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Cozido Goiano: e outras imposturas
Cozido Goiano: e outras imposturas
Cozido Goiano: e outras imposturas
E-book275 páginas4 horas

Cozido Goiano: e outras imposturas

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Sobre este e-book

"Este é o primeiro livro ficcional de Lúcia Araújo. Vejo nele, contudo, a mesma inteligência vivaz, a capacidade de fazer conexões e a extrema capacidade que a autora vem demonstrando em sua bem-sucedida carreira de jornalista.
Pode ser lido como um saboroso depoimento sobre a cultura caiçara, palavra de origem tupi que, esclarece ela no livro, significa a mistura de índio com branco. Pode ser lido também como um retrato – por vezes cruel, mas sempre muito bem-humorado – do nosso embate interno entre a vergonha de um passado pobre e o desejo de ingressar num novo mundo.
O tal cozido goiano que dá título ao livro na verdade alude à capacidade do brasileiro de fazer muito com pouco, de improvisar a partir da precariedade, da escassez. Pois penso que o mundo está precisando muito, hoje, dessa capacidade de invenção que tanto caracteriza o brasileiro.
E um recado final: as receitas no final do livro são para valer. Casquinha de siri, bolinho de arroz e azul marinho são verdadeiros "biscoitos finos" que ela nos proporciona. Lúcia domina como poucos a arte dos temperos e das "misturas".

Adélia Borges - jornalista, curadora de exposições e autora de livros.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de dez. de 2020
ISBN9786586201024
Cozido Goiano: e outras imposturas

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    Cozido Goiano - Lúcia Araújo

    goiana

    Entrada

    GOOGLE

    Nenhum resultado encontrado para cozido goiano.

    Você quis dizer: cozido baiano?

    1. Cozido goiano: a origem

    Não, eu não quis dizer cozido baiano. E se este não se trata de um livro policial, não há por que prolongar inúteis mistérios. Claro que não, cozido goiano não existe mesmo. Quer dizer, não existe como cozido e nem existe como goiano. Existe no terreno permissivo da metáfora. De uma metáfora cunhada por minha amiga Marina, que, para ilustrar uma determinada situação, identificou em nosso passado em comum um acontecimento de natureza parecida. E, desde então, o evento vivido por nós duas e conhecido pelo codinome de a noite do cozido goiano foi içado à categoria de metáfora para designar certas maneiras criativas de abordar a vida e suas dificuldades, o que em si já constitui um universo sem fim de invenções cotidianas, engendradas na sangrenta luta da espécie pela sobrevivência.

    E o fato que viria a inspirar a metáfora, o tal cozido goiano, ocorreu no final do século passado, quando vivíamos as duas nos Estados Unidos. Ela em Nova York, eu, em Washington. Naquele dia, eu havia saído cedo de trem para passar o dia todo trabalhando em Nova York, numa matéria para o jornal Folha de São Paulo. Eu era repórter freelancer nos EUA.

    Marina me acompanhou naquela tarde de volta para Washington. Chegamos extenuadas, às seis da tarde, em casa, para descobrir que meu marido tinha convidado uns americanos importantes pra jantar. Eu, de minha parte, tinha providenciado um inconveniente esquecimento do compromisso. Não prestei a devida atenção nas palavras do Guimarães Rosa, não é Deus quem castiga. É os avessos.

    Orgulhosa, e também com vergonha de chamar um congelado manjado ou uma comida de restaurante, abri a geladeira. E encarei com galhardia a paisagem ártica, minimalista ao máximo, que se instalara no interior dela.

    Sendo da opinião que, na falta da espada, ainda temos a mão, como deve se dizer lá pras bandas do Saara, fui à luta. Tinha uma salsicha, dois bifes ressecados do dia anterior, um tomate pela metade, duas coxas de frango esturricadas, duas batatas, uma cenoura, um pedaço de carne-seca irlandesa e, seguramente, umas folhas de repolho e umas vagens meio desfalecidas.

    De fato, com uma cebola e um pouco de molho de tomate, azeite ou manteiga, uns poucos temperos e muita cara de pau, tudo se resolve, inclusive fazer um prato renascer das ruínas. Ali, das lembranças de refeições prévias, nascia o cozido goiano, prato típico de um estado que até aquela ocasião eu nunca visitara.

    Conhecedora do gosto local por exotismos e costumes tribais — desde que não muito perto —, julguei que Goiás incorporava todos os ingredientes necessários para imprimir a dose certa de rusticidade com romantismo e agradar a freguesia, além de conferir algum tipo de credencial que prestasse àquele guisado de quinta que eu preparara.

    Com a imaginação a milhão, turbinada por duas garrafas de vinho e muita MPB, enquanto eu servia, fazia a mágica (e a impostura) de transformar uma mera invenção casuística e oportunística, sem qualquer pedigree, numa fênix gastronômica, nascida sob os auspícios de um tipo de parlenda.

    Anos mais tarde, ao ser invocada pela Marina, se converteu em metáfora. Em outras palavras, mais imperativo que inventar o prato era criar uma história e um passado pra ele. Mais uma evidência de que mentira sempre dá muito trabalho.

    E foi assim que, em estado de franco desespero, elevei o cozido goiano ao altar dos grandes feitos dos desbravadores do nosso Centro-Oeste; uma comida de tropeiros, homens rústicos que, em busca de fortuna, de pedras preciosas e de terras, se aventuraram pelos rincões daquele Brasil desconhecido. Uma história vagabunda, pior que filme B, juntando no elenco caiapó com Roy Rogers, Cunhambebe com o homem de Marlboro. Porque, no caso, uma das razões para um cozido ser bem-sucedido é saber se aproveitar dos estereótipos do convidado.

    Na biografia do cozido, nascido naquela noite, na Cathedral Avenue, em Washington, D.C., reviviam-se epicamente os tempos em que os tropeiros, os bandeirantes desse Brasil profundo, se encontravam nas estalagens de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, que sequer existiam naquela época, e se viravam para fazer uma refeição, colocando cada um o que tinha num caldeirão comunitário. Como se sabe, o patrimônio intangível de uma comunidade sempre agrega valor a um cozido do tipo goiano. Que conste!

    E cada um contribuía com um pouco de tudo que havia pra comer então: arroz, banana, mandioca, carne de porco, de caça, umas batatas, com sorte uma cenoura, uma cebola. Não fosse eu na época tão mais ignorante do que sou ainda hoje em relação ao bravo Estado de Goiás, teria dado um jeito de acrescentar pequi e guariroba, ingredientes fundamentais de tudo que é comida goiana. Como se diz por lá, o que diferencia um goiano de um mineiro é o pão de queijo e a guariroba. Seguramente, essa informação teria dotado a história de muito mais credibilidade.

    Na receita e na história, só não entravam frutos do mar porque aquele era dos poucos lugares sem mar, sem dono e sem fronteiras em tão remoto passado.

    O fato é que, na noite do cozido, movida a vinho e a pânico, me senti investida de um inabalável civismo, ciosa de apresentá-los ao gigante adormecido, à terra das palmeiras, dos tuiuiús, a um Brasil portador de muitos outros exotismos, além das bundas das mulatas, da bossa-nova e, na época, da dívida externa.

    A história fez tanto sucesso que tive que passar a receita para a convidada, coitada, que pode até hoje estar procurando o cozido goiano nos cardápios locais. Inclusive de Itumbiara, de onde vem uma conhecida minha.

    Foi assim que, depois de testemunhar a história, muitos anos depois e do nada, a Marina, ao me ouvir relatar uma outra história de um aperto qualquer de que eu me safara, assacou: Aí você fez um cozido goiano. Pronto: desse momento em diante, a metáfora entrou em definitivo no fluxo de nossas conversas, como a encarnação de certas se-viragens, capazes de tirar a gente de roubadas variadas.

    Nesta era de autoajuda, cuja eficácia desconheço alguém capaz de comprovar, por que não dar minha pequena contribuição? Se funcionar, segundo diz meu amigo Otávio, como manual pra combate da autoatrapalhação, já estamos no lucro.

    No mínimo, me sinto na obrigação de confessar meu crime, e, de quebra, me desculpar com a pujante terra goiana pelo estelionato culinário, e com a convidada, pelo expediente da mentira.

    Depois que eu — caiçara de nascença, que, em tantos anos de praia, nunca na vida fui apresentada a um pé de cogumelos nativos da areia — descobri em Rondônia, que nunca viu o mar, uma farmácia chamada Cogumelo Caiçara, tenha dó, confesso que reforcei minhas dúvidas em relação ao futuro das autenticidades neste mundo.

    Assim, nesse devir falsificado da humanidade, será que ainda não haverá lugar para cogumelos caiçaras, lã Shetland do Cariri, buchada argentina, polentas japonesas ou cozidos goianos?

    Face às evidências que indicam que hoje capacitação é palavra de ordem, que resiliência diante das adversidades é um imperativo e que não tarda o amanhã bate na porta, melhor se precaver e dar alguma atenção, com as devidas reservas, ao tema.

    Não é porque o Google, a Wikipedia, o quilo e o diário de notícias lá de Itumbiara, o Facebook, o YouTube e todas as mídias que vierem a ser inventadas ainda não o reconheceram que o cozido goiano não mereça certificado de identidade.

    Não precisa temer levar gato por lebre. Quando menos se espera, ele pode ser a sua salvação. Como foi a minha, a de Alzira, de Valdson. E da Rainilce, a moça que abre esta narrativa. Logo ela, que, até o advento do cozido, tentava se virar com cogumelo caiçara.

    Se a leitura não agradar, sempre é possível fazer um test-drive das receitas, decorar uma citação ou cantar uma música enquanto lava a louça.

    Boa leitura e bom apetite!

    2. Cozido goiano: a receita

    É de conhecimento público que resto de comida rende uma enciclopédia de receitas em casa de pobre. E também na de rico, porque, nas galés, a turma se diverte customizando o que ficou do almoço do andar de cima. Bolinho de arroz, omelete de atum, arroz de forno, carne maluca, sopas de todos os tipos e o inolvidável macarrão com feijão já viraram clássicos da chamada base da pirâmide — e, como tudo que se relaciona atualmente à base da pirâmide, foram promovidos a celebridades culinárias (Slow Food, comida da vovó, alimentos orgânicos, comida viva e por aí vai).

    Tudo isso não deixa de ser também da categoria dos cozidos goianos, apesar de uma presumida aparência de chique. O que dá nome a esta narrativa, sendo de procedência ficcional, precisou ter seu manual de instruções igualmente inventado. Aqui, no Anexo que acompanha este livro, há uma tentativa de reproduzi-lo. Só não me peçam para seguir a rigorosa escola culinária americana, que impõe precisão militar nas quantidades.

    Cozido goiano que se preze tem que ser feito a olho e experimentado no dedo, sem muita ciência, proficiência nem consistência. Também pode ser adaptado a versões infinitas, em sintonia com a variedade do planeta, da fauna, da flora, de bípedes e quadrúpedes, anfíbios e répteis. Porque o que vai fazer a diferença são os dois ou quatro por cento que nos diferenciam dos babuínos. A imaginação.

    Como o mandamento da participação virou compulsório em tudo que é raio de fórum, de rádio, de televisão, o convite é para que cada um crie seu próprio cozido, com as sobras que o singularizam, com os restos que vão ressecando na geladeira. Quem sabe um dia inventamos um verdadeiro patchwork gastronômico, um cozido pós-goiano, autenticamente inter e multicultural, pra dor e delícia do Valdson, que se debate mais contra a globalização que os empregados automotivos da Alemanha?

    Antes de ir arregaçando as mangas e refogando a cebola, tem que lembrar que melhor que inventar a receita é inventar a história. Cozido goiano foi a primeira inspiração, mas, dependendo do momento, pode-se apelar para cozido caiçara, cozido mameluco, cozido caboclo… Só tome cuidado com o cozido espanhol, porque esse existe mesmo e o incauto pode ser processado por fraude culinária.

    Na sobremesa no dia do cozido, insisti no mote étnico e aproveitei o inevitável mimo com que amigos brasileiros presenteavam amigo que morava nos EUA, além do Bis e do sabonete Phebo: queijo com goiabada. E nesse caso, depois de alguns litros de vinho, economizei a imaginação e finalmente relaxei: a história do Romeu e da Julieta, ao contrário da dos tropeiros, já tinha sido magistralmente inventada.

    3. Cozido goiano: o milagre da multiplicação

    O fato é que comida com literatura é sempre uma iguaria. E mais importante: trata-se de parte essencial da artilharia amorosa de homens e mulheres numa sociedade que aspira a ser do conhecimento. Comida é a isca para o cara engolir a poesia que vem junto com você. E tem que ser estratégia no início do namoro. Depois que ele comer a cozinheira, nunca surgirá outra chance de vê-lo tão interessado em Dylan Thomas.

    Nesse campo, de tédio não se morre: comida com literatura e pintura (um piquenique à moda de Monet, acompanhado de um sarau proustiano, por exemplo), servido numa louça provençal. Ou também se pode criar um tipo de convescote mais apimentado, numa selva de bananeiras, recitando poemas de algum poeta da Martinica, a bordo de um sarongue e comendo banana com peixe. Para um toque caiçara indiscutível, não deixe de conferir no Anexo a receita do azul-marinho. Se a opção for algo mais oriental, sobram variantes chinesas, vietnamitas, tibetanas e tailandesas. Na falta de dotes culinários, sempre se pode enganar com uma massagem sensual, cuja eficácia será totalmente secundária a certa altura da bebedeira.

    Em tempos multiculturais não há fronteira para a inventividade poético-gastronômica: comida com foco no Oriente Médio é um banquete, donde se pode ir muito além das fábulas da própria Sherazade. Cuscuz marroquino com iskender turco, acompanhado das rimas de algum poeta da Pérsia e de um bom vinho francês. Sim, porque o tal multiculturalismo também serve pra garantir a qualidade do vinho e fazer a gente escapar de hora dessas ter que enfrentar um cauim, num almoço com o tema Macunaíma.

    O fato é que se pode inventar de tudo quando o assunto é comida, servida com guarnições de música, de cinema, de poesia e, sobretudo, de muita antropologia. Porque qualquer que seja a classe social do paladar, é fundamental localizá-la num universo poético e antropológico.

    No caso da gastronomia nativa a que fui exposta e submetida, as iguarias podiam vir do mar, da terra, dos ares e da lama. Os caiçaras, como se sabe, descendem de índios que cultivavam o hábito de se alimentar das qualidades da carne que comiam — onças, cobras, macacos, outros tupis, franceses, espanhóis e portugueses inimigos. Assumiam as características, os vocabulários, prazeres e principalmente o modo de pensar do tapuia ou do caraíba da hora.

    Com a criminalização definitiva da antropofagia e, mais recentemente, o advento do politicamente correto, os descendentes, como bons seres da floresta, tiveram que se adaptar ao meio, sucumbindo ao consumo daquilo que se vende no sacolão. Ainda que, até hoje, salivem secretamente com a lembrança de uma boa paca com cerveja, uns ossinhos de cotia ou uma gorda pata de caranguejo.

    Portanto, não se espante com a referência a comidas cujo prazo de validade histórica já venceu, junto com sua legalidade, incluindo palmito selvagem, paca, lagartos, rolinhas e outros seres cujo destino livrou-os milagrosamente da panela para promovê-los ao altar da preservação.

    4. Nem cozido, nem goiano, muito menos literatura

    Para fazer um bom cozido goiano na cozinha e na vida, o único ingrediente indispensável é a disposição para criá-lo, a despeito das mais esfarrapadas e particulares circunstâncias. Nada demais nisso. Afinal, é assim que boa parte das pessoas leva a vida, inventando maneiras de se refazer, de juntar os cacos a cada dia, de rir do que se é.

    E de uma certa forma também foi assim que, ao longo dos anos, este livro foi se criando, se compondo: a partir de retalhos de vivências e de ficções minhas e dos outros, um cozido goiano na versão almanaque.

    Diz o biólogo Humberto Maturana que a objetividade só existe entre parênteses. E os parênteses são basicamente o que somos, o que pensamos, o que nos singulariza, o que nos dá limites e possibilidades. Vamos dizer que a versão literária do cozido goiano é apenas uma face dos meus próprios parênteses. No que tem de vivenciado e no que tem de inventado, no que tem de experiência comum ou incomum.

    Como a gente sabe, a literatura de verdade, e também as narrativas menos nobres, mais do que se inspiram nas experiências pessoais. Gabriel García Márquez faz graça disso tudo porque o cômico e o trágico, o real e o fantástico estão de tal forma entrelaçados nas experiências de cada um que às vezes a gente não consegue distingui-los. Num belíssimo documentário colombiano da diretora Adelaida Trujillo, aliás, ele fala que todos os personagens de Cem Anos de Solidão foram baseados em casos e pessoas reais. Gabriel conta que sua mãe quando leu o livro ficou apavorada: Como é que eu vou sair na rua? Fulano vai me matar, fulana vai querer me queimar viva. O que especialistas do realismo realista chamam de realismo mágico nada mais é que a vida como ela é em Cartagena, em Macondo ou em Guaxupé.

    Assim, temperadas artisticamente com acasos, as circunstâncias de cada narrador são vitais para a produção do cozido goiano. No meu caso, muitos dos próprios ingredientes vêm daquilo que se chama de brazilian melting pot, cuja tradução não deixa de ser algo como cozido brasileiro. Meu pai, filho de português, foi funcionário público e taxista; minha mãe, dona de casa (o que está muito longe de ser uma profissão acima de qualquer suspeita), filha de um pescador numa típica família pobre de caiçaras.

    Caiçara é o povo do litoral do Estado de São Paulo, resultado da mistura de índios com portugueses. E, com todo o respeito e admiração pelas tribos nativas, hei de sempre dar graças a Deus por ter entrado português na minha história. Se bem que, pelo andar da carruagem, é mais que prudente conservar os laços de parentesco com os povos da floresta. Nisso, eu, a Alzira, o Valdson e até a Rainilce estamos plenamente de acordo. Porque, se calhar, o Brasil ainda volta pros índios!

    Primeiro Prato

    Alzira

    A natureza não vos pede licença; ela não tem nada a ver com vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não. Deveis aceitá-la tal como ela é e, consequentemente, também todos seus resultados.

    (Dostoiévski, Memórias do Subsolo)

    1. Maria Alzira, a mulher-caranguejo

    Foi longe da tundra russa, mas seguramente afundada na lama, que Maria Alzira formulou sua filosofia. No seu caso, porém, a carapaça dura e o andar de lado, entre o mar e a terra, como fazem os seres do mangue, era tudo de que ela precisava para sobreviver em ecossistemas asfaltados. E, é verdade, para escapar do inexorável destino de crustáceos desavisados: a panela.

    "Maria estava doente,

    Mas assim eu nunca vi:

    Foi só a irmã chegar

    Pra já ir catar siri."

    (Sebastião Alves de Góis)

    Meu amigo, minha amiga… A vida é muito importante pra ser insignificante… Por pouco não sapeco a roupa nesse ferro, mas com isso que o senhor tá falando aí na rádio eu concordo, moço. E é isso que me dá a certeza de que até mesmo na morte a pessoa tem que dar significado pra vida. Senão fica assombrando por aí a vida dos outros, sem achar descanso.

    Não sei por que calhou de ser, mas esse pensamento de morte me arrodeia, obsessor, desde o santo dia em que aquela moça atentada, que faz pesquisa, se arremaneceu por aqui e disse que me pagava qualquer preço pelo meu samburá de pesca, que era pra ser estudado na universidade, que era coisa importante. Vai vendo, Rainilce.

    Ora seja, que ela insistiu até eu quase me perder da paciência. Comecei por me recusar a vender, sem entender por que, minha Nossa Senhora, alguém ia querer um cesto de pescar, sem nenhuma serventia a não ser pra galinha chocar logo ali, perto de onde ele está furado.

    Mas vendi, quer dizer, doei. Mais por pena, te digo com sinceridade. Fiquei penada com aquela moça bonita, que fala tão bem, estudiosa, abancada aqui há um monte de tempo, tomando aquele café ralo, no maior embevecimento. Ela é tão esforçada! Se impressiona de tudo!

    Ainda não atinei direito com isso, mas ela tanto me atazanou que me rendi. Só que, por uma questão de orgulho, recusei o dinheiro. Aceitar o dinheiro seria admitir que aquela coisa vergonhosa, encarangada, feia pra diabo, era minha. Isso não podia de ser. Não por honestidade bocó, mas por vergonha mesmo de ser perpetuada em museu como detentora de tamanha insignificância.

    O que eu ia te dizendo, Rainilce, é que me deu uma confusão danada essa história toda. É que juntei com essa pregação do homem da rádio. Como uma coisa tão insignificante como um samburá pode ser importante? Decerto que era um sinal de que estamos mesmo em avançado processo de extinção, que nem a moça me garantiu. Igual quando a coruja assovia no teto da casa, com anunciação de desgraça. Ou quando o galo dana a cantar fora de horário.

    Algo me diz que esse interesse todo aqui neste fim de mundo não é boa coisa, decerto que não é. De um dia pro outro, passou a aparecer fotógrafo, equipe de televisão, pesquisador, querendo bisbilhotar tudo que a gente faz, querendo imortalizar puçá e samburá, vê se isso tem cabimento.

    Foi ela quem falou primeiro que a gente está ameaçada de extinção, igual eu expliquei pra você. Não é que vou me extinguir enquanto pessoa, vê se entende, Rainilce, porque nisso ninguém leva vantagem. Todo mundo acaba em cinza mesmo. É que vou me extinguir enquanto espécie porque a nossa cultura, conforme ela disse, entende, está desaparecendo, feito o samburá furado que ela levou embora, ela me explicou. Que desaforo, se nem cultura tem por aqui! Também pelo que a moça da universidade disse, a gente não é mais autêntico, descaracterizou. Eles vêm até aqui pra esculhambar, pra apontar as desmelhorias. Não é que a moça disse que eu não devia usar inox? Logo, me arreliar com minhas panelas tão areadas e valorizar um samburá? Ah, desembica! Por Deus, o que é autêntico nos dias de hoje? A gente já não encontra chifre de bode pra fazer garrafada, não acha mais maracujá-bravo pra fazer um chá nem filhote de jararaca pra botar na pinga!

    Agora, como eu digo, não nego que ela me botou aterrorização com essa história de extinção, igual que a gente tinha certeza

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