Contos Incômodos
De Lino Porto
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Contos Incômodos - Lino Porto
CONTOS INCÔMODOS
CONTOS INCÔMODOS
– Contos em diminuendo –
Lino Porto,
Escritos entre 1983 e 2013.
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Apoio: Clube de Autores
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Índices para catálogo sistemático:
1. Contos : Literatura brasileira B869.3
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Coisa engraçada é a vida, misterioso arranjo de lógica implacável para um propósito fútil. O máximo que você pode esperar dela é algum conhecimento de si próprio... que chega tarde demais... uma colheita de inesgotáveis arrependimentos
.
(Joseph Conrad, No Coração das Trevas)
SUMÁRIO
QUEM ERA ELA, AFINAL?
A TOP QUE NÃO QUERIA ALCANÇAR O TOPO
ESTÁ CHEGANDO A HORA
AMARELO FILHO DE PROSTITUTA
NO RITMO DO VENDAVAL
A FÁBULA DE WILLIAM E BEATRICE
O POETA E OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS
BUCHADA DE BODE PARA TODOS
ELE SÓ NÃO QUERIA USAR GRAVATA
MISS BRASIL 2001
O BÊBADO E O PASTOR
PEiDOFILIA
ANOS JB
O PAÍS FRUSTRADO E PROSTRADO
A GREVE
O VAZIO
ESTUPRO, ESTRUPO E ESTUPOR
O POETA E OS ENGENHEIROS
PARÁBOLAS MELODRAMÁTICAS PARA LACÔNICOS FATOS SURREAIS
A QUEDA PARA CIMA
CONTO NADA
O CACHORRO, O MENDIGO E A MADAME
O CARA
A ORQUESTRA DE PEDRAS
NO ALVO
PÁSSARO ÍNTIMO
PÁSSARO IDO
O POETA NO LIMBO
AVE POLIGLOTA
COCÔS
SIGNOS
QUEM ERA ELA, AFINAL?
Ele acabara de completar dezoito anos quando iniciou a faculdade na capital, sonho de sua família, duramente conquistado após muito estudo e dedicação. Era a primeira vez que deixava em definitivo a pequena cidade do interior em que cresceu. Tudo agora lhe parecia novo, grande, diferente. No mundo restrito em que vivia, as coisas corriam de certo modo lentas e previsíveis, sem grandes sobressaltos ou surpresas. Ali, não. Florianópolis era então, para ele, grande e inusitada, um universo inteiro a ser explorado. Além desse background provinciano, havia também a adolescência que se ia - embora não ainda os seus hormônios - e o início da sub-reptícia seriedade da juventude, a busca por uma formação universitária, uma carreira profissional em decorrência do diploma por obter e, mais tarde, a obrigação de adquirir patrimônio (casa, carro, móveis etc.) e de constituir família, ainda que nada disso estivesse absolutamente claro em sua mente. Era-lhe um futuro ainda obscurecido pelos desejos mais físicos do presente.
Conseguiu vaga em uma quitinete no centro, dividida com quatro outros rapazes vindos também do interior, todos certamente com o mesmo espírito e os mesmos ideais de emancipação, além da vontade incontrolável de aproveitar a inédita e tão sonhada liberdade de viver em uma cidade maior, longe dos grilhões
familiares e da vigilância de suas pequenas localidades. Essa era, em linhas gerais, a atmosfera que lhe cercava naquele começo dos anos oitenta.
No início de seu curso, ainda que um tanto falante e aparentemente desembaraçado, parecia aos colegas apenas um rapaz temeroso, quase amedrontado, ou que tentava escamotear o seu medo diante do desconhecido que lhe acenava mais com obrigações do que com prazeres. Custara a fazer amigos, embora no interior também não os tivesse em grande número. Viver em uma pequena cidade aproxima fisicamente as pessoas, mas nem sempre espiritualmente, pela falta de afinidades e pela baixa amplitude de opções. Esse seu perfil desconfiado dificultou as suas iniciativas, levando-o a uma solidão até então estranha a ele: havia agora muita mais gente ao seu redor, mas ninguém com quem pudesse falar amiúde, mais espontaneamente ou com mais profundidade sobre seus planos e sonhos de vida. A superficialidade reinante agora lhe atormentava, ainda que essa solidão fosse permanentemente rodeada por pessoas, e pessoas jovens como ele, mas ainda assim estranhas. Em cidade grande, as amizades deveriam ser uma questão de escolha voluntária, de dentro para fora, ainda que possam restringir-se à faculdade e ao trabalho, diferentemente do interior, onde as possibilidades são numericamente mais restritas e aceita-se com passividade o pouco que a vida acaba por oferecer. Porém, não era nada disso o que ele percebia na solidão prática que ora experimentava.
Agravava-se, em seu caso, além de seu jeito levemente medroso, arredio, os poucos atrativos que possuía, exceto algum lustro intelectual muito incipiente, tudo a dificultar-lhe a rápida conquista de amigos e, mais ainda, de amigas. E, menos ainda, de paqueras ou namoradas.
***
Até surgir Débora, colega de curso que nas primeiras aulas sentara-se ao seu lado, timidamente às vezes lhe dando um oi
ou lhe sorrindo. Sorrira de forma encantadora, parecendo um tanto encabulada, mas aparentando segurança, ou mesmo alguma indiferença. Um sorriso econômico, pouco mostrando seus dentes pequenos e branquinhos, em contraste com a tez tendendo à morena. Um sorriso que se mostrava sincero. Um sorriso, finalmente, amigo.
Aos poucos, mesmo a timidez ainda reinante, foram se conhecendo, nos intervalos de aula ou na fila do ônibus que tomavam juntos. Ela nascera ali mesmo, em Florianópolis, e sempre morara no continente com os pais. Moça simples, de sua mesma idade, até do mesmo signo, uma das afinidades que logo observaram. Falava pouco e ouvia muito, sempre com sincera atenção, como se lhe estudasse. Pela primeira vez percebeu que alguém se interessava pelo que ele dizia, ainda que fossem suas piadas meio sem graça. Ela não só prestava atenção ao que ele dizia, como muitas vezes pronunciava o seu nome, o que, notara ele, era algo absolutamente inédito em sua vida. Lembrava-se de que quase nunca ouvia seu próprio nome ser mencionado por um interlocutor, fosse quem fosse, ainda mais da maneira suave que sua nova amiga lhe devotava. Ela lhe perguntava educadamente sobre sua origem, sua família, suas preferências as mais gerais e outras coisas aparentemente desimportantes. A forma como o tratava, mais do que o conteúdo, era o que lhe fazia despertar a admiração por aquela garota tão diferente de todas com quem já havia conversado.
Ainda um pouco receoso e, às vezes, egocêntrico, ele respondia de modo um tanto monossilábico a todas as pequenas questões que Débora lhe dirigia docemente. À medida que foi sentindo confiança nela, pouco a pouco afrouxou suas rédeas interiores. Contudo, embora bastante curioso a respeito daquela moça tão diferente, parecia faltar-lhe coragem para devolver a ela as mesmas tradicionais perguntas de começo de amizade: de onde és, como é a tua família, qual o nome do teu cachorro, por qual time torces e, afinal, quem tu és. Assim, enquanto já muito sabia sobre ele, ela mantinha ainda um certo mistério sobre si.
Com os demais colegas de faculdade e serviço a coisa permanecia apenas protocolar, usual, resumindo-se a conversas rasas sobre atualidades esportivas e políticas. Um coleguismo, jamais uma amizade. Ainda que não tivesse confessado a ela nada de profundo, e muito menos Débora a ele, ambos iam se mostrando reciprocamente mais e mais confiantes e confidentes. É provável que, analisando-se agora com o olho no retrovisor do tempo, ele tenha ali começado a apaixonar-se pela amiga, embora relutasse em admitir tal fato, não só porque seu coração ainda batia por outra garota – uma moça de sua cidade que mal sabia de sua existência, parecendo mais uma cisma do que uma paixão –, mas porque Débora lhe parecia notoriamente delicada e ao mesmo tempo segura de si, soando-lhe inacessível, muito além até mesmo de suas fantasias mais excêntricas. Afora isso, logo ela viria a desapontá-lo
ao, certa feita, gentilmente recusar-se a ir com ele de ônibus até o centro da cidade, o que já lhes costumava ser frequente.
– Não querido,