o Oriente Médio, mas apenas objetos, detalhes e cores, principalmente as mesas de cedro fenício. Se vê uma vegetação típica, disposta de forma a rememorar o grande jardim suspenso, o qual fora uma das sete maravilhas do mundo antigo e se perdeu na história.
Os telespectadores devem ter ficado deslumbrados com tudo o que viram, realmente era a comprovação de esmero e dedicação para a abertura de um restaurante sui generis na capital paulista. Ele concorreria em igualdade de forças com todos os outros, principalmente pelos segredos culinários.
A inauguração se daria em uma data peculiar, vinte e cinco de dezembro, em pleno feriado natalício. Questionado sobre isso, o chef, com outro sorriso largo, diz que é a melhor data para que se comemorasse a abertura de um novo restaurante, pois esse dia representa nascimento e transformação. Inclusive, por coincidência, era aniversário dele, e gostaria de se dar esse presente, a abertura da casa de comida!
Perguntado sobre sua vida pretérita, contou que estudou a arte da agropecuária e biologia, conhecendo bem o manejo de rebanhos e tudo sobre vegetação. Que ama tais assuntos e que fortaleceu sua culinária, sendo que o conhecimento ajuda no desenvolvimento de seus segredos da cozinha. Relatou que viu os horrores de diversos conflitos, até os mais antigos, e que toma isso como uma lição para entender melhor o ser humano e o que move seus desejos, fazendo com que entenda, também, qual o limite para uma boa comida, afinal, existem paladares e paladares mundo a fora.
Falou muito pouco sobre seus parentes e contou sobre seu grande amor, Ísis, que conheceu em uma viagem às pirâmides. Tendo em vista que ela já era comprometida, não poderia nutrir um relacionamento de qualquer tipo, pois, poderia ser punido severamente. Perguntado sobre o que ele não gostava de comer, esclareceu que de modo algum comia carne de javali, lhe gerava muito mal-estar. E, logicamente, na culinária própria, que praticava, o javali era proibido, afinal, por que o faria se lhe gerava sentimentos ruins?
A entrevista durou aproximadamente uma hora, e o entrevistador estava muito entretido e curioso pela forma com que Tamuz colocava suas opiniões e visão de mundo, demonstrando muita experiência e vivência nos assuntos, quaisquer que fossem. Questionado sobre a idade, o chef diz que esse é um tópico que não fala, é algo muito pessoal, mas que sua aparência não poderia ser indicativa de nada. Quem tentasse descobrir pela forma física, erraria com certeza.
Contou muito sobre suas viagens e as experiências que trazia consigo, mostrando que conhecia, pelo menos, algum país de cada continente, inclusive das Américas, passando pelo Uruguai e Argentina. Pediu desculpas por nunca ter vindo para o Brasil, mas que a estada dele e a inauguração do restaurante significavam muito sobre sua relação com o país. O apresentador caminhou ao fim da entrevista e, por último, quando ia anunciar o restaurante, questionou:
- Bem, para eu chamar as pessoas, preciso saber o nome do restaurante. Qual é?
Com outro sorriso, mais profundo, diz o entrevistado:
- É o Ziqqurat, com dois quês
e o tê
mudo!
- E o que significa?
- O significado, em português, é zigurate.
- O que é um zigurate?
- É o nome dado aos templos mesopotâmicos, existentes na antiguidade. A proposta é um templo de comidas do Oriente Médio, por isso a escolha!
Então o apresentador convida os telespectadores para que visitem o restaurante, ressaltando a data de inauguração, vinte e cinco de dezembro, e que provem a melhor comida do Oriente Médio, no mundo! Encerra pedindo a Tamuz para visitar o local, o que foi assentido. Dali, faltavam pouco mais de trinta dias para a inauguração.
A presença no programa televisivo resultou em uma enxurrada de telefonemas, dos mais diversos meios de comunicação, sempre buscando uma entrevista e uma demonstração de sua culinária. Ele sempre dizia que a entrevista ele poderia conceder, porém, amostra de culinária não seria possível, somente após a inauguração efetiva de seu templo da comida.
Daí em diante, sua foto foi estampada nos mais diversos jornais e revistas, com uma presença elevada nas mídias de internet e televisiva. Aquela entrevista catapultou sua imagem na capital, fazendo com que as reservas para o dia vinte e cinco de dezembro se esgotassem em apenas uma hora. Os críticos midiáticos cobravam dele uma data específica para que pudessem estar, todos juntos, no restaurante provando o melhor sabor do mundo e escrevendo sobre as façanhas da culinária que ele trazia ao país, com um diferencial, os segredos que só o chef sabia. Ele não quedou em marcar uma data específica, dia vinte e seis de dezembro, logo após a inauguração.
E por mais que essa exposição possa encher o ego de pessoas, tal situação não alterou os sentimentos de Tamuz, não demonstrando qualquer prepotência, egoísmo ou supervalorização de sua culinária. Pelo contrário, ele continuou sendo uma pessoa com hábitos simples e atencioso com todos os que o procuravam para provar as iguarias que suas mãos faziam com maestria.
As reservas do Ziqqurat já estavam cheias até o mês de fevereiro do ano seguinte, após a inauguração e isso era motivo de muito contentamento para ele. Em uma das entrevistas concedidas, a um grande jornal, disse que quanto mais clientes, melhor a comida ficaria sendo a frequência que iria determinar o quanto dos segredos seriam aplicados no cozimento de seus pratos.
Obviamente que a projeção alcançada gerou dúvidas em relação à sua situação no país, ele era estrangeiro. E tal se deu, principalmente, em relação ao fisco, que foi verificar se havia constituído uma empresa e em que condição foi feito, mais especificamente em relação ao Cadastro de Pessoa Física (CPF), documento obrigatório para se fazer qualquer negócio e se empreender no país.
Tudo devidamente verificado, e certificado, não havia nada que gerasse qualquer problema em relação à inauguração e a continuidade das atividades, que nem se iniciaram, do restaurante. O chef estava regular perante a autoridade fiscal nacional, podendo exercer seu ofício sem qualquer problema. A mesma situação se deu na esfera municipal, com uma fiscalização ao local e constatação de que tudo estava dentro das normas apregoadas pela lei sanitária.
O chef tinha como nome de batismo دوموزید چوپان. Nos documentos nacionais, a grafia necessária é o alfabeto romano, sendo grafado Dumu-zid Shaban. Só que a alcunha que foi fixada é Chef Tamuz, sem por nem tirar, sendo essa a forma pela qual se referiam a ele, sempre! Pouco importava o prenome e nome, o que era levado em conta era o título que ficaria conhecido no meio culinário.
Estava tudo devidamente arrumado e preparado para a abertura do restaurante, inclusive com a contratação de funcionários e funcionárias diversas, todos sendo treinados pelo próprio. Como maitre, que teria funções de organização do estabelecimento, foi escalada sua irmã, carinhosamente chamada de Guest por ele.
Ela estava ao seu lado desde sempre, acompanhando-o por onde fosse. As referências feitas à moça, nas entrevistas, eram sempre as melhores, demonstrando que se davam muito bem, sem rusgas, e que, de alguma forma, segundo palavras do próprio chef, era sua protetora.
Guest foi quem ajudou no treino dos funcionários e funcionárias, mostrando como as coisas deveriam acontecer, principalmente na inauguração do restaurante, sempre visando à conquista dos diversos paladares. Quando percebia que o candidato ou candidata à vaga não conseguiria dar conta, ela dispensava e buscava outro. Assim, se percebia que era necessário, para ela, um alto nível de qualificação de atendimento e comportamento, caso contrário, não pensava duas vezes em dispensar o, ou a, pretendente à função.
Nas entrevistas midiáticas, quando se fazia referência à maitre, o primeiro questionamento era de como ela lidaria com o público por conta da língua. A resposta era a mesma, a irmã também tem habilidade de falar línguas, então isso não seria um problema. Transparecia para os entrevistadores que eles tinham um dom inato de aprendizado do português, gerando uma desconfiança de que ambos escondiam alguma informação sobre suas origens ou familiaridade com brasileiros ou portugueses, afinal, o jargão pátrio é um dos mais difíceis de se aprender no mundo. Não para eles, que estavam isentos de qualquer sotaque ou arrasto na fala, sendo as flexões e conjugações escorreitas, como se nativos fossem.
A partir dessa alavancagem midiática, só restava fazer os preparativos finais e aguardar a data de inauguração, para realmente se saborear a melhor comida do Oriente Médio, no mundo!
O Delegado
Alexandre usa a gravata e o colarinho com folga, mas nunca renuncia ao terno completo, com um corte fino. Sempre fazendo uso de tons sóbrios e escuros, transmite uma imagem séria e sensata, não esboçando sorrisos com muita frequência. A vida sempre lhe mostrou o que havia de ruim, principalmente quando se tratava de questões relacionadas às milhares de investigações sobre seu comando.
Pessoa de meia idade, olhos e cabelos castanhos, com um físico atlético, se dedicava a extravasar toda a carga do trabalho nos exercícios, como forma de sublimar tudo aquilo que lhe poderia gerar qualquer incômodo ou tormento. É algo que funciona, pois, ele se sente muito bem em relação à sua profissão, não apresentando qualquer variação psíquica advinda dela.
Objetivo e focado em seu ofício, dando tudo de si para que sua atuação possa ser positiva e resolutiva, abdicou de uma vida familiar, por opção, na medida em que a dedicação à prole poderia gerar déficit em sua atuação como autoridade policial. Possui uma parceira, companheira, que também não tem como objetivo a constituição de família, querendo apenas uma vida em comum de trocas.
Fumante contumaz, não bebe nenhuma gota de álcool, possuindo hábitos simples. Ele tem um interesse próprio por culinária e pelos diversos tipos de restaurante que podem oferecer experiências únicas com diversos pratos. Conhecedor profundo, entendia de cozinha nacional e estrangeira, sendo um verdadeiro hobby em sua vida.
Ele não poderia deixar de ler e ver sobre o Ziqqurat, principalmente porque a culinária do oriente é uma das que mais gosta, quiçá, a preferida. Ficou curioso, principalmente por conta da projeção que o Chef Tamuz ganhou na mídia, com a venda da melhor comida do Oriente Médio no mundo. Porém, a curiosidade não era nada que lhe chamasse muito a atenção, sendo conhecedor de como funciona o mercado, entendeu que aquilo seria apenas marketing e, talvez, não visse qualquer diferença em relação a tantos outros restaurantes do mesmo estilo.
Lotado na delegacia de pessoas desaparecidas, é encarregado da equipe que cuida dos atos passados na zona oeste da cidade. Um trabalho hercúleo, diante do plantel reduzido que lidera. Ele, dois investigadores e um escrivão têm que lidar com milhares de inquéritos policiais iniciados por conta de comunicação sobre desaparecimentos acontecidos em todos os bairros que compõe a região em que atua.
Até aquele mês, dezembro, no Estado, haviam desaparecidas pouco mais de dezoito mil pessoas. Na zona oeste da capital paulista, eram contabilizados pouco mais de dois mil desaparecimentos, todos sob a investigação de Alexandre.
O trabalho desenvolvido é árduo, a investigação deve se centrar em comportamentos e contatos do desaparecido ou desaparecida e, muitas vezes, familiares, amigos e amigas não possuem as informações necessárias para incrementar as buscas e chegar a uma conclusão de encontro. Não há como se saber sobre hábitos de pessoas que não estão ali para relatarem, dependendo da visão de terceiros, as quais, nem sempre, são fidedignas.
Muito dos inquéritos eram encerrados com sucesso, promovendo o encontro e o reencontro com as famílias. Porém, o percurso envolve muita investigação, além da dor e sofrimento de familiares, amigas e amigos, pois, a desinformação sobre o paradeiro gera marcas indeléveis, sendo, para muitos, pior que o conhecimento de uma morte.
Sempre reservado, nunca dá declarações sobre as investigações em andamento entendendo que isso pode prejudicar o trabalho desenvolvido. Quando conclui com sucesso, ele não faz questão alguma de aparecer e ficar recebendo as congratulações. Simplesmente entende que não fez mais que sua obrigação, deixando que seu chefe apareça e fique com os louros da façanha. Ele quer apenas trabalhar, somente isso! Diz à equipe que, caso queiram aparecer e ficar com os créditos, que o façam, ele não tem a mínima pretensão de ter holofote algum.
Um caso em particular, passados dois anos ainda lhe remói a espinha, de uma criança que desapareceu sem rastro ou imagem de câmeras que poderiam indicar qualquer situação ou uma ponta inicial para a investigação. O que mais lhe chamava a atenção era o comportamento do pai e mãe, diante da situação, os quais se resignaram com uma rapidez peculiar. O outro ponto chave foi a evolução patrimonial e financeira do casal, após o sumiço, que despertou muita estranheza por parte do delegado.
Até hoje, por conta, tenta entender e desvendar o mistério que envolve esse sumiço. Nunca se submeteu ao arquivamento proposto pelo Ministério Público e acatado pela Vara