Gerando eus, tecendo redes e trançando nós
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Sobre este e-book
Delinear a superação da visão da pessoa negra, a partir dos traços físicos, e reconhecer as raízes do povo brasileiro – para compreender a história da negritude – é inspirar atitudes de combate ao racismo que se ampliem para nosso contexto social.
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Gerando eus, tecendo redes e trançando nós - Margareth Maria de Melo
Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
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Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIEDADE
A Matheus, meu filho;
Jilvam Monteiro, meu esposo;
Adaiza (in memoriam), minha mãe;
Expedito, meu pai;
Meus irmãos e irmãs;
Meus familiares;
Ao povo negro, em especial, às mulheres negras.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a Deus, comunidade de Amor, Pai, Filho e Espírito Santo, que é minha luz, vida e esperança na minha caminhada. Foram muitos momentos desafiantes que só a graça de Deus para tudo enfrentar.
A presença de Matheus e Jilvam Monteiro na minha vida é fundamental para perseverar na luta; obrigado pelo apoio e carinho ao longo desta jornada.
Aos meus familiares, agradeço pela compreensão ante a minha ausência.
Muito especialmente, agradeço à minha orientadora Nilda Alves pelo incentivo para seguir meu desejo de mergulhar na temática afro-brasileira; sua contribuição me permitiu superar limites e viver emoções antes inimagináveis.
Com carinho, agradeço às amigas: Elisabete Vale (Bete), Severina, Patrícia, Cristiane, Robéria pela força nos momentos difíceis e pelo intercâmbio de vidas, de emoções e de sonhos. Aos amigos e amigas que conquistei ao longo da minha história, pela atenção e escuta nos momentos de incertezas.
Destaco a participação das estudantes Rose, Cláudia, Emanuela e Carla, praticantes deste estudo, que me ensinaram a valorizar mais ainda a vida e a minha história. Muito obrigado pela troca de saberes. A aprendizagem das estudantes do grupo de pesquisa me emocionava e desafiava a estudar mais; muito obrigada pela torcida e amizade.
Agradeço ainda aos colegas da turma do doutorado, aqueles que trabalham na Universidade Estadual da Paraíba, UEPB, e aos professores, estudantes e funcionários que conheci nos cotidianos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, pelo incitamento para perseverar sempre.
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher [...] Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
(Adélia Prado)
PREFÁCIO
Conhecer a autora deste livro nas circunstâncias em que a conheci foi um acontecimento¹ em nossas vidas. Começo por lembrar: o Programa de Pós-graduação em Educação – ProPED da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, programa 7 na Capes, decidira desenvolver um Doutorado Interinstitucional (Dinter), com apoio dessa agência. Das universidades que nos procuraram, na ocasião, pareceu-nos que, como éramos uma universidade estadual, seria interessante desenvolvermos o curso em uma jovem universidade estadual. Com isso, o curso foi desenvolvido em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Os documentos foram criados e a proposta aceita pela Capes. Marcou-se, então, o processo de seleção e uma Comissão foi indicada pelo Colegiado do ProPED. Esta comissão era composta por Elizabeth Macedo, Luiz Antonio Senna e Nilda Alves – ProPED e Roberto Cortez Mota, professor da UEPB.
Foi dado um prazo para entrega dos projetos pelos candidatos. Esses projetos foram avaliados pelos diversos professores do ProPED, que seriam os orientadores das pesquisas. De posse dos pareceres circunstanciados, a Comissão de seleção se deslocou para Campina Grande, para fazer as entrevistas. Destes projetos, tive indicação de orientação de um deles: o que fora apresentado por uma professora da UEPB de nome Margareth Maria de Melo. Dei um parecer extremamente favorável ao projeto, já que a temática apresentava aspectos muito interessantes: discutir os modos como, no curso de Pedagogia – no caso do presencial da própria universidade – se abria espaçostempos na formação de professores/professoras aos conhecimentossignificações da importância das culturas africanas na sociedade brasileira e de como seus múltiplos aspectos apareciam nos currículos escolares. Em dois dias foram feitas as entrevistas pela banca e Margareth foi brilhante ao discutir seu projeto com a Comissão. Seu projeto e suas falas sobre ele foram excelentes. Impressionou a banca e foi classificada em primeiro lugar na seleção.
Assim, no ano seguinte começamos uma relação orientanda-orientadora, em alguns momentos a distância uma da outra – ela na Paraíba, eu no Rio de Janeiro – e outros, quando veio morar no Rio de Janeiro, exigência da forma como o curso fora estruturado, de grande proximidade. Pude conhecer então seu esposo e seu filho.
Ela frequentou disciplinas do curso, tanto quando professores do ProPED se deslocavam para Campina Grande, como na UERJ, quando esteve morando no Rio. Com seu profundo interesse pela temática, se fez conhecida por seus colegas e professores. Nos momentos de orientação tivemos, como em todo bom processo de troca de ideias, momentos de tensão. Mas, a todo o momento, aprendíamosensinávamos uma à outra. Eu aprendia: como se dá a aprendizagemensino do que poderíamos chamar de cegueira de pertencimento
e seus momentos de ir além, quando ela me falava dos momentos em que não se sabia negra ou não se reconhecia como tal, de seus processos de ‘reconhecimento’ e de outros tantos estudantes e colegas; ou ainda os momentos em que destacava os diferentes modos de identificação pelos diversos cantos do país de acordo com a localidade onde morava e a quantidade de negros encontrados na região. Ela ia aprendendo como se organizavam as pesquisas com os cotidianos e em formação de professores/professoras; ou de como usar imagens nos processos que desenvolvia. Trocávamos referências bibliográficas e outras.
Chegou o momento, muitas vezes tão solitário, de escrita, que só pertence a seu autor. Ao orientador cabe ouvir sobre: os entraves de buscar alguns processos não comuns à pesquisa; o estranhamento de colegas ao que queria desenvolver; a escrita que se faz difícil; o trabalho regular na universidade, recomeçado, que não permite muito pensar na pesquisa e, algumas vezes, menos ainda, se colocar a escrevê-la. Enfim, a vida que quer voltar ao normal, mas existe uma pedra no meio do caminho
: uma pesquisa precisa ser escrita e defendida. A orientadora tentava indicar nesses momentos que, mais do que se pensa, essas dúvidas e dificuldades são comuns aos doutorandos, pelo menos na área da Educação. Enfim, Margareth terminou uma cuidadosa pesquisa que com louvor foi recomendada para publicação, dada a importância da temática e do modo inovador com que a desenvolvera.
Com o modo cuidadoso com que trabalhara, Margareth levou um bom tempo para transformar em livro o texto que vai agora publicado.
Este livro precisa ser lido porque apresenta uma questão importantíssima frente a um país que mudou muito com relação à visibilidade das diferenças: como os cursos de formação docente vêm trazendo à tona esta questão central para nós brasileiros? O livro nos mostra que nesta formação – indispensável – precisamos compreender tanto os modos de trabalhar em processos curriculares, como indicar modos de dar força aos docentes para encontrarem, cotidianamente, soluções para essas questões, estando neste olho do furacão
: o racismo e todos os tipos de discriminação ainda presentes em nosso país. A partir de práticas suas, de estudantes, bolsistas e alguns colegas, Margareth nos mostra as possibilidades que esta necessidade coloca às universidades no seu importante papel de formador de docentes da Educação Básica.
Nilda Alves
APRESENTAÇÃO
Não basta ser negro,
Tem que se sentir negro.
Não basta ser negro,
Tem que se gostar.
Não basta ser negro,
Tem que conhecer sua história
Para ter orgulho
De ser negro.
(Marília Dias)
O presente texto narra o processo de tessitura não só de uma tese, mas de sujeitos que, ao longo do caminho, foram se tecendo mulheres negras, gerando professoras afrodescendentes e, especialmente, apertando nós das redes de relações, conhecimentos e práticas. Tal processo ocorreu tanto no sentido de reflexão das relações do eu com a outra pessoa, do eu com os problemas que emergiram ao longo da pesquisa, como de superações de conceitos, teorias, metodologias de pesquisas e práticas pedagógicas, nos cotidianos do Curso de Pedagogia, campus I, da Universidade Estadual da Paraíba. Conforme o saber que a epígrafe destaca, o conhecimento da história do povo negro foi significativo para gerar o orgulho de ser, de se sentir e de se gostar negra.
A questão que me motivou desde o início do trabalho foi compreender como a temática afro-brasileira estava sendo abordada e vivenciada nos cotidianos do Curso de Pedagogia. Daí emergiu a indagação essencial: como professoras e alunas negras se sentem e enfocam essa temática nas redes de conhecimentos, práticas e relações?
Minha tese é que as praticantes (cf. CERTEAU, 2007) são geradas e gestadas no processo de tessitura de redes de conhecimentos, práticas e relações a partir da temática afro-brasileira possibilitando o desenvolvimento de ações concretas de enfrentamento do racismo e das desigualdades raciais engendrando uma educação antirracista. Professoras negras e não negras ao longo do processo de formação pessoal e profissional vivenciam um movimento de entrançados de fios, produzindo eus
num tecido que estampa suas histórias coloridas capacitando-as para convivência com a pluralidade, as diferenças e a diversidade cultural.
Diante desse panorama a desvelar, qual não foi minha surpresa ao vislumbrar o quanto essa questão me envolveu emocionalmente e profissionalmente, o mesmo ocorrendo com minhas orientandas e, de modo particular, provocando impacto em diversos espaçostempos² dos/nos/com os cotidianos do Curso de Pedagogia das praticantes desta pesquisa. As redes de relações, conhecimentos e práticas tecidas ao longo do processo permitiram fluxos e refluxos num fazerdesfazer que levou a um autoconhecimento, uma abertura para o outro, um mergulho nos cotidianos, nas histórias de vida, nos saberes produzidos, provocando novas descobertas, percepções e entendimentos sobre o povo negro.
Pensar a tessitura do conhecimento como uma rede implica entender que os nós
são momentos importantes de aprendizagem, de descobertas, de trocas, de confrontos de ideias e estes precisam ser vivenciados na sua plenitude para que se consolidem. São os nós
que irão dar sustentação à rede, são eles que garantem a sua firmeza, da mesma forma com os conhecimentos. Durante um bom tempo minha compreensão era de evitar os nós
, entendendo estes como conflitos, problemas, dificuldades. No caminhar, percebi que só se aprende quando se enfrenta o conflito, quando se posiciona diante da dificuldade e só se resolve o problema encarando-o de frente; convivendo com ele é possível chegar a alguma solução e, assim, forma-se o tecido trançado de fios coloridos em que cada parte é um momento da nossa história, é um aprendizado em rede.
Com essa compreensão busquei conhecer a história do povo negro, desde a África até a atualidade, os diversos movimentos de negros e negras que, ao longo da história, lutaram para conquistar liberdade, dignidade e cidadania. O estudo revelou a necessidade de aprofundamento sobre o continente africano, sua história, geografia, organização política e econômica. No Brasil, a luta dos movimentos de negros/as nos diversos períodos da história destaca a força e perseverança de um povo. Minha busca era também para compreender o movimento que este povo empreendeu nos cotidianos tecendo uma luta permanente, marcada por uma indisciplina coletiva, minimamente se gestando contra a visão hegemônica. A população negra não ficou passiva frente ao sistema de escravização imposto: as revoltas e fugas eram constantes, as formas de organização e superação das adversidades eram ações permanentes, tanto individuais quanto coletivas.
Essa não foi a história que a escola ensinou e continua ensinando, mesmo vivendo num regime democrático. E questiono: será que no curso de formação docente se aprofunda o estudo da história e cultura africana e afro-brasileira a partir do olhar dos vencidos? Como conhecer o contexto do país sem entender a participação do/a negro/a na formação da sociedade brasileira? Por que este segmento social ainda hoje sofre discriminação nos bancos escolares? Essas foram algumas das questões que surgiram e nortearam minha investigação.
Na verdade, a sociedade brasileira contemporânea vivencia um movimento de enegrecimento, consequência da luta por afirmação de afrodescendentes diante da negação histórica a que foram submetidos. A partir da resistência, esses sujeitos teceram sua historicidade através da afirmação da sua cultura, da sua religiosidade como marcas indeléveis potencializadas nos cotidianos de suas experiências, constituídas nas suas artes de fazer, nos usos das táticas e astúcias (cf. CERTEAU, 2007) de enfrentamento das formas de opressão sofridas.
A metodologia de pesquisa nos/dos/com os cotidianos é o caminho que me desafiou a enfrentar medos, buscar o desconhecido, enveredar por estudos de concepções e teorias, inclusive contraditórias, consciente das armadilhas, mergulhando no escuro, pois são nessas circunstâncias que a luz encontra espaço para brilhar, como na música Caçador de Mim, de Sérgio Magrão e Luis Carlos Sá: Nada a temer senão o correr da luta. Nada a fazer senão esquecer o medo. Abrir o peito à força numa procura. Fugir às armadilhas da mata escura
.
Compreender como a temática afro-brasileira era abordada nos cotidianos do curso foi um objetivo que foi se delimitando a partir dos/as praticantes que se sobressaíram na vivência com a temática. A princípio, quisemos definir os traços fenótipos como indicadores, mas tivemos que abandonar essa perspectiva, visto que só gerou ambiguidades e a necessidade de discutirmos sobre identidade e identidade racial.
Outra limitação que se apresentou foi a visão do/a afrodescendente como vítima passiva das circunstâncias de opressão social. Para isso, foi preciso adentrar na história do povo negro e perceber o movimento empreendido por essa população no sentido de burlar, transgredir, criar, fabricar mecanismos de resistência. Apesar de todas as atrocidades vividas, a população negra conseguiu com inteligência e astúcia fazer uso de táticas (cf. CERTEAU, 2007) para não esquecer suas tradições, gingados, seus encantos e cantos, sua coragem, garra, força, seus ancestrais, crenças, festas e alegrias.
Desse modo, professoras e alunas³ do Curso de Pedagogia precisam refletir sobre a falácia da democracia racial brasileira para não reproduzir o discurso da igualdade e encontrar formas de enfrentamento do racismo. É visível a necessidade de compreender o novo paradigma que exige que estejamos abertos/as à pluralidade, à diversidade, à inclusão, que nos cotidianos nos desafiam a buscar alternativas múltiplas, possibilidades de práticas coletivas e solidárias, a fim de criar a necessidade de uma nova postura no mundo. Em especial, é imprescindível reconhecer as formas de resistência, as táticas usadas pelas praticantes nos cotidianos que demonstram suas lutas e conquistas.
Nesse sentido, conhecer as histórias de vida das professoras e alunas poderá ser significativo para fortalecer e ampliar a luta dos movimentos que nos cotidianos do curso tecem redes de relações e conhecimentos. Assim, nossa meta é sensibilizar professoras e alunas do curso às questões de diversidade cultural presentes nos cotidianos, em especial a causa afro-brasileira, e alertar professoras e alunas para a tessitura de uma educação antirracista nas suas práticas pedagógicas.
A seguir apresentarei a introdução com a justificativa do trabalho, sendo o primeiro capítulo metodológico, com o movimento da pesquisa, isto é, o caminho percorrido. O segundo é teórico, em que dialogo com diversos estudiosos sobre noções de raça, negro/a, pardo/a, identidade, cultura, formação docente e a história dos movimentos sociais de negros ao longo do pensamento racista brasileiro. O terceiro capítulo expõe as histórias de vida de duas professoras do curso e analiso o processo de tessitura de suas identidades, a prática docente e o currículo do curso. Além disso, apresento a história de vida de uma professora negra e sua luta para sair do lugar destinado ao povo negro. No quarto capítulo, a partir das narrativas de história de vida das estudantes, discuto a temática em questão na seguinte perspectiva: ser negra e as relações inter-raciais na família, na escola e no Curso de Pedagogia e, por fim, a ausência da temática afro-brasileira nos cotidianos do curso de formação docente.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
sumário
INTRODUÇÃO
1O MOVIMENTO DA PESQUISA: OS PASSOS DE UMA CAMINHADA
1.1 Percepções do cotidiano do curso
2 SER NEGRA: NOÇÕES E HISTÓRIAS SOBRE A TEMÁTICA AFRO-BRASILEIRA NA FORMAÇÃO DOCENTE
2.1 Noções e histórias que se entrelaçam
2.1.1 Raça, Racismo e Movimentos Sociais Negros
2.1.2 Ser negra, ou parda, ou híbrida?
2.2 Os ditos e não ditos sobre a história da educação do povo negro no Brasil
2.3 Identidades entrelaçadas nos cotidianos
3 PROFESSORAS NEGRAS E SEUS ENTRANÇADOS DE HISTÓRIAS DE VIDA
3.1 Histórias de vida de docentes negras do