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O sol da esperança
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O sol da esperança
E-book190 páginas2 horas

O sol da esperança

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Sobre este e-book

São depoimentos frutos da oralidade de quem ouviu ou viveu, em uma mostra histórica e social um retrato fiel do cotidiano difícil, por vezes desumano, associado a uma época de extrema penúria. Aborda não só a vida da família de origem, abandonando seus amigos e suas casas em Andaluzia, na pequena Iznalloz, encravada entre montanhas e serras, mas igualmente a questão social de busca do sonho no novo mundo, quase sempre irrealizável, pois que funesto. Revela, assim, a historiografia os costumes, a sociedade com seus pressupostos de moralidade, preconceitos e a política dominante. - Jacira Fagundes, escritora.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 2022
ISBN9788583386698
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    O sol da esperança - Carmem

    I

    Na Espanha, Andaluzia, há um pequeno pueblo da província de Granada, chamado Iznalloz. Uma pequena cidade encravada entre montanhas e serras, que é o principal centro de uma região conhecida como Los Montes Orientales, que compreendem vários vilarejos e municípios. Nessa região, encontra-se a cordilheira Sierra Arana. A cidade situa-se às margens do rio Cubillas e é muito antiga, o povo de Iznalloz atribui as suas origens aos romanos. Caiu nas mãos dos mouros e só foi retomada em 1486. A origem de seu nome vem do árabe Hisn Allauz, Castelo de Amendoeiras.

    Na década de vinte, século passado, viviam ali Antônio Merino Ita, sua mulher Antônia e seus cinco filhos. A mais velha era Thereza, uma menina miúda e franzina de uns 10 anos de idade; Zeíco — apelido de José —, um menino magrinho de 7 anos; Manoel, com 5 anos, olhar maroto e um eterno sorriso no rosto; Antoninha, com 3 anos, olhos vivos e negros, companheira inseparável de Manoel; e a pequena Rosária, com poucos meses de idade.

    Nessa época, a região era muito pobre, a principal fonte de renda era a agricultura. Durante o plantio ou no tempo da colheita, havia a necessidade de muitos trabalhadores, os homens jovens e fortes eram contratados para esse serviço. Na época do inverno de frio muito intenso, esses homens eram dispensados do trabalho e ficavam sem emprego. Antônio era um desses homens sem trabalho fixo, que sofria com a dificuldade de sustentar a família.

    A única alternativa durante o inverno era se engajar em grupos que partiam em direção às florestas para fazer carvão. Eles iam com as famílias à procura de uma boa madeira para a carbonização, carregando poucos pertences, uns a pé, outros conseguiam carroças. Procuravam lugares próximos a riachos onde pudessem encontrar água potável e onde também fosse permitido usar a madeira para montar acampamento. Os grupos geralmente eram formados por famílias e amigos. Era um trabalho duro e havia a necessidade de integração entre as pessoas, assim evitavam desentendimentos e brigas.

    Quando chegavam à beira das florestas e encontravam o lugar ideal, eles se estabeleciam.

    Primeiro, construíam grandes choças onde cada família iria se instalar — as maiores choças eram para moradia —, depois eram construídas choças menores, onde seria feito o carvão. Para fazer as moradias, riscavam um círculo no chão, cavavam um buraco como se fosse uma piscina de mais ou menos um metro de profundidade e deixavam alguns degraus onde seria a entrada. Com toras de madeira, faziam uma cumeeira e cobriam com galhos e ramos de árvores bem tramados para que a chuva não penetrasse. Sobre os degraus, deixavam uma abertura por onde saíam quase rastejando. Ali viviam todo o inverno.

    Além da família de Antônio, iam também nesses grupos a irmã de Antônia, Rosália, seu marido Juan e seus filhos, que erguiam a sua choça sempre bem próximos. Depois de construírem as habitações, se estabeleciam e iam em busca da lenha, que era retirada da floresta, para começar a montar as choças de carvão.

    O carvão era feito pelo método de combustão parcial dos pedaços de lenha com pouco ar. A lenha era empilhada e recoberta com terra; em cima, deixavam um orifício central como suspiro, e nas laterais ficavam outros orifícios em alturas diferentes. O fogo era colocado na parte inferior e a entrada de ar era regulada fechando ou abrindo os suspiros laterais. A carbonização era feita lentamente.

    Em um trabalho árduo, os homens lidavam o dia inteiro montando várias choças de carvão e à noite precisavam estar atentos, controlando a entrada de ar. Um pequeno descuido e o trabalho poderia ser perdido. Eles se revezavam durante a madrugada.

    Dentro das habitações, o frio era intenso, principalmente à noite ou quando caía a neve — nevava no inverno. Buscando um pouco de calor, eles costumavam acender fogueiras do lado de fora, levando as brasas das fogueiras para dentro das choças, que eram colocadas no centro dos aposentos como uma forma de aquecimento.

    Usavam lamparinas de azeite para iluminar o ambiente, não havia móveis, alguns caixotes serviam de banco, o fogão era feito no chão, à base de pedras e ferros, para apoiar as panelas. Atrás do fogão, havia folhas de lata para proteger as ramagens do teto e evitar incêndios com as fagulhas que saíam do fogo, principalmente quando as ramagens ficavam ressecadas. As panelas eram muito rústicas, feitas de barro cozido.

    Alguns estrados de madeira recobertos com colchões de palha serviam de cama, e as crianças dormiam junto com os adultos. Os lençóis eram feitos de sacos ou tecidos baratos. Na choça de Antônio, eles eram muito alvos, contrastando com a pobreza do local. Velhos cobertores cerzidos aqueciam as crianças.

    A ajuda dos vizinhos amenizava um pouco a dureza da vida que levavam. Quando alguém adoecia, sempre aparecia um remédio ou chá. Quando uma mulher estava para parir, surgia alguém com conhecimento para fazer o parto e trazer mais um miserável ao mundo.

    A maioria daqueles homens e mulheres era triste, resignada com o destino, com a vida de necessidades que levavam. Traziam os ombros encurvados, os olhos baços, a pele crestada pelo frio. Apenas as crianças conservavam o brilho no olhar e o sorriso espontâneo no rosto, isso porque não tinham consciência do sofrimento e das condições em que viviam.

    Antônio e sua mulher Antônia eram uma exceção, não se deixavam abater pelas dificuldades. Ele tinha uma aura de lutador, a cabeça erguida, olhos brilhantes e uma postura ereta. Apesar da baixa estatura, parecia que se agigantava diante da luta diária. Antônia — Tonha, como a chamavam — era corajosa, tinha um olhar firme, enérgico e forte, ajudava o seu homem com garra e decisão. Os dois procuravam incutir nos filhos a mesma coragem e retidão de caráter que possuíam.

    Enfrentavam a vida sem fraquejar, mas Antônio queria mais, queria segurança e conforto para os seus filhos, queria dar a eles um futuro muito melhor do que aquela difícil rotina.

    A vida não pode ser esse sofrimento constante, essa penúria que faz com que crianças sintam a fome corroendo as entranhas, pensava Antônio. Nas noites frias, olhando os pequenos adormecerem encolhidinhos, procurando absorver o calor dos irmãos naquela cama tosca e enrolados nos velhos cobertores remendados, ele abraçava sua mulher e, com a voz embargada, prometia:

    — Um dia, mi amor, teremos outra vida. Um dia nossos filhos terão um lar verdadeiro, deixarão essa miséria para trás e viverão sem medo da fome.

    Tonha ouvia calada e com o peito apertado, uma lágrima teimosa escorria pelo seu rosto antes de adormecer. Mal raiava o sol e os dois já estavam na lida esquecidos de tudo, só pensando em vencer os tropeços do novo dia. Assim era a vida naquelas paragens, não havia tempo para lamentações.

    Ii

    Tonha lavava roupas para as famílias da região. Muito cedo saía com os filhos, precisava estar de olho nos menores muito travessos. Já Thereza era muito responsável, ajuizada e ajudava a tomar conta dos pequenos. Antônio, quando podia, se embrenhava no mato atrás de alguma caça para servir de alimento. Zeíco gostava de andar nas pegadas do pai, principalmente nessas ocasiões. Eles iam levando a vida como podiam, sempre pensando no futuro dos filhos. Queriam uma vida melhor para eles.

    Um dia, em conversa com parentes, Antônio soube notícias de seus primos que emigraram para o Brasil. Nas cartas, contavam que estavam muito bem. O país onde viviam era maravilhoso, tinha terras muito férteis e um povo hospitaleiro. Durante vários dias, conversou com a mulher sobre os primos. Tonha estremecia ao ver um brilho diferente no olhar do marido, sabia dos sonhos que habitavam a sua mente.

    — Antônio, o Brasil é muito distante, precisa atravessar um oceano, não temos como chegar lá, não temos dinheiro para isso.

    — Eu sei, mujer, eu sei. Preciso sonhar, deixa-me ao menos sonhar.

    Um dia, enquanto se distraíam conversando, ouviram um grito. Era Manoel, que, pulando de um lado para outro, acabara de cair de bunda em cima das brasas que aqueciam a choça. Sorte dele que estavam quase apagadas e suas roupas de inverno o protegeram. Livrou-se da queimadura, mas não da palmada da mãe, que o colocou para dormir.

    Ao acomodar os filhos na cama improvisada, Tonha olhava para as roupas que vestiam. Embora muito limpas, estavam surradas e gastas pelo uso, com vários remendos. Suas crianças nunca tinham vestido uma roupa nova, tudo o que tinham vinha da caridade alheia. Ela era grata às almas caridosas que doavam aquelas roupas, mas sabia que o marido tinha razão quando falava em mudar o destino que se revelava cada vez mais implacável, embora o seu coração se apertasse com medo do desconhecido.

    Antônio era um camponês rude, sem estudos, apenas sabia ler e escrever, mas tinha visão. Sabia que, se continuassem ali, não haveria nenhuma chance de mudar. À noite, quando saía para fazer a ronda nas choças de carvão, sentindo a neve fustigar o seu rosto e com as pernas enroladas em perneiras de couro para que o frio não as queimasse, gorro de lã repuxado, mãos doídas e enregeladas, voltavam em seu pensamento as palavras escritas pelos primos sobre aquela terra distante. Aquele era o seu sonho, o único jeito de mudar o seu destino e, principalmente, o destino dos filhos.

    Sempre que Antônio ia à cidade a fim de comprar mantimentos, encontrava-se com os amigos para conversar e saber sobre as novidades. Eles falavam sobre as dificuldades em arrumar trabalho e sobre os rumores de uma iminente guerra civil.

    Os amigos também tinham notícias da América, onde diziam haver várias oportunidades de trabalho. Alguns pensavam em emigrar, como muitos amigos e parentes já haviam feito. Antônio escutava calado, mas seus olhos brilhavam denunciando interesse. Percebendo isso, um dos amigos lhe perguntou:

    — Por que estás tão calado, Antônio? Quem sabe também vais junto conosco para a América?

    — Sim, meu amigo — disse um outro. — És como um irmão para nós, crescemos juntos e estamos sabendo de todas as dificuldades que tu estás passando.

    — Pensa em tudo o que falamos, tu não consegues trabalho fixo, vives na miséria e te matando no carvão, não tens nada a perder.

    Antônio olhava para os amigos com os olhos marejados e a boca travada em um ríctus de dor:

    — Não tenho recursos para chegar lá. Além disso, não poderia arrastar a minha família nessa aventura sem saber se dará certo.

    — Tu podes ir na frente — disseram-lhe — e depois, quando estiveres trabalhando, manda buscá-los, temos amigos que já fizeram isso. Ficando aqui, tu acabarás morrendo de frio, de fome ou de tanto trabalhar. Os teus filhos precisam de ti vivo.

    — Pensa, Antônio, isso é verdade, onde tu estás vais acabar ficando doente e não vais poder fazer mais nada por eles.

    — Vamos tentar te ajudar. Quem sabe, entre todos os nossos amigos, conseguimos o dinheiro para a tua passagem? Tem fé.

    Antônio agradeceu:

    Gracias,amigos, vou pensar em tudo o que conversamos, mas não sei se aguentarei deixar a minha família!

    Despediu-se dos amigos, voltou pensando em tudo o que falaram e com a cabeça repleta de sonhos. À noite, conversou com a mulher e lhe contou a história toda. Enquanto falava, os seus olhos brilhavam e a sua voz não escondia o entusiasmo, parecia antever a luz chispante que o aguardava.

    A esposa sentia o peito tão oprimido, que chegava a doer. Uma angústia muito grande apertava o seu coração, mas ela compreendia as ideias do marido, principalmente quando olhava para os filhos vivendo na mais absoluta miséria. Olhava as paredes negras cavadas na terra e se sentia como um animal dentro da toca.

    Os dias passavam, o trabalho se tornava a cada dia mais cansativo e aos poucos começavam a chegar os compradores de carvão com as suas mulas. O carvão já pronto era ensacado e colocado no lombo das mulas para ser vendido nas cidades. Os atravessadores lucravam bem mais do que eles ao revender o carvão.

    Em uma manhã muito fria, Antônio e o cunhado Juan se afastaram do

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