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Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna
Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna
Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna
E-book592 páginas7 horas

Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna

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Sobre este e-book

A morte com dignidade é um dos temas mais controversos em qualquer sociedade democrática e plural. De fato, a morte ainda é um tabu na generalidade das sociedades civilizadas, pelo que os médicos e outros profissionais de saúde não estão devidamente preparados para lidar com o fenômeno da inevitabilidade da morte. Mas é essencial abordar esta problemática sem qualquer reserva de natureza intelectual e com o objetivo último de proporcionar ao doente, na termi­nalidade da vida, paz interior e dignidade pessoal. E esta obra – Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a uma Morte Digna – contribui deci­sivamente para este debate e, sobretudo, para a construção de uma sociedade mais justa, mais participada e mais inclusiva. In prefácio de Rui Nunes.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2018
ISBN9788584933549
Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna

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    Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a Morte Digna - Adriano Marteleto Godinho

    Tratado Brasileiro sobre

    Direito Fundamental à

    Morte Digna

    2017

    Adriano Marteleto Godinho

    George Salomão Leite

    Luciana Dadalto

    logoAlmedina

    TRATADO BRASILEIRO SOBRE DIREITO FUNDAMENTAL À MORTE DIGNA

    © Almedina, 2017

    COORDENADORES: Adriano Marteleto Godinho, George Salomão Leite, Luciana Dadalto

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: FBA

    ISBN: 978-85-8493-354-9

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Tratado brasileiro sobre direito fundamental à morte digna / [coordenadores]

    Adriano Marteleto Godinho, George Salomão Leite, Luciana

    Dadalto. -- São Paulo : Almedina, 2017.

    Outros autores.

    ISBN: 978-85-8493-354-9

    1. Dignidade 2. Direito comparado

    3. Direito de morrer 4. Direitos fundamentais 5. Eutanásia

    6. Suicídio I. Godinho, Adriano Marteleto.

    II. Leite, George Salomão. III. Dadalto, Luciana.

    17-03430        CDU-347.121.1


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Morte digna : Direitos fundamentais 347.121.1

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Abril, 2017

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    APRESENTAÇÃO

    A morte com dignidade é um dos temas mais controversos em qualquer sociedade democrática e plural. De fato, a morte ainda é um tabu na generalidade das sociedades civilizadas, pelo que os médicos e outros profissionais de saúde não estão devidamente preparados para lidar com o fenómeno da inevitabilidade da morte. Mas é essencial abordar esta problemática sem qualquer reserva de natureza intelectual e com o objetivo último de proporcionar ao doente, na terminalidade da vida, paz interior e dignidade pessoal.

    Por isso é com especial agrado e natural satisfação que efetuo a apresentação de esta obra – Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a uma Morte Digna – coordenada por Adriano Marteleto Godinho, George Salomão Leite e Luciana Dadalto. Especialistas de reconhecido mérito neste domínio que se debruçam de um modo estruturado e coerente sobre os fundamentos ético-jurídicos de uma morte digna.

    Mas falar de morte com dignidade, seja na ética ou no direito, implica em primeiro lugar uma clarificação concetual. Porque, em boa verdade morte digna é uma realidade passível de distintas apreciações tanto na linguagem mais fluida da ética como na perspetiva mais hermética do direito. E havendo hoje um consenso internacional alargado, pelo menos na medicina, sobre a licitude de determinadas intervenções médicas em fim de vida – tal como a ortotanásia, a suspensão ou abstenção de tratamentos desproporcionados, as ordens de não reanimar ou mesmo sobre a importância do testamento vital e de outras diretivas antecipadas de vontade – persiste a dúvida sobre o real valor da vida humana e sobe o seu caráter sagrado e inviolável.

    Por isso, este tratado é uma referência obrigatória no espaço da lusofonia para todos aqueles que quiserem efetuar uma análise objetiva sobre o tema da morte com dignidade. Mais do que defender uma causa em concreto, o Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a uma Morte Digna pretende contribuir para o esclarecimento da verdade no quadro de um pluralismo de opiniões, que é a marca genética de uma sociedade verdadeiramente livre.

    De uma forma lúcida e inteligente este livro inicia com um capítulo dedicado ao tema da bioética constitucional, e ainda bem. Enquadrar a morte digna na bioética e esta nos princípios constitucionais é, a meu ver, a forma certa de colocar a questão num Estado de Direito Democrático, onde a Constituição representa o núcleo fundamental de valores que dever ser preservado e garantido a todos, sem exceção. Seguidamente a obra discorre sobre a problemática da judicialização da saúde e do recurso aos tribunais como último garante do exercício de direitos fundamentais, nomeadamente no contexto da morte assistida. Sem esquecer a profunda transformação sociodemográfica verificada nas últimas décadas e o sobrepeso que o envelhecimento coloca em qualquer sociedade contemporânea. E o Brasil não é exceção.

    Finalmente mergulha-se no centro nevrálgico da obra. O direito a morrer com dignidade, a eutanásia, a ortotanásia, a distanásia, a mistanásia, o suicídio assistido, são aprofundados no plano do direito brasileiro mas, igualmente, na ótica do direito comparado, evocando algumas experiências internacionais. Que enriquecem o debate e permitem verificar que apesar da globalização cultural existirão sempre diferenças regionais assinaláveis.

    E não restam dúvidas de que a morte medicamente assistida, seja na forma de eutanásia ativa voluntária, seja de suicídio assistido, será sempre um tema fraturante em qualquer sociedade livre e democrática.

    Pelo que a par de um cabal esclarecimento da sociedade – afinal o grande contributo de esta obra – importa também refletir sobre o modo como a população pode, e deve, ser envolvida no processo de decisão. É certo que a deliberação democrática, em bioética e direitos humanos, exige elevados níveis de cidadania para que cada cidadão cumpra com as suas responsabilidades ao ser convocado para decidir sobre o seu futuro. Por isso defendo que a eutanásia é um tema suficientemente complexo para exigir que a fonte de legitimidade para a sua legalização passe pela realização um referendo nacional. De facto, o debate social e político em torno da eutanásia origina uma acesa controvérsia num diálogo nem sempre construtivo em torno do conceito de morte com dignidade. Progressivamente, porém, assiste-se a uma crescente aceitação de esta prática quer pela classe médica quer pela população em geral. Mais ainda, em doenças incuráveis e terminais tem-se questionado se este direito à autodeterminação é ilimitado, nomeadamente no atinente ao pedido para terminar a própria vida, ou se existem fronteiras que não devem ser ultrapassadas. Deve realçar-se que o conceito de eutanásia internacionalmente reconhecido se reporta à morte intencional de um doente, a seu pedido – firme e consistente – através da intervenção direta de um profissional de saúde.

    Para além da reflexão ética, questão distinta reporta-se à legalização/ despenalização da morte medicamente assistida. Nomeadamente face aos constrangimentos sociais e económicos existentes e às enormes carências existentes no que se refere ao acesso a cuidados paliativos, ou seja cuidados globais que se prestam aos doentes cuja afeção não responde ao tratamento curativo. Importa portanto que a despenalização da eutanásia não seja nunca uma solução para problemas sociais e económicos ou mesmo de deficiente organização do sistema de saúde.

    Em síntese é fundamental promover um debate sério e participado sobre a legitimidade da eutanásia e de outras formas de morte medicamente assistida no plano ético/social, bem como sobre a necessidade de legislar nesta matéria. Designadamente deve garantir-se uma clara distinção entre eutanásia voluntária e eutanásia involuntária.

    E esta obra – Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental a uma Morte Digna – contribui decisivamente para este debate e, sobretudo, para a construção de uma sociedade mais justa, mais participada e mais inclusiva.

    Rui Nunes

    Professor Catedrático da Universidade do Porto

    PREFÁCIO

    A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III, C.R.) não há de ser encarada como mera opção topográfica do Constituinte. Ao reverso, sua posição privilegiada no ordenamento é indicativa de sua força normativa e de seu destacado papel, como vetor axiológico, na conformação do conteúdo dos demais direitos fundamentais que informam e norteiam a totalidade do ordenamento. A questão adquire contornos sensíveis – e por vezes dramáticos – quando o respeito à dignidade impõe relativizar direitos voltados à tutela de bens jurídicos de grande relevância, notadamente o direito à vida.¹

    Nos casos extremos, a tutela da dignidade pode suscitar verdadeiro direito à morte digna, garantindo-se à pessoa autonomia para recusar previamente determinados tratamentos voltados ao prolongamento temporário da existência biológica. Desse modo, nas situações em que as chances de cura são insignificantes ou altamente remotas, a tutela da dignidade da pessoa humana poderia sobrepor-se ao direito à vida. Nessa direção, haveria hipóteses em que a invocação do direito à vida representaria duro golpe à própria pessoa a quem se destinaria a tutela, forçando-a a permanecer, contra seu interesse, em estado indigno. A acentuada vulnerabilidade presente nos casos em que se antagonizam dignidade e vida demanda sensibilidade do intérprete para não descurar da imprescindível tutela da pessoa no dramático momento em que a pretensa preservação da vida pode se transfigurar em grave violação à dignidade.²

    Em apertada síntese, eis um dos aspectos, da maior relevância e atualidade, a cujo exame propõe-se esta obra em boa hora organizada, com perspicácia, pelos eminentes Professores Adriano Marteleto Godinho, George Salomão Leite e Luciana Dadalto. O comprometimento com que os organizadores se lançaram a esta desafiante empreitada, reunindo, em uma única obra, conceituados estudiosos do tema em diversos ramos do Direito, reflete-se na acuidade científica com que são tratadas as matérias que compõem este trabalho.

    Com efeito, os 12 capítulos que se seguem reservam ao leitor denso conteúdo acerca dos mais expressivos problemas relacionados ao direito à morte digna. Principia-se, nos cinco primeiros capítulos, pela análise metodológica que permite extrair, da tábua axiológica constitucional, o substrato teórico da tutela da dignidade. Em seguida, nos capítulos 6, 7, 8, 9 e 10, adentra-se nas questões que, provocando rica reflexão, direcionam o estudo específico do tema, como a eutanásia, a ortotanásia, a distanásia, a mistanásia e o suicídio assistido. No capítulo 11, dividido didaticamente em três tópicos, propõe-se a análise de casos emblemáticos no direito comparado, permitindo ao leitor angariar ao seu capital cultural também a experiência estrangeira em torno do tema. Por fim, no capítulo 12, conclui-se, no desenlace da obra, com a preciosa contribuição do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, ao analisar, como aspecto fundamental ao exercício do direito à morte digna, o consentimento informado.

    Trata-se de produção de fôlego, bem-sucedida em sua proposta de análise profunda, multifacetada e abrangente do direito à morte digna. A perspectiva crítica, a dinamicidade e a contemporaneidade com que os autores se dedicaram ao estudo dos intrincados temas relacionados à morte digna permitirão ao leitor constituir base segura, sólida e instigante para a temática em seu todo, além de aguçar o olhar da comunidade jurídica para a investigação das repercussões da dignidade da pessoa humana na tutela da vida e da morte, no momento em que a finitude se aproxima de forma inevitável. Espera-se que, ao fim, possa o leitor concluir, com Norberto Bobbio: Que nos seja permitido viver enquanto as lembranças não nos abandonarem e enquanto, de nossa parte, pudermos nos entregar a elas.³

    Gustavo Tepedino

    -

    ¹ Como já se teve oportunidade de afirmar: se algo deve ser tido por indisponível e absoluto no contexto constitucional não é a vida (art. 5º), mas a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Mesmo em não se reconhecendo, consoante o entendimento majoritário entre os constitucionalistas brasileiros, hierarquia normativa entre os dispositivos do Texto Maior, seguramente ostenta a dignidade humana, fundamento da República, superioridade axiológica frente a outros interesses reconhecidos pelo Constituinte como merecedores de tutela. É a dignidade da pessoa humana, e não a vida, a diretriz suprema da legalidade constitucional (Gustavo Tepedino; Anderson Schreiber, O extremo da vida: eutanásia, accanimento terapeutico e dignidade humana, Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, v. 39, 2009, p. 9).

    ² No tocante relato autobiográfico de Norberto Bobbio, vale a reflexão acerca do drama da velhice: "Um médico contava-me que se viu um dia entre doentes que falavam sobre a velhice e que, como é natural, se lamentavam. Mas um deles interveio: – Não é que a velhice seja ruim. O problema é que dura pouco. Será mesmo que dura pouco? Para muitos velhos doentes, e que não são capazes de se sustentar, dura, ao contrário, muito! Quem vive rodeado de velhos sabe que para muitos deles a idade avançada tornou-se – graças também aos progressos da medicina, a qual, muitas vezes, nem tanto nos faz viver quanto nos impede de morrer – uma longa, e não raro impaciente, espera pela morte. Nem tanto um continuar a viver, mas um não poder morrer. Dario Bellezza escreveu: ‘Fugace è la giovinezza/ un soffio la maturità/ avanza tremenda/ vecchiaia e dura/ una eternità’" (O tempo da memória: De Senectude e outros escritos autobiográficos, tradução Daniela Versiani, Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 25).

    ³ Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos. Além dos afetos que alimentamos, a nossa riqueza são os pensamentos que pensamos, as ações que cumprimos, as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião. Que nos seja permitido viver enquanto as lembranças não nos abandonarem e enquanto, de nossa parte, pudermos nos entregar a elas (Norberto Bobbio, cit., p. 30).

    SUMÁRIO

    Introdução

    Camilla Appel

    Capítulo 1 – Bioética Constitucional

    George Salomão Leite

    Capítulo 2 – A Efetividade dos Direitos Fundamentais no Brasil: Entre Judicialização da Política e Ativismo Judicial – a Morte Digna como Resposta Adequada à Constituição

    Lenio Luiz Streck

    Capítulo 3 – Proteção Jurídica da Pessoa Humana e o Direito à Morte Digna

    Flávia Piovesan

    Roberto Dias

    Capítulo 4 – Aceitação, Adaptação, Esperança: As Coordenadas Fundamentais do Envelhecimento

    José de Oliveira Ascensão

    Capítulo 5 – O Direito de Morrer com Dignidade

    Nehemias Domingos de Melo

    Capítulo 6 – Eutanásia

    Maria Elisa Villas-Bôas

    Capítulo 7 – Ortotanásia e Cuidados Paliativos: O Correto Exercício da Prática Médica no Fim da Vid

    Adriano Marteleto Godinho

    Capítulo 8 – Distanásia: Entre o Real e o Ideal

    Luciana Dadalto

    Cristiana Savoi

    Capítulo 9 – O Que Entender por Mistanásia?

    Leo Pessini

    Luiz Antonio Lopes Ricci

    Capítulo 10 – Suicídio Assistido

    Maria de Fátima Freire de Sá

    Diogo Luna Moureira

    Capítulo 11 – Discussões sobre Direito de Morrer no Direito Comparado: Direito à Morte Digna na Espanha: Análise Jurídica do Caso Ramón Sampedro

    Letícia Ludwig Möller

    Direito à Morte Digna na Inglaterra: Analise Jurídica do Caso Lilian Boyes

    Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf

    Direito à Morte Digna na Itália: Análise Jurídica do Caso Eluana Englaro

    André Dias Pereira

    Mafalda Francisco Matos

    Direito à Morte Digna na Bélgica: Um Consenso Dialogicamente Construído

    Carla Vasconcelos Carvalho

    Morte com Dignidade nos Estados Unidos

    Toni Jaeger-Fine

    Capítulo 12 – Consentimento Informado

    Ruy Rosado de Aguiar Jr.

    Capítulo 13 – Analise do Ordenamento Jurídico Brasileiro: O Conteúdo Jurídico do Direito Fundamental à Liberdade no Processo do Morrer

    Ana Carolina Brochado Teixeira

    Renata de Lima Rodrigues

    Sobre os autores

    Introdução

    Camilla Appel

    O que é uma boa morte? Ou a tal da boa morte

    Ela já estava internada na UTI havia três meses. Ela era um fiapo de corpo conectado a bugigangas capazes de manter uma vida. A respiração artificial, a alimentação artificial, a evacuação artificial, se é que esse termo existe. Tudo artificial para manter aquela moça-velha viva por talvez mais um mês. Ela era uma moça-velha porque seu marido, ao lado dela, assistia aquele repouso infinito e não conseguia deixar de ver a tímida donzela da pensão da rua de trás. Para ele, ela sempre será moça. Para os netos, ela será a velha gagá que não escutava bem e ficava em silêncio durante toda a cerimônia do Natal, observando sua filha organizando o círculo familiar, desempenhando o papel que há pouco tempo era dela. Como a vida passou rápido, ela pensava entre lentas garfadas no perú. A filha agora está ao pé da cama, imaginando se a mãe sente alguma dor, quem sabe refletindo sobre o que ela gostaria que estivessem fazendo com aquele corpo fraco e com um medo secreto de um dia ser ela a estar ali, impotente na cama fria de lençóis esterilizados.

    A filha se apega na esperança de acharem a cura para a morte antes de chegar a sua vez de morrer. Já leu artigos estrangeiros sobre certas impressões de órgãos 3D e uploads de mentes em cérebros e corpos artificiais. Mas enquanto isso não chega, se é que a morte deveria ser vista como uma doença a ser evitada, ela questiona se haveria outro jeito de morrer, diferente daquele. Ela está certa em pensar sobre isso, porque há alternativas a tudo que nos parece imposto. A tudo que simplesmente é assim que é feito. E refletir a respeito faz parte do que nos caracteriza como espécie. Somos seres empáticos movidos não apenas pela culpa, mas também pela capacidade de sentirmos e compartilharmos amor.

    Alguns médicos e enfermeiros paliativistas relatam que a amorosidade é o sentimento predominante no final da vida. Eles testemunham casos, diariamente, de exemplos do amor que toma conta de quem está próximo da morte. Triste seria não oferecer a oportunidade para esse sentimento aflorar e distribuir algo bonito antes da partida. Para onde vamos ninguém sabe, apesar das crenças e teorias. Uma imagem reconfortante é a de que permanecemos vivos naqueles que inspiramos ao longo de nossas vidas e na família que formamos, tanto a tradicional quanto a rede de amigos e cúmplices profissionais.

    Ao descrever a cena imaginária dessa moça-velha da UTI, que poderia ser aplicada a tantas cenas reais, das quais já testemunhei, me peguei pensando no que a jornalista Eliane Brum disse sobre uma boa morte: devemos tomar cuidado para não trocar um imperativo pelo outro, um tabu pelo outro. Como por exemplo, dizer que morrer numa UTI, inconsciente, é pior do que morrer em casa, lúcido e cercado por aqueles que amamos. É provável que a segunda opção nos pareça melhor. Mas há quem alegue ser uma visão romântica e prefira evitar se tornar, na sua concepção, um fardo emocional e financeiro para os filhos – ao terem que lidar com a estrutura e o custo do home care de um doente terminal. Não temos no Brasil, ainda, políticas públicas importantes para sustentar uma morte domiciliar, como os programas sociais de Canadá, Holanda e Noruega que se assemelham à licença-maternidade para oferecer suporte às famílias que querem cuidar de seus parentes no final da vida.

    A institucionalização da morte faz parte do processo de uma mudança cultural do deixarmos de morrer em casa – um evento coletivo e testemunhado por todos – e passarmos a morrer em hospitais – ambientes que facilitam a solidão pela própria necessidade de esterilização e desconforto.

    O parto humanizado é facilmente discutido, mas a morte humanizada, não. As mulheres buscam vantagens e desvantagens entre o parto normal ou a cesárea, episiotomia ou não, doulas, parto em casa ou no hospital. Ou seja, busca-se informação, e alcança-se informação, pois ela está disponível. Pesquisamos sobre qual é a melhor forma de nascer, mas não sobre qual é a melhor forma de morrer.

    Essa realidade está mudando. Cada vez mais discute-se a morte abertamente, e seus desdobramentos, como o luto. Depoimentos tocantes sobre a dor da perda invadem as redes sociais, assim como comunidades de pessoas unidas pela necessidade de ter com quem trocar sentimentos negativos sem ser recebido com constrangimento.

    O que Eliane quis dizer com o cuidado de trocarmos um paradigma pelo outro é justamente ter-se a cautela de não definirmos o que é bom para o outro. Cairíamos no mesmo tipo de problema. Por isso, o alicerce da discussão está em algo que é mais fundamental do que o conceito subjetivo de bom ou ruim: o direito à autonomia. Autonomia pressupõe empoderamento, que pressupõe acesso à informação e recursos, como cuidados paliativos (desde o diagnóstico de uma doença potencialmente mortal) – uma área que privilegia a comunicação entre paciente e equipe médica, e o testamento vital.

    Cabe a nós escolhermos qual seria a melhor forma de morrer, mesmo se essa forma for delegar todas as decisões a alguém em quem confiamos. Passamos a vida tomando decisões, buscando experiências significativas e elaborando rituais de passagens, como casamento e festas de aniversários. Se a morte é ou não uma passagem, é discutível, mas não podemos negar que ela é uma experiência intensa todos os envolvidos.

    O conceito de dignidade transita justamente na esfera da autonomia e do acesso a recursos e informação. Se vamos considerar uma boa morte estar em casa, rodeado de familiares, ou poder decidir a hora e o local de morrer, ou ter a liberdade para se automedicar com remédios letais, ou estar numa UTI tentando todos os tipos de tratamentos possíveis com o uso de todas as tecnologias disponíveis, ou definir que outra pessoa tome as decisões por nós, não me parece o mais relevante. Mas sim ter a liberdade de falar a respeito, de pesquisar a respeito, de trazer uma conversa à tona com a família, com médicos, amigos, com a Justiça, sem ser considerado inoportuno e um mal agouro.

    Não é falar sobre morte que atrai a morte. Mal falamos sobre ela há algum tempo e continuamos morrendo mesmo assim. O que atrai a morte é viver muito. Por isso pensar numa boa morte, é acima de tudo, pensar numa boa vida, ter acesso a uma boa vida até seu último segundo.

    Capítulo 1

    Bioética Constitucional

    George Salomão Leite ¹

    1. Bioética

    1.1 Bioética: origem e conceito

    Desde meados do século XX, nos deparamos com um vertiginoso avanço no campo científico e tecnológico, sobretudo no âmbito das ciências biológicas e da saúde. Atualmente, em razão desta evolução, vivenciamos dilemas de natureza ética, moral, religiosa, econômica, cultural e jurídica.

    Concluímos o século XX e ingressamos no novo estágio secular discutindo temas que para muitos são antigos, como a eutanásia e o aborto, bem como realidades completamente novas, a exemplo da clonagem de embriões humanos, mapeamento do genoma humano, alimentos transgênicos, transplante e comercialização de órgãos, dentre outros de igual relevo². O avanço no setor biotecnológico reclama da sociedade uma rediscussão de natureza axiológica, de modo que devemos estar cônscios acerca do bem ou do mal que pode advir desta nova revolução tecnológica. Deste modo, a sociedade deve estar sempre atenta a esta nova realidade, buscando sempre a efetivação e aprimoramento de um instrumental político-jurídico que permita adequada proteção a uma série de direitos tidos como fundamentais, que dimanam de um paradigma valorativo denominado dignidade da pessoa humana.

    A preocupação com a vida humana e com a conduta daqueles que lidam, direta ou indiretamente, com referido valor, faz surgir um novo ramo do saber conhecido por Bioética³. Esta expressão foi utilizada pela primeira vez pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter, em artigo intitulado Bioethics, the science of survival, publicado em 1970. No ano seguinte, o Prof. Potter publica a clássica obra que o consagra: Bioethics: bridge to the future. Aqui, o pesquisador apresenta a bioética como uma ética interdisciplinar, preocupada com a relação e preservação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta, de modo que o progresso tecnocientífico não deve prescindir dos valores culturais e éticos da sociedade sob pena de por em risco sua sobrevivência.⁴

    Também em 1971, uma nova forma de compreensão da bioética surge, mediante a criação do Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study on Human Reproduction of Bioethics pelo Professor da Universidade de Georgetown (EUA), André Hellegers. A partir daqui, desenvolve-se um movimento de fortalecimento dos direitos do paciente frente à despersonalizada sofisticação da medicina moderna, em uma perspectiva que durante muito tempo tem igualado bioética e ética médica.⁵ Temos, portanto, duas fontes ou origens da bioética, que se desenvolveram até a presente data.

    Urge ressaltar, todavia, que este ramo do saber nasce em razão de uma conjunção de diversos momentos socioculturais, assim apontados por Miguel Kottow⁶: a) Como conseqüência da 2ª Guerra Mundial, uma série de valores tradicionais se rompe, quebrantando-se conceitos, costumes e instituições como família, matrimônio, nação etc; b) a esterilidade da ética filosófica desde Nietzsche, do positivismo e das posturas de Wittgenstein, foi incapaz de manter um horizonte moral vinculante, de modo que houve a substituição pelas éticas aplicadas, que deveriam assumir a urgência de fornecer soluções a problemas e dilemas criados pelas complexas práticas sociais imperantes; c) o poder tecnocientífico, ilustrado pela criação da bomba atômica, fez sentir a necessidade de elaborar um discurso ético-normativo em torno à complexidade dos processos civilizatórios e; d) o surgimento de movimentos reivindicatórios de minorias postergadas, a exemplo dos estudantes e diversas etnias, e de maiorias discriminadas, a exemplo do feminismo. Ressalte-se, dentro deste contexto, o despertar pelos direitos dos pacientes e dos cidadãos afetados por impactos ambientais.

    Nos Estados Unidos da América, berço da bioética principialista, alguns casos específicos despertaram a opinião publica, o que suscitou uma reação do Governo ante os seguintes acontecimentos, são eles: a) em 1963, no Hospital Israelita de doenças crônicas de Nova York, foram injetadas células cancerosas vivas em pacientes idosos; b) entre 1950 e 1970, no Hospital de Willowbrook, Nova York, injetaram hepatite viral em crianças portadoras da Síndrome de Down; c) desde os anos 40, no Estado do Alabama, no caso Estudo Tuskegee, 400 negros sifilíticos foram deixados sem tratamento para pesquisar o curso natural da doença, embora a penicilina já tivesse sido descoberta⁷.

    A medida adotada pelo Governo norte-americano, via Congresso Nacional, foi a instituição de uma Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, cuja finalidade seria a de identificar os princípios éticos básicos que deveriam nortear a conduta da pesquisa biomédica e comportamental que envolve seres humanos. O resultado deste trabalho foi a elaboração do Relatório Belmont (Belmont Report), publicado em 1978, que identificou três princípios éticos básicos, sendo: a) respeito pelas pessoas; b) beneficência e; c) justiça. Desde então, desenvolve-se toda uma doutrina bioética baseada em princípios.

    À luz da complexidade das situações correntes no mundo contemporâneo, a bioética apresenta um raio de abrangência intensamente maior do que a concepção proposta por Potter⁹, Hellegers e aquela apresentada no Relatório Belmont. Segundo Jorge Adam Godard, "a bioética tem sido uma reação humanista frente ao desenvolvimento tecnológico aplicado aos campos da procriação e morte do ser humano. A tecnologia tem desenvolvido métodos abortivos eficazes e de pouco risco, métodos para procurar a morte sem dor física, para procriar seres humanos sem união conjugal, para determinar as características físicas dos que vão nascer. Estes desenvolvimentos tecnológicos que se expressam claramente nas palavras aborto, eutanásia, fecundação in vitro, engenharia genética e clonagem tem causado reações fortes de aceitação e rejeição, de esperança e inquietude. A bioética é a resposta que pretende justificar o uso e aplicação destas tecnologias para que sirvam realmente ao progresso da humanidade."¹⁰

    De acordo com a Encyclopedia of Bioethics, a bioética "pode ser definida como o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo a visão, as decisões, a conduta, e as políticas - das ciências da vida e do cuidado da saúde, empregando uma variedade de metodologias éticas em um contexto interdisciplinar."¹¹Trata-se, portanto, de uma ética prática¹², diretamente ligada a situações concretas, cujo esforço interdisciplinar busca conferir proteção à pessoa humana em face de todo o progresso científico. O desenvolvimento tecnológico deve estar a serviço do ser humano, propiciando-lhe uma vida saudável e digna. A ciência não pode colocar em risco a vida dos seres, pois possui um caráter instrumental e não finalístico. Por tais razões, em qualquer situação em que a vida seja objeto de discussão, a bioética certamente se fará presente, pois aquela é a sua área de atuação.

    1.2 O paradigma bioético principiológico

    1.2.1 O Relatório Belmont

    Conforme já ressaltado anteriormente, os Estados Unidos da América foram o berço do paradigma principialista, tendo sido desenvolvido a partir da promulgação do Relatório Belmont em 1978, quatro anos após a instituição da Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental. Neste documento, três princípios foram identificados, sendo: a) respeito pela pessoa; b) beneficência e; c) justiça.

    O princípio do respeito pelas pessoas, segundo o Relatório, incorpora ao menos duas convicções éticas: a) em primeiro, os indivíduos devem ser tratados como seres autônomos, dotados de autodeterminação; b) em segundo, as pessoas cuja autonomia estejam atenuadas devem ser submetidas à proteção. Dentro deste contexto, pessoa autônoma é aquela capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir consoante tal deliberação. Decorre deste princípio a figura do consentimento informado, donde a pessoa apenas deverá se submeter a uma pesquisa desde que ingresse voluntariamente e obtenha informações adequadas sobre a mesma.

    Por beneficência, segundo o Relatório, não devemos entender a prática de atos de bondade ou de caridade, como freqüentemente se compreende, mas sim uma obrigação. Consoante o citado documento, duas regras gerais foram formuladas como expressões de ações beneficentes: a) não causar dano e; b) maximizar os benefícios possíveis e minimizar os possíveis prejuízos.

    O princípio da justiça traduz-se na imparcialidade de distribuição dos riscos e benefícios, como resposta à indagação: Quem deve receber os benefícios da pesquisa e carregar seus riscos? Segundo o Relatório, outra maneira de conceber o princípio em apreço é que os iguais devem ser tratados igualmente. Porém, aqui surge um problema: quais são os iguais e quais são os desiguais? Embora haja desigualdades entre os homens, de certo que se pode adotar determinados critérios que justifiquem o estabelecimento de um tratamento desigual tendo em vista alcançar a finalidade pretendida, a exemplo da idade, cor, raça, sexo etc.

    Ressalte-se, todavia, que objeto aqui de proteção é o ser humano em face das pesquisas biomédicas e comportamentais. A pretensão foi a de criar uma estrutura analítica que pudesse guiar a definição dos problemas éticos que se apresentam nas pesquisas com seres humanos. Portanto, o Relatório não teve a pretensão de servir como paradigma para solução de todos os problemas que envolvem a bioética, mas apenas as pesquisas que envolvem seres humanos.

    1.2.2 Breves notas sobre a obra Princípios da Ética Biomédica de Tom L. Beauchamp e James F. Childress

    Em 1979 foi publicada a clássica obra Principles of Biomedical Ethics, de autoria de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, sendo considerada um marco do paradigma bioético principiológico.

    Beauchamp, que participou da Comissão Nacional que elaborou o Relatório Belmont, e Childress desenvolveram uma teoria ética que procurou abarcar não só a experimentação com seres humanos, mas também a prática médica e assistencial. Afora os princípios da autonomia, beneficência e justiça, já constantes no Relatório Belmont, os autores acrescentaram um quarto que foi o da não-maleficência¹³.

    O objetivo de Beauchamp e Childress consiste em oferecer uma estrutura para o julgamento moral e a tomada de decisões por parte não só dos profissionais da saúde mas de toda a sociedade, quanto à satisfação das necessidades dos doentes e dos feridos, em razão do desenvolvimento científico, tecnológico e social ocorridos a partir da primeira metade do século XX. Dentro deste contexto, pretendem demonstrar como a teoria ética pode iluminar problemas referentes à saúde e como ela pode ajudar a superar algumas limitações das formulações anteriores da responsabilidade ética.¹⁴ Para tanto, o ponto de partida para edificação correta de uma teoria ética é a moralidade comum, compreendida esta como conjunto de normas de condutas socialmente aceitas, embora suas recomendações não sejam perfeitas nem tampouco completas.

    Os autores propõem que a justificação moral das ações humanas no campo da bioética se dê através da utilização do método denominado co-erentismo. Antes de descreverem referido método, portanto, tecem considerações críticas ao modelo dedutivista e indutivista. Consoante o dedutivismo, os julgamentos morais justificados são deduzidos de um esquema teórico preexistente de preceitos normativos que abarcam o julgamento. Trata-se de um modelo que parte do geral para o particular ou, noutras palavras, de cima para baixo. A ênfase é dada à normas gerais e à teoria ética para obtenção de julgamentos morais adequados. A funcionalidade deste modelo se dá sempre que um julgamento possa ser submetido imediatamente a um princípio ou regra sem que intervenham maiores complicações. Segundo Beauchamp e Childress, os pontos negativos deste paradigma são: a) não apreensão do modo como o raciocínio e a justificação morais funcionam em casos complexos; b) possibilidade de criar uma regressão potencialmente infinita da justificação, pois cada nível de recurso a um preceito de abrangência requer algum outro nível para justifica-lo.¹⁵

    O modelo indutivista, ao contrário do anterior, parte de baixo para cima, é dizer, do particular ao geral. Deste modo, a ênfase recai nas tradições morais, na experiência, no consenso, de maneira a realçar o papel dos julgamentos particulares e contextuais como uma parte da evolução da nossa vida moral, como meio de generalização das normas. Deste modo, casos e julgamentos particulares já ocorridos podem servir de ponto de partida e fundamento para conclusões morais, independentemente de normas gerais. Sobre este ponto, asseveram Beauchamp e Childress:

    "Durante uma discussão sobre esse problema, Henry Sidgwick argumentou que ‘o caso particular pode ser estabelecido satisfatoriamente pela consciência [isto é, pelo julgamento prático] sem referência a regras gerais’. E se formos capazes de ‘formar proposições gerais por induções a partir desses julgamentos conscienciosos particulares e de organiza-los sistematicamente (...), qualquer interesse que um tal sistema possa ter será puramente especulativo’ e não prático. A concepção de Sidgwick é um ataque vigoroso contra o puro indutivismo, e ele fundamenta sua pinião argumentando que nós usamos as normas gerais para restringir e avaliar os julgamentos morais particulares. O interesse teórico no que é geral, portanto, não é inteiramente em prol de uma tipologia especulativa do que já sabemos de casos particulares; estamos interessados em padrões gerais porque estamos interessados em saber o que devemos fazer."¹⁶

    Embora os autores tenham formulado críticas aos dois modelos acima apontados, não negam, todavia, a importância e a contribuição que cada qual pode dar no tocante à justificação moral das ações humanas.

    O método de justificação moral denominado coerentismo difere do modelo indutivo (casuístico) e dedutivo, por não operar nem de baixo para cima nem de cima para baixo, porém se movimenta em ambas as direções. Apoiados na doutrina de John Rawls, sustentam que o equilíbrio reflexivo refere-se à meta de justificação do coerentismo. Deste modo, a aceitação de uma teoria ética começa com os nossos juízos ponderados, sendo estes convicções morais nas quais temos a maior confiança e que acreditamos terem o menor grau de tendenciosidade. Para John Rawls, são "juízos nos quais as nossas capacidades morais têm maior probabilidade de se manifestar sem distorção."¹⁷ Tais juízos ponderados, aceitos provisoriamente como pontos pacíficos, são também passíveis de revisão. "O objetivo do equilíbrio reflexivo é comparar, restringir e ajustar os juízos ponderados a fim de que eles coincidam e se tornem coerentes com as premissas da teoria."¹⁸

    Deste modo, o ponto de partida deste modelo são os juízos ponderados, que devem ser convicções morais firmes de caráter auto-evidentes, sem necessidade de justificação com base em outros juízos morais, o que geraria uma regressão infinita. Assim, são auto-justificáveis, verdadeiros axiomas. É partindo desta concepção que os autores apontam para a existência de quatro princípios norteadores da bioética: a) respeito à autonomia; b) não-maleficência; c) beneficência e; d) justiça.

    O coerentismo há de ser desenvolvido mediante a utilização das técnicas da especificação e ponderação. A primeira se faz necessária em razão do conteúdo vago inerente às normas principiológicas, de modo que o mesmo deva ser especificado no sentido de permitir uma solução moralmente justificada para a situação em análise. Sobre este aspecto, afirmar os autores: Se queremos que os princípios discutidos neste livro tenham conteúdo suficiente, devemos ser capazes de especificar esse conteúdo de um modo que vá além do abstracionismo etéreo, indicando, ao mesmo tempo, a que casos se aplicam propriamente os princípios. Quando um princípio não possui especificidade suficiente, ele é vazio e ineficaz.¹⁹ A nosso sentir, a especificação nada mais é do que a utilização do método dedutivo, haja vista que se parte de uma norma geral – princípio – para o particular – situação concreta. Especificar significa especializar, individualizar, logo, esta tarefa só é possível partindo de um gênero, de algo que seja geral. Portanto, vemos que a especificação em nada difere do modelo dedutivo, de modo que as mesmas críticas que os autores formularam ao dedutivismo lhes possam ser atribuídas.

    A ponderação há de ser realizada quando ocorre um conflito entre dois princípios ante uma situação concreta, de modo que ela consistirá em uma formulação de juízos e tomada de decisão acerca dos pesos relativos das normas. Urge ressaltar, todavia, que os princípios não são absolutos, mas prima facie, encontrando-se no mesmo nível hierárquico, de forma que obrigam até o ponto em que não entrem em colisão à luz de um caso concreto. Portanto, tal solução apenas se dá através de um juízo ponderativo.

    Eis, em síntese, um dos paradigmas predominantes na bioética contemporânea.

    2. Construindo pontes entre a Bioética e a Constituição: porque falar em uma Bioética Constitucional?

    Não se deve causar estranheza a íntima relação existente entre a Bioética e a Constituição, haja vista a presença comum de elementos nestas duas realidades que permite, no momento, falar em uma Bioética Constitucional.

    Desde já devemos ressaltar que o termo Bioética Constitucional não enseja a preferência pela Bioética sobre a Constituição. Noutro dizer, não estamos colocando a Constituição em um segundo plano, como se a Bioética a ela se sobrepusesse. Na verdade, queremos destacar um núcleo normativo inserido na Constituição que versa sobre problemas bioéticos. Questões bioéticas são, sim, questões jurídicas, haja vista que a vida é o eixo de atuação do saber bioético. São, portanto, problemas afetos à Constituição, pois esta consagra a vida como bem jurídico inviolável. A liberdade científica e tecnológica encontra limites no momento em que pode causar lesão a outros bens constitucionalmente tutelados. Assim, questões como o aborto, eutanásia, alimentos transgênicos, clonagem de embriões humanos, fertilização in vitro – FIV, manipulação genética etc, necessitam não só de um tratamento bioético como igualmente jurídico. Por tal razão, é no âmbito da Bioética Constitucional que podemos encontrar algumas respostas para assuntos tão delicados como os mencionados anteriormente.

    É sabido que muitos dos problemas aventados pela Bioética não possuem um tratamento jurídico específico – ou quando possuem podem ser inadequados atualmente – apontando portanto para uma lacuna legislativa – ou axiológica. Entretanto, o ordenamento jurídico na sua unidade/totalidade não possuem vazios jurídicos, de modo que sempre deve fornecer uma resposta juridicamente adequada a problemas sociais relevantes. O lugar ideal para obtermos uma resposta jurídica em situações lacunosas é a Constituição, haja vista o caráter aberto das normas principiológicas integrantes da sua estrutura. Devemos frisar, todavia, que estamos tratando de problemas bioéticos, que tem a vida e a dignidade humana como panos de fundo.

    Deste modo, a Bioética Constitucional apresenta-se como um subsistema normativo (princípios e regras) presente na Constituição, que busca tutelar a qualidade de vida dos seres e a dignidade humana em face do desenvolvimento científico e tecnológico. Urge ressaltar, que há autores que preferem falar de Biodireito Constituciona²⁰l ou Bioconstituição.²¹

    Iremos apontar, na seqüência, alguns dos elementos justificadores de uma Bioética Constitucional, sem a pretensão de exaurir a temática, objetivando apenas contribuir ao debate acadêmico.

    2.1 A dignidade humana como fundamento e fim da Bioética e da Constituição

    Uma Constituição surge com a finalidade de regulamentar o exercício da atividade política como forma de conferir proteção aos direitos fundamentais. O povo, enquanto titular do poder constituinte originário, dá a si e para si uma Constituição. Esta é quem vai organização a vida política de uma comunidade como meio de proteger os valores mais caros que permitam a cada qual, em um determinado momento histórico, viver dignamente. Assim, a Constituição é a manifesta expressão da soberania popular.

    Tomando como paradigma a Constituição em vigor de 1988, percebe-se que o povo brasileiro elegeu a dignidade humana como valor supremo. Consta, assim, em seu preâmbulo:

    "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil." (itálico nosso)

    Embora não esteja expresso no preâmbulo de nossa Constituição, é evidente que o constituinte originário elegeu a dignidade humana como valor supremo. Ora, a idéia de liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento e justiça, revela a nítida pretensão de colocar a dignidade como valor máximo de nosso Texto Constitucional. Deste modo, a dignidade humana é um valor de onde deflui uma série de direitos e garantias constitucionais. Ao fazer alusão aos valores superiores da Constituição espanhola, assim se expressa Gregorio Peces-Barba: "(...) o uso na linguagem constitucional do conceito de ‘valores superiores’, supõe um conceito de Direito como fenômeno cultural, como obra dos homens na história. Os valores superiores são os objetivos máximos, o sentido que pelo acordo da maioria, expressada pelo

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